A Reforma da Natureza (12ª edição)/1ª parte/Capítulo 2

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CAPÍTULO II

APARECE A RÃ



ESSA OCASIÃO havia chegado. Ao saber que Dona Benta recebera convite dos chefes da Europa para ir arrumar o pobre continente, Emília deu um pulo de gosto e, já com a idéia da reforma da Natureza na cabeça, declarou que nao ia.

— Não vai, como, Emília? — disse Dona Benta. Acha que posso deixar você sozinha aqui?

Emília disfarçou a verdadeira razão de ficar. Declarou que não ia para evitar escândalos na Conferência da Paz.

— Sim — disse ela — se eu for não é para ficar dormindo no hotel, não! Também hei de querer tomar parte na conferência — e tenho umas tais verdades a dizer aos tais ditadores que a senhora nem imagina. E fatalmente sai "fecha". Vira escândalo. É isso que quero evitar.

Dona Benta ficou pensativa e foi à cozinha consultar tia Nastácia.

Encontrou-a areando o tacho para fazer goiabada.

— Nastácia, — disse ela — Emília encrencou. Quer ficar. Diz que se for à Conferência sai "fecha" com os ditadores e haverá um grande escândalo internacional e estou com medo disso. Tenho horror a escândalos.

— E sai "fecha" mesmo, Sinhá. Depois daquela história da Chave do Tamanho, Emília ficou prepotente demais. Não atura nada. Dá escândalo mesmo, Sinhá, e é até capaz de estragar o nosso trabalho por lá. Pedrinho me contou que aquilo nas Europas está pior que quarto de badulaque quando a gente procura uma coisa e não acha. Tudo de perna para o ar — disse ele. Tudo sem cabeça, espandongado. A nossa serviceira vai ser grande, Sinhá, e com a Emília atrapalhando, então é que não fazemos coisa que preste. Minha opinião é que ela fique.

— Mas ficar sozinha aqui, Nastácia?

— Fica com o Conselheiro e o Quindim — que mais a senhora quer? Juízo eles têm para dar e vender — e ainda sobra. Eu converso com o Conselheiro e explico tudo.

Dona Benta pensou, pensou e afinal se convenceu de que tia Nastácia tinha razão. Controlada pelo Conselheiro e defendida pelo Quindim, que mal havia em Emília ficar?

E Emília ficou.

Narizinho, porém, que era a que mais conhecia a Emília, não deu crédito àquele pretexto de não ir para não dar escândalo.

— Isso é história dela, vovó! Emília até gosta de escândalo. Quer ficar sozinha eu sei para que é — para sapecar à vontade, fazer alguma coisa ainda mais maluca do que aquela da Chave do Tamanho. Eu, se fosse a senhora, não a deixava aqui sozinha.

Mas Dona Benta era a democracia em pessoa: jamais abusou da sua autoridade para oprimir alguém. Todos eram livres no Sítio, e justamente por essa razão nadavam num verdadeiro mar de felicidade. Emília recusava-se a ir? Pois então que não fosse. Como forçá-la a ir? Com que direito? E que adiantaria ir a contragosto, emburrada? E Emília teve licença para ficar.

Isso foi na própria manhã da vinda do convite. Um mês depois chegava a comissão incumbida de levar Dona Benta. Essa comissão veio no único navio ainda existente no mundo. Todos os outros estavam repousando no fundo dos mares, vítimas dos submarinos e torpedos aéreos. Dona Benta arrumou as malas, vestiu o seu vestido de gorgorão amarelo do tempo de D. Pedro II, mandou que tia Nastácia pusesse a saia nova de pintinhas verdes e lá foram as duas para bordo do navio. Pedrinho e Narizinho acompanhavam a ilustre vovó na qualidade de netos; e o Visconde, com uma gorda pasta de ciência debaixo do braço, seguia na qualidade de Consultor Científico.

Emília, o Conselheiro e Quindim estiveram presentes ao bota-fora na porteira e ouviram as últimas recomendações de tia Nastácia sobre as galinhas, os porquinhos de ceva e uma ninhada de pintos que já estavam bicando.

— Não se ponham a ajudar os pintinhos a sair da casca, senão eles morrem — disse ela. — Pinto sabe muito bem se arrumar sozinho. E não se esqueçam de molhar as mudinhas de couve lá na horta.

Ouvindo aquelas recomendações tão sensatas, os homens da comissão entreolharam-se, como quem diz: "Com pessoas de tão belo espírito e tão cuidadosas de tudo, a Conferência vai ser um verdadeiro triunfo para a humanidade" (e não erraram).

Assim que se pilhou sozinha, Emília correu à máquina de escrever e bateu uma carta para uma menina do Rio de Janeiro com a qual andava já de algum tempo se correspondendo e planejando "coisas".

"Querida Ră:

Estou só sósórósósó! Todos foram para a Europa arrumar aqueles países mais amarrotados do que latas velhas e agora preciso de que você venha passar uma temporada aqui. Você é das minhas: das que não concordam. Podemos realizar aquele nosso plano de reforma da Natureza. O Américo Pisca-Pisca era um bobo alegre. Reformou a Natureza como o nariz dele e foi pena que a abóbora do sonho não lhe esmagasse a cabeça de verdade. Seria um bobo de menos no mundo. Nós faremos uma reforma muito melhor. Primeiro reformaremos as coisas aqui do Sítio. Se der certo, o mundo inteiro adotará as nossas reformas. Sua mãe não há de querer que você venha. É "adulta" e os tais adultos são uns Américos Pisca-Piscas. Mas você vem assim mesmo. Cheire meia pitada desse pó que aí vai no saquinho de papel — só meia, senão em vez de parar aqui você vai parar não sei onde. Eles partiram esta manhã e eu já me estou sentindo muito "tênia" ... (Depois que Emília soube que "solitária" era sinônimo de "tênia", passou a empregar a palavra "tênia" em vez de "solitária". "Não é gramatical" — dizia ela — "mas é mais curto.")

A Rã, assim chamada por causa da sua magreza de menina de onze anos, era emilíssima, das que não concordam mesmo. Assim que leu a carta, deu dez pinotes e tratou de dividir o pó do saquinho em duas partes "bissolutamente" iguais. Por influência da Emília, ela andava usando a palavra "absolutamente" dita dessa maneira. Antes de reformar a Natureza, Emilia já havia feito várias reformas na língua.

— Que está fazendo aí, menina? — perguntou a mãe da Rã, ao vê-la dividindo o misterioso pó.

— Estou "bi" o que leva e traz para que leve e traga, — respondeu em linguagem da pitonisa de Delfos (na língua emiliana, "bi" queria dizer "dividir em dois").

A boa senhora, está claro que não entendeu coisa nenhuma, mas, como já estava acostumada às respostas enigmáticas da filha, deu um suspiro e foi cuidar de outra coisa.

A Rãzinha cheirou o pó, de acordo com as instruções da carta. Imediatamente seus olhos se fecharam e em seus ouvidos cantou o célebre fiunn! Instantes depois, sentiu-se largada no chão. Abriu os olhos: um terreiro! Só podia ser o terreiro do Sítio.

Mas não viu ninguém. A casa, fechada. No ar, só dois sons; um ronco que devia ser do Quindim na soneca do costume e um barulho de mastigação com jeito de ser de Rabicó.

Ainda sentada e tonta, a menina gritou: "Emília! Emilinha! Emiloca! . . ."

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.