A Pata da Gazela/XII
Correram os dias sem que Horácio aparecesse em casa do Sales Pereira. Amélia, apesar de seu esforço, não podia conter a impaciência. Ela adivinhava que o leão estava despeitado com a resposta, e queria obrigá-la a conceder-lhe imediatamente o que pedira: a sua mão, e com a mão o pezinho que ele adorava.
Por vezes a moça foi até à porta do gabinete do pai, na intenção de dizer-lhe que escrevesse a Horácio enviando-lhe o consentimento; mas vol
tava envergonhada de sua fraqueza; enxugava alguma lágrimas que lhe saltavam dos olhos; e fazia novos protestos de não ceder.
Nestas ocasiões ela contemplava a imagem de Horácio com alguma severidade. Lembrava-se da volubilidade com que ele falava-lhe de seu amor; do sorriso sempre faceiro que tinha nos lábios e servia para vestir a palavra alegre ou triste, zombeteira ou comovida, e finalmente da insistência que mostrava em ver-lhe o pé.
Então acudia a Amélia uma circunstância que a princípio lhe escapara: fora sua recusa à impertinência do leão, que o obrigara a pedi-la em casamento no dia seguinte.
— Será apenas um capricho? Não me terá ele verdadeiro amor?... Se não me engano, o que ele ama em mim, não sou eu, mas uma mulher que imaginou; sirvo-lhe apenas de pretexto, como tantas outras antes de mim.
O resultado destas observações era protestar a moça que daria um não ao pedido de Horácio. Mas quando seu pai lhe perguntava sorrindo:
— Ainda não?
Ela corava, abanava a cabeça e fugia, dizendo consigo que ainda faltavam alguns dias para o prazo marcado.
Para ocupar as noites e distrair o espírito dessa constante preocupação amiudou as visitas à casa de D. Clementina. Ali com a influição do olhar profundo e da palavra eloqüente de Leopoldo, esquecia as contrariedades e inquietações. Na volta trazia algumas doces reminiscências, e sobretudo um certo arroubo do coração, que durava algum tempo, e a preservava de suas anteriores preocupações.
Já haviam passado doze dias depois da carta, e Amélia estava mais que nunca resolvida a romper com Horácio, quando se deu entre ambos um encontro.
Foi no teatro.
Amena que a princípio evitou as ocasiões de encontrar-se com Horácio, lembrou-se que sua presença podia provocá-lo, e obteve do pai que a levasse ao espetáculo. Subindo a escada do Teatro Lírico, avistou Horácio que vinha do lado oposto.
Apesar de estar prevenida, a moça teve um sobressalto; mas pôde recobrar-se antes que o leão se apercebesse de sua presença. Foi com fria altivez e indiferença que ela correspondeu ao cumprimento de Horácio, sem demorar o passo enquanto ele trocava um aperto de mão com o Sales Pereira.
Esta indiferença porém, e sobretudo o gesto que Amélia fez para arregaçar o vestido quando subia o segundo lanço de escada, ataram de novo o leão ao jugo.
— Desta vez, pensou ele, se eu estivesse adiante, via ao menos a ponta do meu pezinho!
Teria Amélia simulado aquele gesto de propósito? É natural; ela queria subjugar outra vez o cativo que escapara; usava de todos os seus recursos.
Vencido, o moço acompanhou a família até à porta do camarote e demorou-se aí a conversar com o negociante. Entretanto Amélia, sem dar-lhe a mínima atenção, percorria com o binóculo os camarotes trocando com a mãe observações a respeito das moças e seus lindos adereços.
Durante o resto da noite, a moça mostrou a mesma calculada indiferença, a ponto de irritar o mancebo. Apesar de se ter rendido, sentiu ele um ímpeto de revolta, e deixou sua cadeira junto à orquestra com intenção de visitar um camarote fronteiro ao do Sales Pereira. Lá estava uma linda moça de seu conhecimento, uma das estrelas de sua coroa de rei da moda.
Sentar-se-ia junto dela, e estabeleceria um diálogo entretecido de sorrisos, de olhares e meias confidências como por ai se dão tantos nos bailes e espetáculos: verdadeira cena mímica de amor representada perante o público. Com esse entretenimento, Horácio comprometeria seriamente a reputação de uma senhora; mas vingar-se-ia de Amélia, excitando-lhe ciúmes.
Chegava já o leão à porta do camarote quando ocorreu-lhe este pensamento:
Faltava apenas um ato para terminar o espetáculo; se ele mostrasse afastamento, Amélia irritada persistiria em seu desdém durante o resto da noite; e quem sabe que resolução tomaria sob a influência desse despeito?
Horácio teve medo e recuou. Já se tinha submetido no começo da noite; o melhor expediente era perseverar. Naturalmente Amélia, no fim do espetáculo, abrandaria o seu rigor.
Começara o ato. Horácio deixou passar algum tempo, e dirigiu-se ao camarote de Amélia. A moça que já tinha reparado na ausência do leão, cuja cadeira estava desocupada, adivinhou-lhe a presença, ouvindo abrir-se a porta. Seu primeiro movimento foi voltar o rosto; mas reprimiu-se a tempo, e disfarçou dirigindo o binóculo para o fundo da sala.
Apesar do império que tinha sobre si, Amélia estava ao cabo das forças. Se naquele momento Horácio fingisse uma retirada, ela não resistiria. Felizmente o leão não se lembrava disso e tinha resolvido esperar a saída para trocar algumas palavras com a moça.
Terminou o espetáculo afinal. Horácio ofereceu o braço a Amélia:
— Muito lhe ofendi com meu pedido, D. Amélia?
A moça calou-se.
— Não lhe mereço nem uma palavra?
— Parece que o senhor lhe dá bem pouco apreço.
— Que injustiça!
— Quem passou tantos dias sem ela pode bem esperar ainda os dois que faltam.
— Então sou eu o culpado dessa demora! Quem me condenou a ela?
— E o senhor nem ao menos procurou abreviá-la: achou mais cômodo esperar tranqüilamente! Pois continue a esperar.
— Mas, D. Amélia! Depois da resposta de seu pai, se eu me apresentasse em sua casa, tornar-me-ia importuno. Cuida que não sofri, passando tantos dias sem vê-la? Ingrata! Quantas vezes, não podendo resistir, fui até à porta de sua casa, e passei, impelido pelo receio de indispô-la contra mim? Se ela me amasse, pensava eu, teria aceitado logo: não o fez; quer refletir; devo deixá-la tranqüila e respeitar a sua resolução. Que vou eu lá fazer? Obrigá-la a me aborrecer.
Horácio mentia; ele se ausentara da casa do Sales Pereira, somente para vencer a resistência da moça por uma simulada indiferença.
O carro do negociante aproximou-se:
— Vai sem me deixar uma esperança?
— Não é aqui o lugar de pedi-la.
— Então amanhã?
— Se quiser!
No dia seguinte à noite o leão estava em casa do negociante. Amélia o recebera com um resto de ressentimento, que se desfez com os primeiros galanteios. Sucedeu o que era natural: depois de uma abstinência de tantos dias, esses corações tinham a sede de ternura, e beberam um no outro a largos sorvos.
Quando o leão se retirou, ele sabia que dois dias depois receberia oficialmente, por uma carta do negociante, o sim que ouvira naquela noite entre um sorriso e um rubor.
Quanto a Amélia, depois que a ausência do moço rompeu o encanto e deixou-lhe unicamente a consciência do compromisso tomado, lembrou-se involuntariamente de Leopoldo, cuja imagem pálida e triste desenhou-se em sua imaginação.
— Ele há de sofrer muito! pensou a moça suspirando.
No dia seguinte havia reunião em casa de D. Clementina. Amélia recordou-se disso e fez tenção de ir. Naquele momento julgou-se obrigada a comunicar sua última resolução a Leopoldo. Pareceu-lhe que seria uma deslealdade deixá-lo na ignorância de seu casamento, até que viesse a sabê-lo por algum estranho.
Mais tarde surgiram os escrúpulos. Tendo aceitado a mão de Horácio, não era bonito animar uma afeição, que deixava de ser inocente. Embora nunca retribuísse a paixão de Leopoldo, podiam supor que não a repelias Demais, sendo natural que Horácio fosse passar a noite em sua casa, ela procederia muito mal, trocando sua companhia pela de um rival.
Enquanto as horas do dia se escoavam, estas e outras razoes disputavam no espírito da moça a decisão que ela devia tomar. Afinal interveio o coração.
— Tenho pena dele!
E às oito horas estava em casa de D. Clementina. Nessa noite a moça, cujo espírito jovial simpatizava com as cores frescas e risonhas, escolheu um vestuário sombrio. Era uma faceirice melancólica. Aquela menina de 18 anos, que na véspera, muito espontaneamente se prometera a um homem elegante de seu gosto e escolha, afigurava-se agora uma vítima do dever, sacrificando-se heroicamente ao compromisso contraído.
Essa convicção dominava Amélia ao entrar na sala, e ressumbrava não só nas fitas pretas de seu traje, como na languida flexão da fronte e no olhar cheio de mágoas. Ela se julgava sinceramente coagida por uma força irresistível, que a arrancava a um amor profundo e santo, como a flor que o vento arrebata ao tronco onde se enlaçara.
Leopoldo compreendeu a melancolia de Amélia, e adivinhou que essa mulher estava perdida para ele no mundo, mas que sua essência divina lhe pertencia, para todo o sempre. Sentiu pois a mágoa da saudade, que precede a longa ausência. Quando se tornariam a encontrar as duas metades dessa alma, separadas por uma contingência da matéria?
Pela noite adiante Leopoldo aproximou-se de Amélia, porém só lhe falou de coisas indiferentes, ao contrário do que ela esperava. Se o moço a interrogasse a respeito do casamento, aproveitaria o momento para confessar-lhe; mas ele nem de leve tocou nesse ponto.
Na ocasião de se despedirem a moça fez um esforço.
— Já sabe? perguntou com voz trêmula e quase imperceptível.
— Adivinhei! disse o mancebo fitando nela os olhos tristes.
Amélia ficou um instante indecisa, em face dele, como se esperasse mais alguma palavra; Leopoldo dissera tudo naquele olhar, em que difundira sua alma.
— Adeus! murmurou a moça afinal.