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A Viúva Simões/V

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-Çá va bien monsiu Auguste? perguntava a Simplícia ao copeiro, na cozinha, esganiçando-se e rindo para ele, que mal lhe respondia, com um sorriso desdenhoso.

- Diabo de negrinha assanhada! murmurava Benedita, remexendo as panelas.

- Ora veja só! Aquela treze de maio!.. Eu não sou negrinha sou moça morena, ouviu?

- Quem lhe ensinou francês?! perguntou o jardineiro a mulata, interrompendo o café que bebia pelo pires.

- Mamãe.

A Benedita riu-se alegremente, fartamente.

Simplícia na ausência de Ernestina chamava-a mamãe.

Ora veja se nhanhã ia-se cansá de ensinar franceis à negrinha! Seu João! Ela só sabe dizê aquilo!...

- Sei mais coisas!...

- Então converse com seu Augusto, prá gente vê...

O copeiro levou os talheres para a sala do jantar, sem querer dar confiança à pequena.

- Toma! gritou-lhe a Benedita; e estalou a língua depois de ter provado o feijão.

Simplícia acrescentou, espalmando no ar a mão curta e magra: - Deixe está, que ele me paga; inda há de gostá mais di mim do que eu gosto dele. Depois tirou do peito um lencinho da ama, muito perfumado, e começou a dançar, cantando alto: xó-xó-xó-araúna, para que o copeiro a ouvisse, sacudindo o lenço sobre a cabeça, hirsuta e cheia de terra, do hortelão.

- Sapeca! murmurou a Benedita com desprezo.

A dança continuou requebrada e lenta, até que ouviram a voz de Ernestina zangada por não encontrar ainda a mesa posta.

Calaram-se todos; caiu a casa no costumado e respeitoso silêncio.

A viúva voltara enfadada e nervosa; saíra à procura de Luciano e não o tinha encontrado. Onde estaria? Por que o amava assim?! Como podia um amor há tanto tempo extinto renascer com tamanha veemência ? Arrependia-se de ter saído; não queria pensar nele, nem amar ninguém. Aquilo era uma loucura que havia de passar. Desejava somente vê-lo mais uma vez, só uma vez... depois afastá-lo-ia da idéia. Ela não se pertencia, era da filha; tudo que havia ali devia ser da filha... tinha sido ganho pelo pai, com esforço, por amor dela...

Logo depois do jantar, Ernestina recolheu-se ao quarto, muito fatigada e nervosa. Parecia-lhe um sonho aquilo! Principiava a considerar ignominioso todo o tempo que vivera ao lado do marido, na pacatez burguesa e honesta do seu lar. Lembrando-se dos beijos que o esposo lhe dera, esfregava com força os lábios e as faces, como se os sentisse ainda e os quisesse arrancar da pele. Chegou a lamentar o nascimento da filha, mas desse sentimento arrependeu-se depressa; adorava Sara, e queria-a sempre bem pertinho de si, conquanto desse razão a Luciano; afinal, o ciúme dele lisonjeava-a... Se Luciano aborrecia Sara era porque a amava, a ela, e a pequena era a recordação viva e inextinguível do pai...

Andou pelo quarto, febrilmente, até o anoitecer.

Volta e meia esbarrava com algum objeto que pertencera ao marido e desviava o olhar, indignada de o ver ainda ali, na intimidade do seu quarto. Ernestina encostou-se por fim à janela: a tarde morria rapidamente; toda a terra lhe parecia escura, de uma tristeza singular: o mar, ao longe, como que um deserto de cinza; as casas, túmulos dispersos; as árvores, sombras negras e mudas!

Ernestina sentia as lágrimas queimarem-lhe as pálpebras, o coração grosso pesando-lhe no peito, e uma raiva crescente de tudo, de todos! Ficou por muito tempo olhando, até que as luzes de gás bordaram toda a cidade de pontos luminosos. Num canto, um foco de luz clara enluarava um grande círculo em um nimbo indistinto, e a viúva, aconchegando os braços ao corpo friorento, olhava para a luz, fixa, abstratamente.

Eram sete horas quando desceu ao jardim à procura da filha. Encontrou-a trepada numa escada de mão, debruçada no muro, conversando para o quintal vizinho, com a sua amiga Georgina.

Desta vez era Sara quem descrevia as suas impressões, narrando episódios vulgares do passeio e relatando o número de pessoas conhecidas, com que se tinha encontrado.

Ernestina zangou-se, desabafando contra a filha toda a sua cólera.

- Que é isso! Estás aqui com este frio?! Eu depois que te ature se ficares doente! Vamos; para dentro, anda!

- Já vou, mamãe... adeus Gina!

- Então! Que modos são esses?

- Já estou descendo, mamãe!

- Vamos, vamos!

- Eu ainda hoje não tinha visto Gina...

- Nem há necessidade de se verem todos os dias! Estou farta de tolices!

A voz de Ernestina tornara-se brusca, imperativa.

Entraram ambas.

- Mamãezinha está zangada? perguntou Sara com doçura, abraçando a mãe.

Ernestina arrependeu-se e, envergonhada da sua aspereza, beijou a filha, dizendo-lhe com brandura:

- Vai tocar.

- Tocar?! E o luto?

O luto! O eterno luto? Era sempre a resposta! Passaram um serão melancólico. Às 18 horas recolheram-se aos quartos.

Ernestina não pôde dormir; a cama fazia-lhe mal; atormentava-a a idéia das noites que dormira ali, com o Simões.

Quinze dias depois Luciano fez-lhe a segunda visita. A viúva lamentou-se da sua ausência e indagou dos lugares que ele mais freqüentava.

Ele, muito calculadamente, mostrava-se frio, disse ter estado fora, na fazenda de um amigo, e a visita corre, às vezes silenciosa e sempre constrangida.

Quando Luciano saiu, Ernestina fechou-se no quarto, a chorar.

No dia seguinte, Sara, ao almoço, notou a falta da aliança no dedo da mãe.

- Há já muitos dias que ando sem ela, objetou Ernestina, perdi-a.

Sara mandou imediatamente a Simplícia procurar o anel. A mulata encontrava tudo, parecia ter o dom especial de adivinhar as coisas, o que fazia dizer à Benedita:

- Simplícia acha tudo que se some porque é ela mesma que esconde tudo que se pode sumir!

O anel não fora escondido por ela, entretanto achara-o rapidamente, embaixo de um dunkerque da sala. Aquilo acabou de contrariar Ernestina. Alegou que a aliança estava muito larga; o frio contraíra-lhe a carne...

Ela já não procurava lutar contra o seu amor; a resistência tinha-a martirizado inutilmente.

Passava os dias a pensar nele, nuns idílios de menina de quinze anos. Os criados já não sofriam a mesma fiscalização severa. Os armários ficavam abertos, a chave da dispensa nas mãos da Benedita, para regalo da Simplícia, que apreciava os seus copinhos de licor de cacau...

Uma noite em que a saudade e o desejo de ver Luciano apertaram, foram ao teatro.

Sara estava contentíssima, mas a mãe arrependeu-se depressa. Levavam uma peça grosseira, que a platéia aplaudia muito. Luciano não aparecia. A Simões não tirava os olhos das portas da entrada, esperando sempre que ele viesse, atraído pelo seu amor. Sentia febre e não prestava atenção ao que se passava em cena. As gargalhadas e os aplausos atormentavam-na. À saída, quando já nada esperava, teve uma surpresa: Luciano conversava num grupo de rapazes, perto do teatro. Ele destacando-se da roda, foi cumprimentá-la.

- Vieram de carro, não? Perguntou, procurando em redor com a vista.

- Não... viemos de bonde...

- Sozinhas?! E mostrou espanto.

Ernestina ficou embaraçada.

- Que tem isso? objetou Sara, o luar está tão lindo que até convida a irmos a pé até o ascensor!

- Sim... mas não é prudente arriscarem-se duas senhoras moças a andar por estas horas na rua, sem um cavalheiro.

Luciano acompanhou-as; ia ao lado da viúva censurando-a pela mal escolha do teatro e por virem ambas tão sós. Achou-a linda nessa noite.

Ela calava-se, sem confessar que todas aquelas loucuras as fazia por ele, mesmo com prejuízo da filha! Passadas as ruas de maior movimento, ele deu-lhe o braço e curvou-se meigo para ela.

- Lembra-se de uma noite de luar como esta, em que andamos de braço pela chácara do tio Gustavo?

- Se me lembro!... Dias depois foi o senhor para a Europa...

- E um ano depois recebi a notícia do seu casamento...

A evocação do tempo passado tornou a envolvê-los na mesma familiaridade da primeira visita. Sara andava na frente, cantarolando baixo os couplets que ouvira; eles iam muito juntos, apertando-se as mãos e falando de amor.