A Revista/Ano 1/Número 3/Os Caprichos da Sorte

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Os caprichos da sorte

GODOFREDO RANGEL

— Meu mal—monologava o coronel Marcilio, trotando em sua besta, rumo do sitio das Codornas—foi a minha imprevidencia. Unica e exclusivamente. Não culpo o Aurelio, meu socio. Eu era de natural confiante e simples o elle ganancioso e astuto. E seus defeitos não me eram encobertos. Não fez mais do que obedecer a seu pendor irresistivel. Todos avisavam-me: « Cuidado com o Aurelio, que um dia te dará um tombo.— E eu, por um mixto de fatalismo e de indolencia, ou melhor, por indolencia apenas, que é ella que nos põe fatalistas, deixava que as cousas continuassem a correr por si. Previ este desfecho, mas nada fiz para evital-o—o que é tambem um modo de ser imprevidente. Era logico que entre dois temperamentos como os nossos se estabelecerse como um systema de syphão... O ramo maior era meu socio. Houve para este um escoamento de fortuna... E o tombo agourado veio. Escarrapachei-me. Estou pobre. E indirectamente minha ruina enriqueceu o Aurelio.

O coronel Marcilio fez um gesto de melancolica resignação, como se estivesse a explicar-se com um interlocutor invisivel. E a besta trotava, monotonamente, pela estrada do sitio.

E o curioso, continuou o cavalleiro em seu soliloquio, é o estado de espirito em que os acontecimentos me puzeram. Incapaz de cogitar em uma resolução salvadora. Para meu caso não ha, provavelmente, resoluções salvadoras. E isto traz-me uma sensação de quebranto de animo, de debilidade sentimental, incutindo-me como uma piedade vaga por tudo e por todos—pelo desagazalho em que vão dormir estas avesinhas que oruzam o céo, pelas folhas de bananeiras retalhadas pelo granizo; sinto a cada passo desejo de apear-me do animal para salvar, cuma poça d'agua. um insecto agonizante, ou erguer as folhas machucadas de um pé de grama pisado pela pata de um cavallo... e um desejo commovido de abraçar-me a tudo que vejo, consolando os troncos de serem velhos, as flores de serem ephemeras... E esse meu desejo de consolar é de certo, tambem, necessidade de consolação. Tolice! Fraqueza sentimental!

Era ainda a mesma «fraqueza», como lhe chamava, que o levava ao sitio do Severo, talvez seu unico amigo verdadeiro. Os outros abandonaram-no, após a derrocada.

— Muito razoavel tambem essa esquivança, meditou elle. O que entretem a amizade, são as pequennas ou grandes mercês que entre nós permutamos, e o rico está em mais condições de as fazer, ao passo que ao pobre escasseiam-lhe os meios. Sem essas mutuas dadivas, que tambem podem ser espirituaes (em quão pouco, porém, se estimam estasl) não póde subsistir o affecto. Succede como no amor, que é a permuta do prazer. Na affeição dos paes é que existe algo immutavel e desinteressado... Mas é porque obedecem a um cégo impulso, ao invencivel instincto que leva todos os seres vivos a proteger a sua prole. A amizade é absurda, anti-natural, se não a inspira o interesse. E eu não posso mais ser bom amigo. Empobreci.

E incoherente com os seus raciocinios, o coronel Marcílio, ex-millionario, ex-chefe politico, homem culto e generoso, ia em demanda do conforto da amizade sincera, no sitio das Codornas.

Em sua desdita, parecia-lhe que o mundo acabára, revolto por um cataclysmo e que apenas sobrevivia a casa de seu amigo, como um oasis no meio da desolação universal.

Foram confrontantes de terras, amigos de escola, companheiros na politica, e, quantas vazes, no meio das attribulações passadas, se valeram reciprocamente, quer material, quer moralmente, ou, se algum delles o necessitava, com a luz guiadora de um conselho/

Recebiam-no alli carinhosamente, rodeando o, tanto o compadre como a velha esposa e demais pessoas da casa, das maiores attenções.

Sentia-se bem entre elles, como em seu proprio lar. Sempre diziam- lhe: «Quando o compadre apparece, para nós é como se fosse dia de festa...» Qualquer trabalho que estivessem a fazer, deixavam-no immediatamente, mostrando tão boa vontade de ser lhe obsequiosos, que Marcilio espaçava suas visitas, para não turbar-lhes a labuta costumada. Esse era o dla do Severo abrir certo armario, onde eram recatadas preciosas alfaias, e de retirar dalli uma celebre chicara toda dourada, que conservavam ainda envolta no papel com que viera da loja, annos antes.—Aquella chicara era historica, explicava Severo. Nella haviam bebido unicamente o presidente do estado, quando estivera a percorrer a zona, o bispo D. Eduardo e o querido compadre... E, quando vinha nabandeja, tinha como um emproamento de fidalga, ao lado da tigeliinha azul com que serviam o café ao Mathias, outro vizinho de terras que sempre alli portava, e que não tinha, como o presidente, o bispo, ou o coronel Marcilio, titulos sufficientes qara receber a excepcional distincção.

E ao evocar a affeição tão d'alma, daquelles velhos amigos, o coração de Marcilio sentia-se confortado. Elles já saberiam do desastre: Quanto pezar lhes não teria causado!

Vinha na estrada um matuto conhecido, trazendo na cabeça um feixe de lenha. Passando pelo cavalleiro, posou no chão o feixe, para tirar-lhe o chapéo.

— Bom dia, «sô» coronel Marcilio.

— Não sou mais coronel, Anastacio. Hoje o meu titulo é «sô». Perdi o que tinha, estou mais pobre do que você...

O caipira escancarou os olhos e a bocca.

— Pois devéras!

— E' a verdade. Adeus, Anastacio!

— Até outro dia, sô Marcillo!

O cavalleiro distanciou-se ante os olhos sorpresos do rustico, que o acompanharam até sumir-se ao longe; então Anastacio repoz o feixe na cabeça «maginando» sobre as reviravoltas da sorte, e perguntando-se como poderia o fazendeiro estar mais pobre que elle, se ia tão bem vestido e montado em tão bom animal.

Ao avizinhar-se do sitio, Marcilio reflectiu:

— Que vim fazer aqui! Entristecer inutilmente com a minha presença aos meus bons amigos...

E agitado, inquieto, sentia-se arrependido e já pensando em voltar. Parecía-lhe que o fim principal de seu passeio não era tanto a necessidade de conforto, que não lhe poderiam dar e sim o de occupar o tempo, movendo-se, fatigando-se, atordoando-se, para descançar de pensar.

Os amigos vieram recebel-o à frente da casa, onde elle desceu do animal.

— Que felicidade, compadre! exclamaram. Soubemos de tudo e custamos a acreditar...

E emquanto o levavam para a varanda, iam multiplicando suas interjeições piedosas e maldizendo do Aurelio, causa do desastre.

—E' assim, expandiu-se Marcilio, estou hoje limpo. Ha pouco, na estrada, encontrei o Anastacio, que se mostrou admirado por eu dizer-lhe que estava mais pobre do que elle. E estou. Elle tem o seu rancho, onde mora de emprestimo. o seu pedaço de terra, que cultiva a meias, como aggregado, as suas duas mãos que em pegar da enxada, emfim, sua vida está equilibrada no que tende de ser. E eu? Se valia alguma cousa, era pelo meu dinheiro. Habituado desde pequeno à abundancia, não aprendí nenhum officio, não exerci profissão alguma. E agora é tarde para começar... Estou quasi velho e sem fortuna, sem credito, sem amigos. Só vocês...

Os amigos protestaram contra suas palavras de desanimo.

— Compadre, disse dona Etelvina, a fazendeira, não é pela riqueza que uma pessoa vale. O senhor, para nós e para nossa familia, será sempre a mesma pessoa. A's vezes a sorte muda... Se nosso prestimo valesse alguma cousa...

— De certo, confirmou o Severo, depois de uma pausa, retomando o fio da phrase interrompida, Se valeste alguma coisa... Mas, infelizmente, nós tambem...

E queixou-se da sorte, lastimando-se dos maus tempos, das difficuldades da lavoura, dos filhos numerosos em idade de collocar...

— Meu compadre é abastado, meditou o coronel, mas não diz isto por mal. Não será pelo receio de que eu lhe peça dinheiro. E' que um descalabro destes, succedido a um amigo, nos enche de pessimismo pela nossa propria situação. Quando vemos morrer alguem é que nossa saude nos inspira maior cuidado...

E com seu desejo inquieto de agitar-se, aturdir-se, arrependia-se de ter ido ao sitio. Já poderia voltar, levando nos ouvidos o éco refrigerante das boas palavras de seus velhos amigos.

Levantou-se para despedir-se.

— Tão depressa, compadre! Ora essa! Quando mal começamos a conversar, exclamou o Severo, sem ao menos tomar nosso café. Vá arranjal-o, Etelvina...

E para o coronel:

— Não são os amigos que o deixam, é o senhor que os quer deixar...

O coronel sentou-se de novo, emquanto a fazendeira se internava para os fundos da casa.

E a prosa se arrastou ainda por algum tempo, entre longos silencios, no tom funerario das visitas de condolencias...

O compadre Severo repetia-lhe, para o animar:

—O sr. vae ver. A sorte muda, quando menos se espera. Quando não vemos remedio para alguma cousa, de repente apparece uma solução feliz... E' ter paciencia... Uma pessoa não vale menos por ser pobre...

—De certo quenão! Confirmou dona Etelvina, vindo da cozinha com o café na bandeja. Para nós, rico ou pobre, o senhor será sempre o mesmo!

E estendeu ao compadre a bandeja, onde o café, coado de fresco, fumegava na tigellinha azul.


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