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A escrava Isaura/II

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Capitulo II.
 

Os cavalleiros, que acabavão de apear-se, erão dous bellos e elegantes mancebos, que chegavão da villa de Campos. Do modo familiar, por que forão entrando, logo se deprehendia que era gente de casa.

De feito um era Leoncio, marido de Malvina; e outro Henrique, irmão da mesma.

Antes de irmos adiante forçoso nos é travar conhecimento mais intimo com os dous jovens cavalheiros.

Leoncio era filho unico do rico e magnifico commendador Almeida, proprietario da bella e sumptuosa fazenda, em que nos achamos. O commendador já bastante idoso e cheio de enfermidades depois do casamento de seo filho, que tivera lugar um anno antes da época, em que começa esta historia, havia-lhe abandonado a administração e uso-fructo da fazenda, e vivia na côrte, onde procurava allivio ou distracção aos achaques, que o atormentavão.

Leoncio achára desde a infancia nas larguezas e facilidades de seos paes amplos meios de corromper o coração e extraviar a intelligencia. Máo alumno e creança incorrigivel, turbulento e insubordinado, andou de collegio em collegio, e passou como gato por brasas por cima de todos os preparatorios, cujos exames todavia sempre salvára á sombra do patronato. Os mestres não se atrevião a dar ao nobre e munifico commendador o desgosto de ver seo filho reprovado. Matriculado na escola de medicina logo no primeiro anno enjoou-se daquella disciplina, e como seos paes não sabião contrarial-o, foi-se para Olinda afim de frequentar o curso juridico. Ali depois de ter dissipado não pequena porção da fortuna paterna na satisfação de todos os seos vicios e loucas fantasias, tomou tedio tambem aos estudos juridicos, e ficou entendendo, que só na Europa poderia desenvolver dignamente a sua intelligencia, e saciar a sua sêde de saber, em puros e abundantes mananciaes. Assim escreveo ao pae, que deo-lhe credito e o enviou a Paris, donde esperava vel-o voltar feito um novo Humboldt. Installado naquelle vasto pandemonium do luxo e dos prazeres, Leoncio raras vezes, e só por desfastio, ia ouvir as eloquentes prelecções dos eximios professores da época, e nem tão pouco era visto nos museos, institutos e bibliothecas. Em compensação era assiduo frequentador do Jardim Mabile, assim como de todos os cafés e theatros mais em voga, e tornára-se um dos mais afamados e elegantes leões dos boulevards. No fim de alguns annos, ora de residencia em Paris, ora de gyros recreativos pelas agoas e pelas principaes capitaes da Europa, tinha elle tão copiosa e desapiedadamente sangrado a bolsa paterna, que o commendador, a despeito de toda a sua condescendencia e ternura para com seo unico e querido filho, vio-se na necessidade de revocal-o á sombra dos patrios lares a fim de evitar uma completa ruina. Mas mesmo assim para não magoal-o colhendo-lhe subita e rudemente as redeas na carreira dos desvaríos e dissipações, assentou de attrahil-o suavemente acenando-lhe com a perspectiva de um rico e vantajosissimo casamento.

Leoncio pegou na isca e voltou á pátria um perfeito dandy, gentil e elegante como ninguem, trazendo de suas viagens em vez de conhecimentos e experiencia, enorme dose de fatuidade e petulancia, e um tão perfeito traquejo da alta sociedade, que o tomarieis por um principe. Mas o peor era, que se trazia o cerebro vazio, voltava com a alma corrompida e o coração estragado por habitos de devassidão e libertinagem. Alguns bons e generosos instinctos, de que o dotára a natureza, havião-se apagado em seo coração ao roçar de pessimas doutrinas confirmadas por exemplos ainda peores.

De volta da Europa, Leoncio contava vinte e cinco annos. O pae advertio-lhe com palavras insinuantes e geitosas, que já era tempo de empregar-se em alguma cousa, de abraçar alguma carreira; que já se tinha aproveitado da bolsa paterna mais do que era preciso para sua educação, e que era mister ir aprendendo senão a augmentar, ao menos a conservar uma fortuna, á testa da qual teria de achar-se mais tarde ou mais cedo. Depois de muita hesitação, Leoncio optou emfim pela carreira do commercio, que lhe pareceo ser a mais independente e segura de todas; mas as suas idéas largas e audaciosas a este respeito aterrárão o bom do commendador. O commercio de importação e exportação de generos, mesmo em larga escala, o proprio trafego de africanos, lhe parecião especulações degradantes e improprias de sua alta posição e esmerada educação. O negocio de balcão e a retalho, esse inspirava-lhe asco e compaixão. Só lhe convinhão as altas especulações cambiaes, as operações bancarias, e transacções, em que jogasse com avultados capitaes. Só assim poderia duplicar, triplicar em pouco tempo a fortuna paterna. Com o que tinha observado na Bolsa de Paris e em outras praças europeas, presumia-se com habilitação bastante para dirigir as operações do mais importante estabelecimento bancario, ou as mais grandiosas emprezas industriaes.

O pae porém não se animou a confiar sua fortuna aos azares especulativos daquelle financeiro em botão, e que até ali só tinha dado provas de grande talento para consumir, em pouco tempo e em pura perda, sommas consideraveis. Resolveo portanto a não tocar-lhe mais naquelle assumpto, esperando que o mancebo creasse mais algum juizo.

Vendo que seo pae esquecia-se completamente dos planos de crear-lhe um peculio proprio, Leoncio olhou para o casamento como o meio suave e natural de adquirir fortuna, como a unica carreira, que se lhe offerecia para ter dinheiro a esbanjar a seo bel-prazer.

Malvina, a formosa filha de um riquissimo negociante da côrte, amigo do commendador, já estava destinada a Leoncio por commum accordo e acquiescencia dos paes de ambos. A familia do commendador foi á côrte; os moços virão-se amárão-se e casárão; foi cousa de poucos dias. Pouco tempo depois de seo casamento Leoncio passou pelo desgosto de perder sua mãe por um golpe inesperado. Esta boa e respeitavel senhora não tinha sido muito feliz nas relações da vida intima com seo marido, que como homem de coração arido e frio, desconhecia as santas e puras delicias da affeição conjugal, e com suas libertinagens e devassidões dilacerava quotidianamente o coração de sua esposa. Para cumulo de males tinha ella perdido ainda na infancia todos os seos filhos, ficando-lhe só Leoncio. Lastimava-se principalmente por não ter-lhe deixado o céo ao menos uma filha, que lhe servisse de companhia e consolação em sua desolada velhice. Quiz entretanto a sorte deparar-lhe em sua propria casa uma tal ou qual compensação a seos infortunios em uma fragil creatura, que veio de alguma sorte encher o vacuo, que sentia em seo bondoso e terno coração, e tornar menos triste e solitario o lar, em que passava os dias tão monotonos e enfadonhos.

Havia nascido em casa uma escravinha, que desde o berço attrahio por sua graça, gentileza e vivacidade toda a attenção e sollicitude da boa velha.

Isaura era filha de uma linda mulata, que fora por muito tempo a mucama favorita e a creada fiel da esposa do commendador. Este, que como homem libidinoso e sem escrupulos olhava as escravas como um serralho á sua disposição, lançou olhos cobiçosos e ardentes de lascivia sobre a gentil mocama. Por muito tempo resistio ella ás suas brutaes sollicitações; mas por fim teve de ceder ás ameaças e violencias. Tão torpe e barbaro procedimento não pôde por muito tempo ficar occulto aos olhos de sua virtuosa esposa, que com isso concebeo mortal desgosto.

Acabrunhado por ella das mais violentas e amargas exprobrações, o commendador não ousou mais empregar a violencia contra a pobre escrava, e nem tão pouco conseguio jámais por outro qualquer meio superar a invencivel repugnancia, que lhe inspirava. Enfureceo-se com tanta resistencia, e deliberou em seo coração perverso vingar-se da maneira a mais barbara e ignobil, acabrunhando-a de trabalhos e castigos. Exilou-a da sala, onde apenas desempenhava levianos e delicados serviços, para a senzala e os fragueiros trabalhos da roça, recommendando bem ao feitor, que não lhe poupasse serviço nem castigo. O feitor porém, que era um bom portuguez ainda no vigor dos annos, e que não tinha as entranhas tão empedernidas como o seo patrão, seduzido pelos encantos da mulata, em vez de trabalho e surras, só lhe dava caricias e presentes, de maneira que dahi a algum tempo a mulata deo á luz da vida a gentil escravinha, de que fallámos. Este facto veio exacerbar ainda mais a sanha do commendador contra a misera escrava. Expellio com improperios e ameaças o bom e fiel feitor, e sujeitou a mulata a tão rudes trabalhos e tão cruel tratamento, que em breve a precipitou no tumulo, antes que pudesse acabar de crear sua tenra e mimosa filhinha.

Eis ahi debaixo de que tristes auspicios nasceo a linda e infeliz Isaura. Todavia como para indemnisal-a de tamanha desventura, uma santa mulher, um anjo de bondade, curvou-se sobre o berço da pobre creança e veio amparal-a á sombra de suas azas caridosas. A mulher do commendador considerou aquella tenra e formosa cria como um mimo, que o céo lhe enviava para consolal-a das angustias e dissabores, que tragava em consequencia dos torpes desmandos de seo devasso marido. Levantou ao céo os olhos banhados em lagrimas, e jurou pela alma da infeliz mulata encarregar-se do futuro de Isaura, creal-a e educal-a, como se fosse uma filha.

Assim o cumprio com o mais religioso escrupulo. A’ medida, que a menina foi crescendo e entrando em idade de aprender, foi-lhe ella mesma ensinando a ler e escrever, a coser e a rezar. Mais tarde procurou-lhe tambem mestres de musica, de dança, de italiano, de francez, de desenho, comprou-lhe livros, e empenhou-se emfim em dar á menina a mais esmerada e fina educação, como o faria para com uma filha querida. Isaura por sua parte, não só pelo desenvolvimento de suas graças e attractivos corporaes, como pelos rapidos progressos de sua viva e robusta intelligencia, foi muito além das mais exageradas esperanças da excellente velha, a qual em vista de tão felizes e brilhantes resultados, cada vez mais se comprazia em lapidar e polir aquella joia, que ella dizia ser a perola entrançada em seos cabellos brancos. — O céo não quiz dar-me uma filha de minhas entranhas, — costumava ella dizer, — mas em compensação deo-me uma filha de minha alma.

O que porém mais era de admirar na interessante menina, é que aquella predilecção e extremosa sollicitude de que era objecto, não a tornava impertinente, vaidosa ou arrogante nem mesmo para com seos parceiros de captiveiro. O mimo, com que era tratada, em nada lhe alterava a natural bondade e candura do coração. Era sempre alegre e boa com os escravos, docil e submissa com os senhores.

O commendador não gostava nada do singular capricho de sua esposa para com a mulatinha, capricho, que qualificava de caduquice.

— Forte loucura! — costumava exclamar com accento de commiseração. — Está ahi se esmerando em crear uma formidavel tafulona, que lá pelo tempo adiante ha-de-lhe dar agoa pela barba. As velhas umas dão para rezar, outras para ralhar desde a manhã até á noute, outras para lavar cachorrinhos ou para crear pintos; esta deo para criar mulatinhas princezas. É um divertimento um pouco mais dispendioso na verdade; mas... que lhe faça bom proveito; ao menos emquanto se entretêm por lá com o seo embelego, poupa-me uma boa duzia de impertinentes e rabugentos sermões... Lá se avenha!...

Poucos dias depois do casamento de Leoncio, o commendador, com toda a familia, inclusive os dous novos desposados, transportou-se de novo para a sua fazenda de Campos. Foi então, que o commendador entregou a seo filho toda a administração e uso-fructo daquella propriedade, com toda a escravatura e mais acessorios nella existentes, declarando-lhe que achando-se já bastante velho, enfermo e cansado queria passar tranquilamente o resto de seos dias, livre de afazeres e preoccupações, para o que bastavão-lhe com sobegidão as rendas, que para si reservava. Feita em vida esta magnifica dotação a seo filho, retirou-se para a côrte. Sua esposa porém preferio ficar em companhia do filho, o que foi muito do gosto e approvação do marido.

Malvina, que apezar da sua vaidade aristocratica tinha alma candida e boa, e um coração bem formado, não pôde deixar de conceber logo desde o principio o mais vivo interesse e terna affeição pela captiva Isaura. Era esta com effeito de indole tão bondosa e fagueira, tão docil, modesta e submissa, que apezar de sua grande belleza e incontestaveis dotes de espirito, conquistava logo ao primeiro encontro a benevolencia de todos.

Isaura tornou-se immediatamente não direi a mucama favorita, mas a fiel companheira, a amiga de Malvina, que affeita aos prazeres e passatempos da côrte, muito folgou de encontrar tão boa e amavel companhia na solidão, que ia habitar.

— Por que razão não libertão esta menina? — dizia ella um dia á sua sogra. — Uma tão boa e interessante creatura não nasceo para ser escrava.

— Tem razão, minha filha, — respondeo bondosamente a velha; — mas que quer você?... não tenho animo de soltar este passarinho, que o céo me deo para me consolar e tornar mais supportaveis as pesadas e compridas horas da velhice.

E tambem libertal-a para que? Ella aqui é livre, mais livre do que eu mesma, coitada de mim, que já não tenho gostos na vida nem forças para gozar da liberdade. Quer que eu solte a minha patativa? e se ella transviar-se por ahi, e nunca mais acertar com a porta da gaiola?... Não, não, minha filha; emquanto eu for viva, quero têl-a sempre bem pertinho de mim, quero que seja minha, e minha só. Você ha-de estar dizendo lá comsigo — forte egoismo de velha! — mas tambem eu já poucos dias terei de vida; o sacrificio não será grande. Por minha morte ficará livre, e eu terei o cuidado de deixar-lhe um bom legado.

De feito a boa velha tentou por diversas vezes escrever seo testamento a fim de garantir o futuro de sua escravinha, de sua querida pupilla; mas o commendador, auxiliado por seo filho com delongas e futeis pretextos, conseguia ir sempre adiando a satisfação do louvavel e santo desejo de sua esposa, até o dia, em que fulminada por um ataque de paralysia geral, ella succumbio em poucas horas sem ter tido um só momento de lucidez e reanimação para expressar sua ultima vontade.

Malvina jurou sobre o cadaver de sua sogra continuar para com a infeliz escrava a mesma protecção e sollicitude, que a defunta lhe havia prodigalizado. Isaura pranteou por muito tempo a morte daquella, que havia sido para ella mãe desvelada e carinhosa; e continuou a ser escrava não já de uma boa e virtuosa senhora, mas de senhores caprichosos, devassos e crueis.