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A Mandinga/VI

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— Pois sim senhora; minha senhora: Olhe que sempre escapamos de uma!... Nham Pombinha olhou de revés para o seu companheiro e continuou calada e apressando o passo.

Era esquisito até, se se pudesse, a difusa luz da madrugada, ver aquele par que caminhava rápido e sem ter o tom de intimidade que aproximasse os dois retardados.

— Minha senhora, olhe que, para lhe ser agradável, já venho desde a outra quadra de cotovelo torto a espera de seu braço.

— Obrigado. Não se incomode, senhor..., como é a sua graça?

— Elesbão.

— Só?

— Soares, seu criado, lesto e agudo para comer e para tudo.

— Ah!

— E a senhora?

— Ora eu... eu tenho um nome muito feio.

— Cuidado a sargeta. Dê-me a sua mão. Dê um pulinho. Isso! Ai! Ai!

— Por quem suspira, seu Elesbão?

— Ainda pergunta, ingrata! E os gorgulhos? olhe que não me deixam parar...

— E a mim também. Mas, seu Elesbão, o senhor vai ter paciência, me de deixar antes de chegar à minha casa.

— Por quem me toma a senhora? Não, tenha paciência. Enquanto não a entregar sã e salva não descanso.

— Mas lembre-se que alguém pode ver-nos juntos. E depois o que não diria de mim o mundo?

— Ah! minha senhora. Mas eu gosto tanto de si! Desde que a vi, não mais dormi, parece que nem comi; sinto aqui, no coração, um coisa que me trepa e que me desce e que me deixa embasbacado.

Para que é que a senhora é tão mazinha! Pois não tem reparado em mim? Não me conhece? Pois não me vê sempre passar pela sua porta, quando a senhora está na janela, e voltar-me duas e três para trás?

— Seu Elesbão! Silêncio! Eu sou uma pessoa séria: o muito, o muito que lhe digo é que arranje um pretexto para poder ser apresentado lá em casa.

— Quem será aquele que vem lá? É melhor nos escondermos neste portão.

— Nem pense nisso! Vamos.

E assim foram Nham Pombinha e o Elesbão, discreteando até próximo à casa de residência daquela.

Foram felizes, pois não tiveram mau encontro algum, algumas carroças de verdura que passavam para o Mercado, alguns operários madrugadores que iam para o serviço.

Contudo, o Elesbão procurou ser eloqüente e atirou-se a trechos de discursos, com colorido onça, que a Nham Pombinha aparava com a sua costumada retórica.

Isso ainda mais o embeiçava!

E Nham Pombinha, que só via o seu Hilário, defendia-se tanto mais vigorosamente quanto lhe servia de escudo o seu derriço pelo enteado.

À porta da rua, então, o Elesbão foi patético, tocou ao sublime, chegou além do... sublimado corrosivo: impetuoso e ardente, arrancou da Pombinha o lenço, beijou-o, fremente, e disse altivo:

— Ingrata! Já cá tenho uma lembrança!

O feio era que o triste lenço tinha num dos cantos, bem patente, em letras garrafais, o nome — Cirilo Pereira — mas o Elesbão nem reparou.

Nham Pombinha, com mil cautelas, abriu a porta de sua casa, e entrou e cerrou-a novamente, de vagarinho, de vagarinho, só por atenção com a criada e, sobretudo, por causa desta.

Sempre cautelosa, abafando o ruído dos passos, distinto o vulto na semi-claridade que já entrava pela bandeira da porta, encaminhou-se para o seu quarto. Aí a escuridão era profunda.

Com a infinita delicadeza, tateou o castiçal e os fósforos acendeu a vela e começou a fazer a sua toilete de dormir, tendo previamente guardado num canto da gaveta da cômoda o elixir dos milagres. Deitou-se.

Apagada a luz, nervosa da caminhada e das diversas sensações, filhas das peripécias da noite, não podendo já dormir, pôs-se a cismar.

O que faria o Hilário, a essa hora? Coitado. Passou talvez a noite, pensando nela Nham Pombinha, e, todo amor, toda paixão, estava se consumindo, o mísero. Quem sabe? Alguma patuscada como ele costumava fazer aqui... Ingrato! Mais não, era impossível, só nela pensava.

E o Cirilo?

— Ora, para o Diabo que o leve. Não veio me apoquentar, ela bem não queria. E então? Agora um velhadas daqueles, enrugado, sem dentes, e todo a se derreter com a gente. Era até a caçoada das outras. É... é... mas era sempre a mamãe a atazanar, a martelar, porque era um bom partido... porque era rico... porque era isto, porque era aquilo! Eu lá preciso da riqueza dele?!... Eu queria era outra coisa...

Ah! mas o Caboclo tinha afirmado que o remédio era bom.

Nham Pombinha não era uma perversa; não se julgue que aplicava a beberagem do mandingueiro com o fim criminoso.

Se ela julgasse que a droga era nociva, não a daria, com certeza; somente acreditava que a bebida era encantada.

Aí está.

Não que pudesse dela resultar uma desordem no organismo, um lento envenenamento, uma perturbação profunda.

Se qualquer caso deste aparecesse, seria originado doutra cousa, nunca do remédio do Caboclo.

Dando as suas colheradas a Cirilo, que fora se tornando adoentado, nunca julgou que ela é que provocava este estado; não: seria a idade, achaques velhos, alguma imprudência — isto é, se provassem que aquela droga era veneno, horrorizar-se-ia do seu procedimento; mas, como só acreditava na mágica da mesma porque o feiticeiro é quem tinha dado, aumentou até a dose inocentemente.

E embuida dos preconceitos das supertições, de mil babuseiras, era uma crente cega e decidida.

E aliava em si os dois extremos: inocente criminosa, e ignorando que o era.

Estava já clareando o dia. A luz entrava, viva, pelas frestas das janelas.

Nham Pombinha cismava ainda, jamais entorpecida, já quentinha nas suas roupas, acariciada pelo silêncio: ia-se adormentando.

E aquele Elesbão? Quem seria? Ela bem o conhecia, já o tinha notado mesmo na insistência, tanto que uma vez o Cirilo chegou a incomodar-se e quis tomar-lhe uma satisfação. Depois na igreja, aquele dia, aquela história atoa do leque.

A imaginação galopava.

Via-se viúva. Casava-se com o Hilário. Mas... mas não. Ele não queria. Oh! com certeza. Ah! mas arranjava-se tudo. Era com o Elesbão. Mas o Hilário zangava-se. Como seria? Como não seria?

E abatida, vencida pelo sono no último resto do pensamento, via-se numa sarabanda desesperada, todos de mãos dadas, no escuro: Hilário, Elesbão, ela, o Cirilo, o Caboclo e os outros, na terra do encantamento, vendo cousas nunca vistas.

Alto dia já. A criada batia à porta do aposento. Nham Pombinha, acordando espantada, abriu a sua janela que deitava para a área e, ao voltar para a cama, estacou: via a sua manta cheia de pó de milho e alguns grãos ainda presos às franjas, as suas delicadas botinas, à barra de seu vestido, com uma crosta grossa de barro, dois ou três grandes pintos de sebo infecto. E tudo amarrotado.

Aprontou-se e saiu para o almoço, passando a chave na porta. Depois arrumaria tudo...

Continua...

S. B.
Correio Mercantil, 02 de novembro de 1893.