A Pata da Gazela/XIX
Quando recobrou-se da surpresa em que tinha ficado, Horácio não achou em si mais do que o desejo veemente e irresistível de possuir o ídolo por tanto tempo sonhado.
— Serão meus! murmurou consigo. Serão meus a todo preço. Se for necessário um escândalo, não hesitarei. Mas Amélia não deve ter-se esquecido de mim já tão depressa; ela me tinha afeição. Vou pedir-lhe perdão de meu engano. Sujeitar-me-ei a todas as condições. Que sacrifícios são bastantes para pagar a felicidade de beijar aqueles dois mimos da natureza!
Instintivamente Horácio seguiu na direção da casa do Sales, com intenção de restabelecer as relações interrompidas. Não sabia ele de que modo se houvesse em tal empenho; fiava da inspiração do momento.
Já não estava o negociante no escritório; nesse dia se retirara mais cedo.
Malograda sua esperança, o leão foi caminhando pela Rua Direita sem direção, como quem não sabe o que fazer. O instinto que no deserto guia o rei dos animais à sebe odorífera onde retouçam as gazelas, o conduzia naturalmente para a Rua do Ouvidor.
Tinha chegado à esquina, quando passou defronte um moço, que seguiu pela calçada Carceler. Horácio acompanhou-o com a vista, querendo nele reconhecer seu amigo Leopoldo que havia cerca de um mês não vira.
Se com efeito o moço era Leopoldo, tinha ele sofrido grande transformação. Em vez do rapaz descuidado no seu traje, brusco em suas maneiras, sempre de cabelos arrepiados e barba revolta, aparecia um cavalheiro de boa presença, com a sóbria elegância que tão bem assenta nos homens sisudos. Essa espécie de elegância é apenas um ligeiro perfume, e não uma incrustação como a que usam os moços à moda.
Com seu fino tato e longa experiência, Horácio, reconhecendo o amigo, adivinhou o segredo daquela súbita metamorfose. Ele sabia que só há um condão capaz de produzir tais encantos: é o olhar da mulher amada e amante.
Ame alguém e não saiba se é retribuído. Toda sua existência se projeta nesse impulso d'alma, que se arroja para outro ser e anseia por nele infundir-se. Vive-se fora de si mesmo, alheio a seu próprio eu; como o peregrino perdido longe da pátria, o homem exilado de sua pessoa erra no espaço, em demanda de um abrigo.
Desde, porém, que o homem tem certeza de ser amado, em vez de expandir-se, recolhe-se e concentra-se para saturar-se de felicidade. Já não se alheia e esquece de si; ao contrário, sente-se elevado acima do que era; respeita em sua pessoa o homem amado.
Nessa ocasião é natural a cada um observar-se constantemente e julgar de si com extrema severidade. Surgem aspirações estranhas; o fraco lembra-se de ser um herói; o filósofo inveja a beleza do casquilho; o espírito positivo habituado a voar terra a terra bate o coto das asas para remontar-se ao ideal da poesia.
Não é só no homem que se opera essa metamorfose: mas em toda a natureza. Quando se arreiam os pássaros de sua mais bela plumagem, quando gorjeiam as melodias mais brilhantes, se não é na quadra dos amores?
Vendo Leopoldo parado na calçada Carceler, Horácio dirigiu-se com disfarce para aquela parte, com intenção de travar conversa e esclarecer de todo em todo o mistério. Foi trabalho perdido; o moço acabava de saltar em um tílburi, que rodava já pela Praça de Pedro II.
Desapontado, voltou Horácio sobre os passos.
— Amélia o ama!... Ou pelo menos ele o acredita!
Sorriu-se o leão.
— Que fenômeno curioso produz o despeito na mulher! É uma semelhança da luz reflexa. Irritado pela decepção, humilhado em sua vaidade, o amor da mulher desdenhada refrange como o raio do sol repelido por corpo brilhante e vai impregnar-se em outro homem. Ela cuida sentir por esse plastão uma paixão ardente, que nada mais é do que o ímpeto de seu despeito. Seria capaz de conceder a esse comparsa o que recusaria à afeição mais terna e extremosa. O assomo do ciúme, supõe ela ser veemência da afeição, e confunde com os extremos de amor o delírio da vingança. Amélia está passando por esta crise naturalmente. Leopoldo foi o plastão; ela o ama com todo o furor do ódio que me tem.
Outro sorriso frisou o lábio do leão.
— Ela me odeia! Ora!... O ódio o que é senão a efervescência do amor? O afeto suave e terno é como o moscatel de Setúbal ou o vinho de Constança. O amor fero e irado é como o champanhe que ferve e espuma.
Chegando à casa, Horácio escreveu a Amélia uma carta, que apenas continha estas palavras:
"Deve estar satisfeita, pois me tem de novo a seus pés, e desta vez humilde e suplicante. A melhor coroa do triunfo é o perdão."
Saindo o leão a espairecer, dirigiu os passos para a casa do Sales; esperava encontrar algum criado que se incumbisse de entregar a carta.
Quem sabe? Talvez nessa mesma ocasião se decidisse de sua sorte. A moça lhe permitiria falar-lhe.
Era noite fechada; o céu, carregado de nuvens, anunciava próxima borrasca. A frente da casa do negociante estava às escuras; contudo quem observasse bem, perceberia a coar-se pelos interstícios das janelas um tênue reflexo de luz interior. No portão da chácara a meio cerrado, ninguém aparecia.
O leão penetrou no jardim. Nesse momento um carro parou à porta da casa: três pessoas saíram dele. Em um Horácio viu, estremecendo, roupas de sacerdote. Só então refletiu o moço no aspecto soturno do edifício. Inquieto, sobressaltado, adiantou-se pelo jardim na esperança de encontrar pessoa a quem interrogasse.
As janelas laterais estavam esclarecidas; e pelo jogo das sombras no quadro iluminado, conheceu o moço que reinava no interior alguma agitação.
Que fazer? Apresentar-se na casa, depois do que passara, e antes de qualquer explicação. não era razoável.
A dois passos ficava uma frondosa mangueira, em cujos galhos tinham fabricado uma espécie de belveder ou caramanchão. Conduzia ao alto uma escadinha de caracol cingindo o tronco da árvore.
Por acaso avistou o leão a mangueira, e subindo sem hesitar, achou-se justamente fronteiro às janelas iluminadas. Em princípio a claridade súbita ofuscou-lhe a vista, e não pôde ele distinguir o que se passava no interior.
Mas afinal o deslumbramento dos olhos cedeu ao deslumbramento d'alma.
Ele via, e duvidava.
Um altar erguido, círios acesos, o sacerdote oficiando, Amélia e Leopoldo de joelhos, ao lado Sales, D. Leonor, e dois amigos que serviam de testemunhas: eis o quadro que se ofereceu aos olhos de Horácio. Tinha visto na comédia da vida muitos lances dramáticos, mas nenhum tão imprevisto e curioso.
A surpresa do leão provinha de um engano seu. Ele acreditava que Amélia o tinha amado, quando a moça não sentira por ele mais do que o desvanecimento de ver cativo de seus encantos o rei da moda, o feliz conquistador dos salões.
Quem Amélia amou desde o princípio, foi Leopoldo. A vaidade, o galanteio que se nutre de brilhantes futilidades, a seduziam por momentos, e rendiam ao capricho de Horácio. Mas passado esse enlevo, sua alma sentia a atração irresistível que a impelia para o seu pólo.
Disso que durante dois meses passava na vida íntima da moça, ela própria não se apercebia; foi depois da cena do baile, que ela entrou em si, e compreendeu as sublevações recônditas de sua alma, e o drama que aí se agitava desde muito.
Leopoldo começara a freqüentar a casa de Sales poucos dias depois da partida de D. Clementina. As duas almas, por tanto tempo separadas, só esperavam o momento de se unirem ou antes de se entranharem uma na outra. Às tardes, no jardim, entre cortinas de flores, elas celebravam esse místico himeneu do amor, único eterno e indissolúvel, porque se faz no seio do Criador.
Pelo voto de todos se apressou o dia do casamento, que os noivos exigiram se fizesse inteiramente à capucha, e sem prévia participação. A razão desse empenho, só Amélia a sabia e nunca a disse. Eram escrúpulo de seu pudor: depois do que tinha acontecido, não queria que lhe dessem outra vez o título de noiva.
Terminada a cerimônia, e feitas as felicitações do costume, correram os minutos em agradável conversação.
Eram onze horas, quando Leopoldo entrou no toucador em que sua noiva o esperava. Sentada em uma conversadeira, Amélia sorriu para seu marido; porém através das largas dobras do roupão de cambraia, percebia-se o tremor involuntário que agitava seu lindo talhe.
— É meu presente! disse ela com timidez.
E apresentou ao noivo um objeto envolto em papel de seda, atado com fita azul.
Abrindo, achou Leopoldo dois mimosos pantufos de cetim branco, os mesmos que Amélia começara a bordar no dia seguinte ao baile.
O moço enleado, não compreendia. Insensivelmente seu olhar desceu à fímbria do roupão. Sobre a almofada de veludo e entre os folhos da cambraia, apareciam as unhas rosadas de dois pezinhos divinos.
Uma onda de rubor derramou-se pelo semblante da moça, cujos lábios balbuciaram uma palavra.
— Calce!
Leopoldo ajoelhou aos pés da noiva.
O temporal, desabando nesse momento, bateu com violência nos vidros da janela, que fechou-se.
Horácio desceu do seu observatório, e escalando a grade de ferro do jardim, ganhou a casa, onde chegou todo alagado. Enquanto filosoficamente esperava que seu criado lhe preparasse uma xícara de café, abriu um livro, que acertou ser La Fontaine.
Leu ao acaso: era a fábula do leão amoroso.
— É verdade! murmurou soltando uma fumaça de charuto. O leão deixou que lhe cerceassem as garras; foi esmagado pela pata da gazela.