A Reforma da Natureza (12ª edição)/2ª parte/Capítulo 3
CAPÍTULO III
A PULGA GIGANTESCA
MUITAS SEMANAS depois, estava Dona Benta na varanda quando chegou o correio com os jornais do dia. Ela desdobrou-os e pôs-se a lê-los. De repente fez cara de interesse e disse a Narizinho:
— Uma coisa curiosa vem neste jornal. Leia.
A menina leu. Era uma notícia que dizia assim:
"Um caçador de Juiz-de-Fora anda a contar um caso que se non è vero è bene trovato. Diz ele que estava numa caçada de perdiz, num campo dos arredores dessa cidade, quando viu aparecer no céu uma Coisa Preta, a qual foi crescendo de vulto e por fim pousou a cem metros do ponto em que ele se achava à espera da perdiz. Uma Coisa Preta e enorme, assim do tamanho duma anta. Intrigado com aquilo, armou a espingarda e aproximou-se. Mas, quando levou a espingarda ao ombro para atirar, a Coisa deu um pulo e sumiu no céu. Diz que se trata dum animal esquisitíssimo, como jamais ele viu outro, nem teve notícia por boca de alguém. Dava idéia duma monstruosa pulga."
— Que poderá ser isso? — indagou Dona Benta, quando a menina concluiu a leitura.
— Bobagem, vovó! — disse Narizinho. — Essa gente dos jornais vive inventando mentiras.
E a coisa ficou por ali.
Dias depois, entretanto, os jornais repetiram a notícia mais ou menos em iguais termos, mas já com a Coisa em outro lugar. Fora vista em Catanduva, no Estado do Paraná. Depois apareceu em Pilão Arcado, na Bahia. E depois em Blumenau, no Estado de Santa Catarina; e em Vassouras, Estado do Rio. E sempre da mesma maneira: descia do céu como desce uma bala de canhão, numa curva; sentava-se em terra; e, de repente, pulava de novo, desaparecendo no ar.
A repetição do caso fez que os homens de ciência se interessassem pelo assunto. O pavor nas cidades em que o monstro aparecia era enorme. Lendas se formavam, as mais absurdas. Era opinião geral tratar-se duma pulga gigantesca, porque não só a Coisa tinha o jeito duma pulga, como o seu modo de pular era o da pulga.
Pedrinho interessou-se vivamente pelo caso; começou colecionar as notícias e a compará-las. O absurdo, porém, era tamanho que ele chegou à conclusão de tratar-se duma tremenda patifaria dos jornais do país e de fora, com o fim de criar um assunto que aumentasse a venda avulsa.
— Bobagem — disse ele. — A mim é que não engazopam, esses trouxas.
Estavam nesse ponto, quando apareceu no Sítio o Zé Candorra, um caboclo feio que morava nas vizinhanças.
— Que há, Candorra? — perguntou Dona Benta ao recebê-lo na varanda.
— O que há, Dona Benta, é que vou me mudar desta zona e vim oferecer meu sítio. A terrinha é boa para mandioca e milho. A senhora faz um negocião. Dou "quage" dado.
— Mas por que, meu caro, quer mudar-se duma terra onde morou toda a vida?
O caboclo inventou um pretexto qualquer. Dona Benta, porém, que era "psicóloga", viu que ele estava mentindo, e disse:
— Conte a verdade, Candorra. Estou lendo nos seus olhos que a razão não é nada disso que sua boca está dizendo. Fale a verdade, porque eu compro o seu sítio de qualquer jeito, seja lá qual for a causa da sua mudança.
O caboclo, desmoralizado, resolveu dizer tudo.
— Não vê que duns tempos pra cá eu ando meio assustado? Outro dia entrei no mato para colher umas brejaúvas e, de repente, que é que a senhora imagina que eu vi?
— ?
— Vi, Dona Benta, uma formiga do tamanho dum tatu! Não "sirria", não, Dona Benta. Minha mulher também "sirriu" quando eu contei a história, mas pra castigo também topou com outra formiga daquela casta, e agora está que nem pode mais de medo, a coitada. Até já se mudou com as crianças para a casa do compadre Zidoro, lá na Água Fria.
— Não pode ser, Candorra! — disse Dona Benta. — As formigas são animaizinhos velhíssimos, de milhões de anos, e não consta que até agora aparecesse nenhuma maior que o içá. Nem na África, que é a terra dos bichos grandes, há formigas do tamanho de tatus.
— Pois a que eu vi, Dona Benta, era "inté" maior que um tatu — e a que minha mulher viu, diz ela, tinha o porte de uma capivara.
Dona Benta riu-se.
— Vocês estão sendo vítimas de alguma alucinação, meu caro. Como pode ver coisas que não existem, nem nunca existiram? Absurdo.
— Dona Benta, — disse o caboclo, — eu não quero que a senhora acredite em nada, só quero que compre minhas terras, porque por aqui não fico nem mais um dia só. T'esconjuro!
Pedrinho, Narizinho e Emília estavam presentes, e muito interessados na conversa.
— Isso é das tais coisas que só vendo, — interveio Pedrinho. — Leve-me lá onde está o formigão, amigo Candorra. Quero ver para crer.
— Também vou, — disse Narizinho. — Também sou como São Tomé. E você, Emília?
Emília respondeu que não, que tinha qualquer coisa a fazer no pomar, mas ficou com um ar esquisito, ressabiada. E assim que Pedrinho e a menina saíram com o Candorra, correu ao laboratório.
— Visconde, — disse ela — o Candorra apareceu com a história duma formiga do tamanho dum tatu, e a mulher dele viu outra ainda maior, assim do tamanho duma capivara. Estou com medo de que sejam as formigas que nós operamos e fugiram do cercadinho ...
— Há de ser — disse o Visconde sem tirar o olho do microscópio. — Nós fizemos tremendos enxertos de pituitária, e se as formigas não morreram, podem muito bem estar do tamanho de tatus e até maiores.
— E como é agora? — perguntou Emília, assustada.
— Agora é isso mesmo — respondeu o Visconde. — Elas andarão aí pelo mundo, a assustar os ignorantes, e por fim se extinguirão, porque não podem reproduzir-se. Oh, se se reproduzissem, seria um enorme transtorno para as gentes! Imagine milhões e milhões de formigas do tamanho de tatus, espalhadas por todas as terras! Como iria arranjar-se o Homo sapiens? Se sendo as formigas pequeninas como são elas já tanto o atrapalham, imagine se fossem do tamanho de tatus!
Só nesse momento ergueu os olhos do microscópio.
— Pois eu queria ver isso — continuou ele. — Se é verdade, nós, sem o querer, fizemos a maior descoberta do século, Emília — e vamos ganhar o prêmio Nobel! Podemos aplicar o processo nos bois e obter bois do tamanho de montanhas. Para o abastecimento de carne aos açougues, um boi desse vulto seria a maior das minas.
Emília mostrava-se apreensiva; por fim falou:
— Quer dizer que a tal Coisa Preta, que os jornais contam que aparece ora num ponto ora noutro, é a nossa pulguinha operada? ...
— Pode ser — concordou o Visconde. — Mas também essa pulga não se reproduzirá. Morrerá qualquer dia e pronto.
— As últimas notícias — continuou Emília — dizem que ela ataca os bois e carneiros para beber-lhes o sangue...
— Nada mais natural. As pulgas são "hematófagas", isto é, bebedouras de sangue. As pequeninas picam os animais e sugam uma gotinha. A "nossa", se é grande assim, só poderá encontrar sangue suficiente num boi ou num carneiro. Nada mais natural.
— E de que tamanho será o pulo que ela dá? — quis saber Emília.
— Muito fácil fazer a conta — respondeu o Visconde, tomando o lápis. — Pelo que você me diz, essa pulga tem o tamanho duma anta.
— Duma anta grande — confirmou Emília.
— Muito bem. Uma pulga de cachorro pesará um miligrama e uma anta grande pesará aí uns 200 quilos. Ora, como 200 quilos correspondem a 200 milhões de miligramas, a "nossa" pulga é 200 milhões de vezes mais pesada que a pulga comum. E como uma pulga comum dá pulos de um palmo, a nossa pulgona poderá dar pulos de 200 milhões de palmos, ou sejam 44 mil quilômetros, ou mais de uma volta inteira em redor da Terra!
Emília riu-se.
— Que absurdo, Visconde! O pulo não pode estar em relação com o peso. Por muito favor estará em relação com o tamanho.
— Nesse caso — disse o Visconde — temos de fazer outra conta. A pulga comum tem dois milímetros de comprimento. A anta grande terá dois metros, ou sejam 2 mil milímetros. Logo, a anta é mil vezes maior do que a pulga comum. E como a "nossa" tem o tamanho duma anta, pulará mil vezes mais do que a pulga comum. Pulará, portanto, mil palmos, ou sejam 220 metros.
— Bem, isso já está mais razoável — disse Emília, concordando com a segunda matemática do Visconde — e pôs-se a refletir.
— Em que está pensando? — perguntou o Visconde.
— Estou pensando que se a guerra não tivesse acabado, os homens eram capazes de utilizar as nossas pulgas para os bombardeios de cidades. Engraçado! Em vez de fábricas de obuseiros, fariam criações de pulgas, que levassem uma bomba atada à cauda...
Logo que Narizinho e Pedrinho chegaram ao sítio do Candorra, foram para o mato onde andava a tal formiga gigante. Pedrinho levava o bodoque e um facão. Se encontrasse o monstro, faria como Hércules lá na Grécia: amassava-lhe a cabeça com uma pelotada, depois cortava-lhe o pescoço.
Mas nada acharam; por maior que seja uma formiga, não é fácil encontrá-la no meio da mata, de modo que a excursão esteve a pique de falhar. Pedrinho só encontrou dois periquitos e um tucano, aos quais não fez nada porque perto de Narizinho ele não tinha ânimo de usar o bodoque. A menina não admitia periquiticídios nem tucanicídios.
— Qual, Seu Candorra! — disse ele. — Parece que o caso é mesmo como vovó disse: alucinação. Vocês, gente do mato, enxergam muita coisa que não existe. É o medo. Nada para criar monstros como o Senhor Medo.
— Mas eu juro que vi, Pedrinho! Vi com estes olhos que a terra há de comer. E minha mulher também. Então, se não fosse verdade, tinha ela fugido com as crianças para a casa do compadre Zidoro, que é uma bisca?
— Está bem. Se você jura, é outra coisa. Tenho de acreditar. Mas é uma pena que essa formiga só apareça para você e sua mulher.
Nem bem acabou de dizer isso e uma frialdade de sorvete lhe correu pela espinha. Qualquer coisa estava-se mexendo na moita próxima.
— Pssiu!
Pedrinho aproximou-se pé ante pé, com o bodoque apontado. Foi chegando, chegando ... De repente — prr! uma coisa enorme saltou da moita e sumiu no ar.
Pedrinho ficou de coração aos pinotes. Voltou correndo para perto da menina e do caboclo.
— Que susto!... Pude ver bem. Não era a formiga gigante, não, mas um grilo assim do tamanho do Rabicó! Eu podia ter atirado, mas minha mão tremeu na hora. Um grilão verde. Assim que me percebeu, armou pulo e sumiu no céu.
Narizinho estava impressionadíssima.
— Eu também vi — disse ela, — e se é assim, a história da formiga-monstro pode ser verdadeira, e também a história daquela Coisa Preta que pula! O Candorra e os jornais estão certos. Que poderá ser isso, santo Deus? Mudanças assim nos animais da natureza são coisas de que os livros não falam. Nunca houve.
— Não sei — disse Pedrinho. — Estou com as idéias atrapalhadas. Não compreendo nada de nada.
- - — Voltaram para casa correndo.
— Vovó, — disse Pedrinho ao entrar — não encontramos a formiga do Candorra, mas a história deve ser certa, porque dei com um grilo do tamanho do Rabicó e não foi alucinação. Narizinho e o caboclo também viram quando o grilão pulou da moita e lá se foi! ...
Dona Benta arregalou os olhos. Tia Nastácia, que ia passando, murmurou "Credo!" e fez três pelo-sinais.
— Se as coisas aqui vão ficar como lá na tal Grécia, eu me mudo do mundo — resmungou a preta.
— E para onde vai, boba? — perguntou a menina.
— Volto para a Lua. Lá ao menos só há o dragão de São Jorge, que é manso. Grilo do tamanho de Rabicó, formiga do tamanho de tatu, pulga do tamanho de anta — isto então é vida? Se todos os bichos começam a aumentar de porte e invadem a casa da gente, onde iremos parar? Se aparece aqui uma formiga desse tamanho, eu morro de medo — ah, se morro! . . .
— Pois eu prego-lhe uma bodocada — disse Pedrinho. — Se fosse vespa, vá lá; mas formiga... Medo não tenho.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.