A Morte da Águia/II
Hino á Montanha
Ai! a Montanha! que sublime esfôrço
Lhe agita o formidavel dôrso
E faz que altíssima se eleve,
Rasgando a toda altura o horizonte,
Té que lhe cinja a majestosa fronte
Um diadema puríssimo de neve!
As cúpulas, as grimpas arrojadas,
Flechas eguais ás línguas das espadas,
Agulhas, obeliscos, coruchéus
Vestiram-se de nítidas alvuras
E sequiosos das alturas
Foram beijar os Céus.
Montanha, arripiada féra hirsuta,
Inda raivosa duma antiga luta,
Tu sufocaste, derradeiro grito,
E tu petrificaste, jesto horrendo
Da Terra toda em fogo percorrendo
As frijidas stepas do Infinito.
Passáram anos, séculos, edades,
E sempre chuvas, neves, tempestades,
Granizos, avalanches, cataclismos
Foram aqui rasgando, abrindo brechas,
Ali erguendo pontes e altas flechas
E aqui, ali, além cavando abismos.
Assim a Terra, a Agoa, o Fogo, os Ventos,
Todos os bravos elementos,
Com o cinzel e o estro da loucura
Deram-lhe o rasgo, a inspiração suprema,
O ritmo d'um barbaro poema
Ou duma desvairada arquitetura.
Ah!... quem de perto visse e penetrasse
O atónito fulgôr da pétrea face,
Que hórrida lava como o sangue tinje... ?!
Quem ouvisse pulsar-lhe o coração,
Soubesse que sublime comoção
Perturba o seio da calada esfinje... ?!
Eu quando poiso o pé sobre a Montanha
E avisto o Céu e o Mar de erguida penha,
De súbito estremeço,
Fico mudo de espanto, empalideço
E logo grito, canto, choro e rio,
Tremo como se um vento me abalasse,
Ou a Montanha á volta me enviasse
O seu calafriante desvario.
Ás vezes no caótico tumulto
Dos acidentes da Montanha
Algum arranca o vulto,
Projeta a sombra extranha
Na fauce do Infinito. Em torno a noite escura;
Só o relampago fulgura
No torvo Céu, onde não brilham astros;
E um navio — fantasma, a todo o pano,
Varrido pelo vento e pelo Oceano,
Por velas nuvens, píncaros por mastros,
Corre pelo Mar-fóra, halucinado,
E naufraga por fim desarvorado
Nalgum abismo ignoto!
Ou formidavel catedral
Baqueia, treme, abate-se afinal
Nas torvas convulsões dum Terramoto!
Toda a Montanha oscila de furôr
Quando, como colérico fulgôr
Da pupila do Céu,
Algum relampago ilumina o espaço,
Que o raio atravessa-lhe o espinhaço
Como um agudo arpéu.
E nessa luz lívida e fria
O leviatan enorme ondula,
E numa hórrida agonia
Tem calafrios na medula!
Visionam-se batalhas
Sobre ciclópicas muralhas
Entre hipogrifos e dragões;
Ou nos inóspitos Calvários
Rochedos —Nazarenos solitários,
Agonisam em rudes contorsões.
Ha rochas ajoelhadas,
Religiosamente concentradas
Á beira das encostas;
Rochedos ojivais
Imploram de mãos postas;
Punjentissimos ais,
Dilacerados gritos
Sam os agudos coruchéus;
E os abismos voltados para os Céus
Estam erguendo a alma aos infinitos.
Os áridos granitos,
Rudes fragas, plutónicas, curvadas
No seu fervôr de humildes consciencias,
Com seus cilícios d'urzes requeimadas,
Estam cumprindo duras penitencias.
Sonhos de Deus, esboços do Sublime,
Formas da primitiva creação!
Continuamente vos oprime
A dôr da imperfeição!
Montanha! é tam profunda a tua dôr,
Tam grande o teu impulso redentôr,
O anseio de beleza em que te abrazas,
Que cada pesadíssimo rochedo,
Inabalavel, taciturno e quedo
Tenta bater as asas!
E tudo se debate e tumultua
Com um tremendo esfôrço sobreumano
Nessa petrificada Babilónia:
És a carne sangrenta, rocha núa,
O teu sossego — um revolver insano,
O teu silencio — uma contínua insónia.
Resto do Caos primitivo,
Encapelado Oceano
De tudo o que ha trajicamente vivo!
Ali — talvez a forja de Vulcano
Onde é batido o raio fulgurante;
Ali — talvez o pórtico do Inferno,
Onde o génio de Dante
Foi esculpir o desengano eterno.
Ali se desagregam duras fráguas,
Roídas pelas águas
De persistente força corrosiva;
Mas neves, águas, rochas das alturas
Jamais olvidarám pelas planuras
A ansia primitiva.
A rocha que se funde e se derrama
Em terra, sedimento, escura lama
Vai da raiz á flôr desabrochar,
E as águas que desceram das pendentes
Foram quedas, ribeiros e torrentes,
Por fim ondas altíssimas do Mar!
Ali, emquanto não assola a Terra,
Nas gargantas da serra
Ensaia a Tempestade os grandes córos ;
E sobre os píncaros agrestes,
Vagabundos celestes,
Vam descansar emfim os meteoros!
Ali — tudo o que é grande, forte, altivo:
A Águia poisa, a nuvem pára,
O ar é puro e vivo
O Céu é mais profundo e a luz mais clara!
Cariátide do Céu, Atlas gigante,
Alto e rude colosso de granito!
Que heroísmos, que assombros
Levantam a nossa alma delirante,
Ao vêr que degladias o Infinito
E vem o Céu poisar-te sobre os hombros!
Ás vezes ilumina-se o teu dôrso
No gesto transcendente da verdade,
Gesto que ensina a religião do esfôrço
E aponta para um Céu de Liberdade!
Herois! unji as almas de beleza
E erguei dali na luz e na grandeza
Destroços feitos por um deus cruel:
Os broqueis dos ciclopes revoltados,
Armas partidas d'anjos despenhados
E as ruinas da torre de Babel!