A casa única

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— Como foi então, a história?

— Ouve.

— Estou ouvindo.

— Eu me formei muito cedo, antes dos vinte e dois anos, como tu sabes. Logo que me formei, graças ao meu Lugar de praticante dos Correios e o rendimento de algumas apólices, pude alugar um escritório, comprar um anel simbólico, um guarda-chuva de castão de ouro, uma pasta de couro, enfim todo o arreamento de um grande advogado. Tive a imagem disso, antes da sensação... Passei a trabalhar nos Correios à noite; e, durante o dia, logo pelas primeiras horas vinha para a cidade, ia ao escritório, onde tinha um empre­gado de sociedade com o vizinho. Sentava-me então solenemente à secretária e esperava os clientes. Não vinham. Eu ficava uma, ou duas horas a folhear uns manuais, aborrecia-me e saía, tendo antes o cuidado de dizer ao pequeno, com muita ênfase: "Se vier alguém procurar-me, diga que fui al­moçar e já volto."

— Ias almoçar mesmo?

— Ia mesmo. Ainda havia dinheiro, não tinha torrado as apólices. Saía com pasta, fraque, guarda-chuva, etc., e ia ao Pascoal tomar um aperitivo e...

— Foi pena eu não te conhecer nesse tempo!

— Porque?

— Todos os dias te esperava, para pagares-me um tam­bém.

— Não fizeste falta.

— Como!

— Pois eu mesmo me encarreguei de travar relações com poetas, jornalistas e literatos e não havia dia em que não levasse um de reboque. Precisava da imprensa, para os meus planos...

— Que não soubeste executar.

— Vou te dizer porque.

— Estou ansioso pelo desfecho.

— Ia ao Pascoal com o Guedes, por exemplo, que hoje tem ou vai ter, cem mil-réis por mês que o Alves lhe dá, lá da sepultura. Começávamos a conversar eu, pasta, anel e guarda-chuva de cabo de ouro e outros apetrechos forenses e desandávamos a discorrer sobre negócios de versos, jornais e outras histórias correlativas.

— Foste sempre dado a estas coisas?

— Como todo mundo... Escrevi nas revistas de estudantes, fiz o discurso da turma; mas sempre tive medo dessas coisas de literatura.

— Porque?

— Porque? Por causa dos gramáticos que nunca se en­tendem.

— Mas os advogados?

— A coisa é mais escondida; não é tão...

— E quando vão para os apedidos?

— A crítica literária não intervém... Deixa-me contar a história com os diabos!

— Conta.

— Onde eu estava mesmo?

— Ias almoçar e encontravas o Guedes

—Bem. Muitas vezes, o Guedes seguia-me até o hotel e almoçávamos juntos. Em geral, porém, eu ia só. Almoçava, vinha tomar café fora, adquiria um charuto e lá ia eu, pasta, guarda-chuva de ouro, fraque, anel, etc., pela Rua do Ouvidor abaixo até a Rua do Carmo, onde tinha o escritório. Antes de entrar, perguntava precavidamente ao rapazote: José, veio alguém? Ao que ele respondia desconsoladamente: Ninguém, seu doutor. Entrava, descansava a pasta, etc., e esperava, mas...

— Como é que querias que viesse alguém, se não anun­ciavas?

— Não. Anunciei nos grandes jornais, durante muito tempo; e foi mesmo essa história de anúncios uma das causas de eu deixar a advocacia, porque...

— Como?

— Eu te conto. Tinha um camarada do colégio que fora sempre dado a esse negócio de revistas e jornais ... Era o Fontes... Um belo dia, apareceu-me ele no escritório e dis­se-me! - Castro, estou publicando uma revista - Os Suces­sos... -; Não sei se tu conheces? "Não", disse-lhe eu. Ele, o Fontes, abriu uma pasta igual à minha, e tirou de lá três números da tal revista. Folheei-os, achei-os bonitos, bem impressos, e enquanto isso o Fontes gabava os méritos de sua publicação. Perguntei-lhe com franqueza o que queria. "Pri­meiro, disse-me ele, a tua colaboração"...

— Colaboraste?

— Ouve. "Primeiro, disse-me Fontes, a tua colaboração; e, em seguida, que tu me dês um anúncio aqui, para esta seção - Momentos dos Advogados". Pensei um instante e per­guntei-lhe quanto era. "Pouco; cinco mil-réis por numero" , res­pondeu-me ele. Autorizei e logo que o tal anúncio no Mo­mento do Fontes, apareceu, nunca mais o meu escritório ficou às moscas. A toda hora e a todo instante, lá aparecia um diretor, um secretário, ou um gerente de revista a pedir o meu anúncio. Fui autorizando, na persuasão de que atraís­sem clientes; mas não me surgiu nenhum.

— Não devias ter sido tão pródigo ... Quanto te custou essa maluquice?

— Em um ano, cerca de dois contos de réis. A minha pequena fortuna ia-se e eu não conseguia obter nem uma causa; entretanto, teimava em ser um grande advogado. Todos os dias eu, pasta, guarda-chuva de ouro, anel, fraque, etc. íamos ao fórum e nada obtínhamos. Travei no fórum conhecimento com um escrevente juramentado, o Carvalhais. Era um rapaz adamado, abrilhantado, com uns ares importantes, uma pasta igual à minha, variando de roupas todos os dias e fazendo a noce com a maior distinção. Quase sempre be­bíamos juntos e ele me dizia sempre: "Doutor, hei de lhe arranjar uma coisa boa". "Pois bem, Carvalhais", respondia-lhe eu. Um dia, ao chegar ao fórum,logo topei com o Carva­lhais, acompanhado de um sujeito rústico, branco, musculoso, curto, a quem me apresentou, como precisando dos meus serviços. "Pois não", fiz eu muito contente. "Então", respondeu o Carvalhais, "vamos todos ao tabelião". Fomos. Lá, Carvalhais falou a um colega, que abriu um grande livro, e eu mais o cliente ficamos sentados à espera. Daí a pouco, fui chamado por Carvalhais. Assinei o tal livro, o cliente também, Carvalhais também. "Agora", disse-me Carvalhais, "vamos até ao escritório do doutor, pois temos ainda o que fazer". Assim fizemos. Em lá chegando, ele me deu três ou quatro papéis a assinar - o que fiz sem os ler.

— Homessa!

— Paciência filho; espera! Acabado o que, ele, o Carvalhais, me disse: "Doutor, não há serviço que não mereça paga". Tirou do bolso seis notas de quinhentos mil-réis e me deu. Despediu-se amavelmente e foi-se com o meu cliente.

— Qual era a causa?

— Tu sabes?

— Não.

— Nem eu... No dia seguinte, fechei o escritório.

O Malho, Rio, 28-6-1919.