A Mulher de Preto/III
Estevão Soares visitou Menezes no dia seguinte.
O deputado esperava-o, e recebeu-o como se fosse um amigo velho. Estevão marcára a hora da visita, que impossibilitiva a presença de Menezes na camara; mas o deputado importou-se pouco com isso: não foi á camara. Mas teve a delicadeza de o não dizer a Estevão.
Menezes estava no gabinete quando o criado annunciou-lhe a chegada do medico. Foi recebêl-o á porta.
— Pontual como um rei, disse-lhe alegremente.
— Era dever. Lembro-lhe que não me esqueci.
— E agradeço-lh’o.
Sentárão-se os dous.
— Agradeço-lh’o porque eu receiava sobretudo que me houvesse comprehendido mal; e que os impulsos da minha sympathia não merecessem da sua parte nenhuma consideração.....
Estevão ia protestar.
— Perdão, continuou Menezes, bem vejo que me enganei, e é por isso que lhe agradeço. Eu não sou rapaz; tenho 47 annos; e para a sua idade as relações de um homem como eu já não têm valor.
— A velhice, quando é respeitavel, deve ser respeitada; e amada, quando é amavel. Mas V. Ex. não é velho; tem os cabellos apenas grisalhos: póde-se dizer que está na segunda mocidade.
— Parece-lhe isso...
— Parece e é.
— Seja como fôr, disse Menezes, a verdade é que podemos ser amigos. Quantos annos tem?
— Vinte e quatro.
— Olhe lá; podia ser meu filho. Tem seus pais vivos?
— Morrêrão ha quatro annos.
— Lembra-me haver dito que era solteiro.....
— É verdade.
— De maneira que os seus cuidados são todos para a sciencia?
— É a minha esposa.
— Sim, a sua esposa intellectual; mas essa não basta a um homem como o senhor..... Enfim, isso é com o tempo; está ainda moço.
Durante este dialogo, Estevão contemplava e observava Menezes, em cujo rosto batia a claridade que entrava por uma das janellas. Era uma cabeça severa, cheia de cabellos já grisalhos, que lhe cahião em gracioso desalinho. Tinha os olhos negros e um pouco amortecidos; adivinhava-se porém que devião ter sido vivos e ardentes. As suiças tambem grisalhas erão como as de lord Palmerston, segundo dizem as gravuras. Não tinha rugas de velhice; tinha uma ruga na testa, entre as sobrancelhas, indicio de concentração de espirito, e não vestigio do tempo. A testa era alta, o queixo e as maçãs do rosto um pouco salientes. Adivinhava-se que devia ter sido formoso no tempo da primeira mocidade; e antevia-se já uma velhice imponente e augusta. Sorria de quando em quando; e o sorriso, embora aquelle rosto não fosse de um ancião, produzia uma impressão singular; parecia um raio de lua no meio de uma velha ruina. É que o sorriso era amavel, mas não era alegre.
Todo aquelle conjunto impressionava e attrahia; Estevão sentia-se cada vez mais arrastado para quelle homem, que o procurava, e lhe estendia a mão.
A conversa continuou no tom affectuoso com que começára; a primeira entrevista da amizade é o opposto da primeira entrevista do amor; n’esta a mudez é a grande eloquencia; n’aquella inspira-se e ganha-se a confiança, pela exposição franca dos sentimentos e das idéas.
Não se fallou de politica. Estevão alludio de passagem ás funcções de Menezes, mas foi um verdadeiro incidente a que o deputado não prestou attenção.
No fim de uma hora, Estevão levantou-se para sahir; tinha de ir ver um doente.
— O motivo é sagrado; senão retinha-o.
— Mas eu voltarei outras vezes.
— Sem duvida alguma, e eu irei vêl-o algumas vezes. Se no fim de quinze dias não se aborrecer... Olhe, venha de tarde; janta algumas vezes comigo; depois da camara estou completamente livre.
Estevão sahio promettendo tudo.
Voltou lá, com effeito, e jantou duas vezes com o deputado, que tambem visitou Estevão em casa; forão ao theatro juntos; relacionárão-se intimamente com as familias conhecidas. No fim de um mez erão dous amigos velhos. Tinhão observado reciprocamente o caracter e os sentimentos. Menezes gostava de ver a seriedade do medico e o seu bom senso; estimava-o com as suas intolerancias, applaudindo-lhe a generosa ambição que o dominava. Pela sua parte o medico via em Menezes um homem que sabia ligar a austeridade dos annos á amabilidade de cavalheiro, modesto nas suas maneiras, instruido, sentimental. Da misanthropia annunciada não encontrou vestigios. É verdade que em algumas occasiões Menezes parecia mais disposto a ouvir do que a fallar; e então o olhar tornava-se-lhe sombrio e parado, como se em vez de ver os objectos exteriores, estivesse contemplando a sua propria consciencia. Mas erão rapidos esses momentos, e Menezes voltava logo aos seus modos habituaes.
— Não é um misanthropo, pensava então Estevão; mas este homem tem um drama dentro de si.
A observação de Estevão adquirio certo caracter de verosimilhança quando uma noite em que se achavão no theatro Lyrico, Estevão chamou a attenção de Menezes para uma mulher vestida de preto que se achava em um camarote da primeira ordem.
— Não conheço aquella mulher, disse Estêvão. Sabe quem é?
Menezes olhou para o camarote indicado, contemplou a mulher por alguns instantes e respondeu:
— Não conheço.
A conversa ficou ahi; mas o medico reparou que a mulher duas vezes olhou para Menezes, e este duas vezes para ella, encontrando-se os olhos de ambos.
No fim do espectaculo, os dous amigos dirigírão-se pelo corredor do lado em que estivera a mulher de preto. Estevão teve apenas nova curiosidade, a curiosidade de artista: quiz vêl-a de perto. Mas a porta do camarote estava fechada. Teria já sahido ou não? Era impossivel sabêl-o. Menezes passou sem olhar. Ao chegarem ao patamar da escada que dá para o lado da rua dos Ciganos, parárão os dous porque havia grande affluencia de gente. D’ahi a pouco ouvio-se passo apressado; Menezes voltou o rosto; e dando o braço a Estevão desceu immediatamente, apezar da difficuldade.
Estevão comprehendeu, mas nada vio.
Pela sua parte, Menezes não deu signal algum.
Apenas se desembaraçárão da multidão, o deputado encetou uma alegre conversa com o medico.
— Que effeito lhe faz, perguntou elle, quando passa no meio de tantas damas elegantes, aquella confusão de sedas e de perfumes?
Estevão respondeu distrahidamende, e Meneses continuou a conversa no mesmo estylo; d’ahi a cinco minutos a aventura do theatro tinha-se-lhe varrido da memoria.