A escrava Isaura/VII
Na fazenda de Leoncio havia um grande salão toscamente construido, sem forro nem soalho, destinado ao trabalho das escravas, que se occupavão em fiar e tecer lã e algodão.
Os moveis deste lugar consistião em tripeças, tamboretes, bancos, rodas de fiar, dobadouras, e um grande tear collocado a um canto.
Ao longo do salão defronte de largas janellas guarnecidas de balaústres, que davão para um vasto pateo interior, via-se postada uma fila de fiandeiras. Erão de vinte a trinta negras, creoulas e mulatas, com suas tenras crias ao collo ou pelo chão a brincarem em derredor dellas. Umas conversavão, outras cantarolavão para encurtarem as longas horas de seo fastidioso trabalho. Vião-se ali caras de todas as idades, cores e feitios, desde a velha africana, trombuda e macilenta, até á roliça e luzidia crioula, desde a negra brunida como azeviche até á mulata quasi branca.
Entre estas ultimas distinguia-se uma rapariguinha a mais faceira e gentil que se pode imaginar nesse genero. Esbelta e flexivel de corpo, tinha o rostinho mimoso, labios um tanto grossos, mas bem modelados, voluptuosos, humidos, e vermelhos como boninas, que acabão de desabrochar em manhã de abril. Os olhos negros não erão muito grandes, mas tinhão uma viveza e travessura encantadora. Os cabellos negros e annelados, podião estar bem na cabeça da mais branca fidalga de além-mar. Ella porém os trazia curtos e mui bem frisados á maneira dos homens. Isto longe de tirar-lhe a graça, dava á sua physionomia zombeteira e espevitada um chiste original e encantador. Se não fossem os brinquinhos de ouro, que lhe tremião nas pequenas e bem molduradas orelhas, e os túrgidos e offegantes seios que como dois trêfegos cabritinhos lhe pulavão por baixo de transparente camisa, tomal-a-hieis por um rapazete maroto e petulante. Veremos em breve de que ralé era esta creança, que tinha o bonito nome de Rosa.
No meio do sussurro das rodas, que giravão, das monotonas cantarólas das fiandeiras, do compassado estrepito do tear, que trabalhava incessantemente, dos guinchos e alaridos das creanças, quem prestasse attento ouvido, escutaria a seguinte conversação, travada timidamente e a meia voz em um grupo de fiandeiras, entre as quaes se achava Rosa.
— Minhas camaradas, — dizia a suas vizinhas uma creoula idosa, matreira e sabida em todos os mysterios da casa desde os tempos dos senhores velhos, — agora que sinhô velho morreo, e que sinhá Malvina foi-se embora para a casa de seo pae della, é que nós vamos ver o que é rigor de captiveiro.
— Como assim, tia Joaquina?!...
— Como assim!... vocês verão. Vocês bem sabem, que sinhô velho não era de brinquedo; pois sim; lá diz o ditado = atrás de mim virá quem bom me fará =. Este sinhô moço Leoncio... hum!... Deos queira que me engane... quer-me parecer que vae-nos fazer ficar com saudade do tempo de sinhô velho...
— Cruz! ave Maria!... não falla assim, tia Joaquina!... então é melhor matar a gente uma vez...
— Este não quer saber de fiados nem de tecidos, não; e daqui a pouco nós tudo vae p’ra roça puxar enxada de sol a sol, ou p’ra o cafezal apanhar café, e o pirahy do feitor ahi rente atrás de nós. Vocês verão. Elle o que quer é café, e mais café, que é o que dá dinheiro.
— Também a dizer a verdade, não sei o que será melhor, — observou outra escrava, — se estar na roça trabalhando de enxada, ou aqui pregada na roda, desde que amanhece até nove, dez horas da noite. Quer-me parecer, que lá ao menos a gente fica mais á vontade.
— Mais á vontade?!.. que esperança! — exclamou uma terceira — Antes aqui mil vezes! aqui ao menos a gente sempre está livre do maldito feitor.
— Qual, minha gente! — ponderou a velha creoula, — tudo é captiveiro. Quem teve a desgraça de nascer captivo de um máo senhor, dê por aqui, dê por acolá, há-de penar sempre. Captiveiro é má sina; não foi Deos que botou no mundo semelhante cousa, não; foi invenção do diabo. Não vê o que aconteceo co’a pobre Juliana, mãe de Isaura?...
— Por fallar nisso, — atalhou uma das fiandeiras, — o que fica fazendo agora a Isaura?... em quanto sinhá Malvina estava ahi, ella andava de estadão na sala, agora...
— Agora fica fazendo as vezes de sinhá Malvina, — acudio Rosa com seo sorriso maligno e zombeteiro.
— Cala a boca, menina! — bradou com voz severa a velha creoula. — Deixa dessas fallas. Coitada da Isaura! Deos te livre a você de estar na pelle daquella pobresinha! se vocês soubessem, quanto penou a pobre da mãe della! ah! aquelle sinhô velho foi um home judeo mesmo, Deos te perdoe. Agora com Isaura e sinhô Leoncio a cousa vai tomando o mesmo rumo. Juliana era uma mulata bonita e sacudida; era da cor desta Rosa, mas inda mais bonita e mais bem feita....
Rosa deo um muchocho, e fêz um momo desdenhoso.
— Mas isso mesmo foi a perdição dela, coitada! — continuou a creoula velha. — O ponto foi sinhô velho gostar della... eu já contei a vocês o que é que aconteceo. Juliana era uma rapariga de brio, e por isso teve de penar, até morrer. Nesse tempo o feitor era esse siô Miguel, que anda ahi, e que é pai de Isaura. Isso é que era feitor bom!.. todo mundo queria elle bem, e tudo andava direito. Mas esse siô Francisco, que ahi anda agora, cruz nelle!.. é a peor peste que tem botado os pés nesta casa. Mas, como ia dizendo, o siô Miguel gostava muito de Juliana, e trabalhou, trabalhou até ajuntar dinheiro para forrar ella. Mas nhonhô não esteve por isso, ficou muito zangado, e tocou o feitor para fora.
Também Juliana pouco durou; perahy e serviço deo co’ela na cova em pouco tempo. Ficou ahi a pobre menina ainda de mama, e se não fosse sinhá velha, que era uma santa mulher, Deos sabe o que seria della!... também, coitada!... antes Deos a tivesse levado!...
— Por que, tia Joaquina?...
— Por que está-me parecendo, que ella vae ter a mesma sina da mãe...
— E o que mais merece aquella impostora? — murmurou a invejosa e malevola Rosa. — Pensa, que por estar servindo na sala é melhor do que as outras, e não faz caso de ninguem. Deo agora em namorar os moços brancos, e como o pae diz que ha-de forrar ella, pensa que e uma grande senhora. Pobre do senhor Miguel!.. não tem onde cahir morto, e ha-de ter para forrar a filha!
— Que má lingua é esta Rosa! — murmurou enfadada a velha creoula, relanceando um olhar de reprehensão sobre a mulata. — Que mal te fêz a pobre Isaura, aquella pomba sem fel, que com ser o que é, bonita e civilisada como qualquer moça branca, não é capaz de fazer pouco caso de ninguem?.. Se você se pilhasse no lugar della, pachóla e attrevida como és, havias de ser mil vezes peór.
Rosa mordeo os beiços de despeito, e ia responder com todo o atrevimento e desgarre, que lhe era proprio, quando uma voz áspera e atroadora, que partindo da porta do salão retumbou por todo elle, veio pôr termo á conversação das fiandeiras.
— Silencio! — bradava aquella voz. — Arre! que tagarelice!.. parece que aqui só se trabalha de lingua!..
Um homem espadaúdo e quadrado, de barba espessa e negra, de physionomia dura e repulsiva, apresenta-se á porta do salão, e vae entrando. Era o feitor. Acompanhava-o um mulato ainda novo, esbelto e aperaltado, trajando uma bonita libré de pajem, e conduzindo uma roda de fiar. Logo após elles entrou Isaura.
As escravas todas levantárão-se e tomárão a benção ao feitor. Este mandou collocar a roda em um espaço desoccupado, que infelizmente para Isaura ficava ao pé de Rosa.
— Anda cá, rapariga; — disse o feitor voltando-se para Isaura. — De hoje em diante é aqui o teo lugar; esta roda te pertence, e tuas parceiras que te dêm tarefa para hoje. Bem vejo, que te não ha-de agradar muito a mudança; mas que volta se lhe ha-de dar?... teo senhor assim o quer. Anda lá; olha, que isto não é piano, não; é acabar depressa com a tarefa para pegar em outra. Pouca conversa e muito trabalhar...
Sem se mostrar contrariada nem humilhada com a nova occupação, que lhe davão, Isaura foi sentar-se junto á roda, e pôz-se a preparal-a para dar começo ao trabalho. Posto que creada na sala, e empregada quasi sempre em trabalhos delicados, todavia era ella habil em todo o genero de serviço domestico: sabia fiar, tecer, lavar, engomar, e cosinhar tão bem ou melhor do que qualquer outra. Foi pois collocar-se com toda a satisfação e desembaraço entre as suas parceiras; apenas notava-se no sorriso, que lhe adejava nos labios, certa expressão de melancolica resignação; mas isso era o reflexo das inquietações e angustias, que lhe opprimião o coração, que não desgosto por se ver degradada do posto que ocupára toda sua vida junto de suas senhoras. Conscia de sua condição Isaura procurava ser humilde como qualquer outra escrava, por que a despeito de sua rara belleza e dos dotes de seo espirito, os fumos da vaidade não lhe entumecião o coração, nem turvavão-lhe a luz de seo natural bom senso. Não obstante porém toda essa modestia e humildade transluzia-lhe, mesmo a despeito della, no olhar, na linguagem e nas maneiras, certa dignidade e orgulho nativo, proveniente talvez da consciencia de sua superioridade, e ella sem o querer sobresahia entre as outras, bella e donosa, pela correcção e nobreza dos traços physionomicos e por certa distincção nos gestos e ademanes. Ninguem diria que era uma escrava, que trabalhava entre as companheiras, e a tomaria antes por uma senhora moça, que por desenfado fiava entre as escravas. Parecia a garça real, alçando o collo garboso e altaneiro, entre uma chusma de passaros vulgares.
As outras escravas a contemplavão todas com certo interesse e comiseração, por que de todas era querida, menos de Rosa, que lhe tinha inveja e aversão mortal. Em duas palavras o leitor ficará inteirado do motivo desta malevolencia de Rosa. Não era só pura inveja; havia ahi alguma cousa de mais positivo, que convertia essa inveja em odio mortal. Rosa havia sido de ha muito a amasia de Leoncio, para quem fôra facil conquista, que não lhe custou nem rogos nem ameaças. Desde que porém inclinou-se a Isaura, Rosa ficou inteiramente abandonada e esquecida. A gentil mulatinha sentio-se cruelmente ferida em seo coração com esse desdem, e como era maligna e vingativa, não podendo vingar-se de seo senhor, jurou descarregar todo o peso de seo rancor sobre a pessoa de sua infeliz rival.
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— Um raio que te parta, maldito! — Má lepra te consuma, cousa ruim! — Uma cascavel que te morda a lingoa, cão danado? — Estas e outras pragas vomitavão as escravas resmungando entre si contra o feitor, apenas este voltou-lhes as costas. O feitor é o ente mais detestado entre os escravos; um carrasco não carrega com tantos odios. E’ abominado mais do que o senhor cruel, que o munio do azorrague desapiedado para açoital-os e acabrunhal-os de trabalhos. E’ assim, que o paciente se esquece do juiz, que lavrou a sentença para revoltar-se contra o algoz, que a executa.
Como já dissemos, coube em sorte a Isaura sentar-se perto de Rosa. Esta assestou logo contra sua infeliz companheira a sua bateria de dicterios e remoques sarcasticos e irritantes.
— Tenho bastante pena de você, Isaura, disse Rosa para dar começo ás operações.
— Devéras! — respondeo Isaura, disposta a opor ás provocações de Rosa toda a sua natural brandura e paciencia. — Pois por que, Rosa?...
— Pois não é duro mudar-se da sala para a senzala, trocar o sofá de damasco por esse cepo, o piano e a almofada de cetim por essa roda? Por que te enxotárão de lá Isaura?
— Ninguém me enxotou, Rosa; você bem sabe. Sinhá Malvina foi-se embora em companhia de seo irmão para a casa do pae della. Portanto nada tenho que fazer na sala, e é por isso que venho aqui trabalhar com vocês.
— E por que é, que ella não te levou, você, que era o ai! Jesus della?... Ah! Isaura, você cuida que me embaça, mas está muito enganada; eu sei de tudo. Você estava ficando muito aperaltada, e por isso veio aqui para conhecer o seo lugar.
— Como és maliciosa! — replicou Isaura sorrindo tristemente, mas sem se alterar; — pensas então que eu andava muito contente e cheia de mim por estar lá na sala no meio dos brancos?... como te enganas!... se me não perseguires com a tua má lingua, como principias a fazer, creio que hei-de ficar mais satisfeita e socegada aqui.
— Nessa não creio eu; como é que você pode ficar satisfeita aqui, se não acha moços para namorar?
— Rosa, que mal te fiz eu, para estares assim a amofinar-me com essas fallas?...
— Olhe a sinhá não se zangue!... perdão, dona Isaura; eu pensei, que a senhora tinha esquecido os seos melindres lá no salão.
— Podes dizer o que quiseres, Rosa; mas eu bem sei, que na sala ou na cosinha eu não sou mais do que uma escrava como tu. Tambem deves-te lembrar, que se hoje te achas aqui, ámanhã sabe Deos onde estarás. Trabalhemos, que é nossa obrigação, e deixemos dessas conversas que não tem graça nenhuma.
Neste momento ouvem-se as badaladas de uma sineta; erão tres para quatro horas da tarde; a sineta chamava os escravos a jantar. As escravas suspendem seos trabalhos, e levantão-se; Isaura porém não se move, e continúa a fiar.
— Então? — diz-lhe Rosa com o seo ar escarninho, — você não ouve, Isaura? são horas; vamos ao feijão.
— Não, Rosa; deixem-me ficar aqui; não tenho fome nenhuma. Fico adiantando minha tarefa, que principiei muito tarde.
— Tem razão; tambem uma rapariga civilisadona e mimosa como você não deve comer do caldeirão dos escravos. Quer que te mande um caldinho, um chocolate?...
— Cala essa boca, tagarella! — bradou a creoula velha, que parecia ser a priora daquelle rancho de fiandeiras. — Forte linguinha de vibora!... deixa a outra socegar. Vamos, minha gente.
As escravas retirárão-se todas do salão, ficando só Isaura, entregue ao seo trabalho e mais ainda ás suas tristes e inquietadoras reflexões. O fio se estendia como que machinalmente entre seos dedos mimosos, emquanto o pésinho nu e delicado, abandonando o tamanquinho de marroquim, pousava sobre o pedal da roda, a que dava automatico impulso. A fronte lhe pendia para um lado como assucena esmorecida, e as palpebras meio cerradas eram como véos melancolicos, que encobrião um pégo insondavel de tristura e desconforto. Estava deslumbrante de belleza naquella encantadora e singela attitude.
— Ah! meo Deos! — pensava ella; nem aqui posso achar um pouco de socego!... em toda parte jurárão martyrizar-me!... Na sala os brancos me perseguem, e armão mil intrigas e enredos para me atormentarem. Aqui, onde entre minhas parceiras, que parecem me querer bem, esperava ficar mais tranquilla, ha uma, que por inveja ou seja lá pelo que fôr, me olha de revés e só trata de achincalhar-me. Meo Deos! meo Deos!... já que tive a desgraça de nascer captiva, não era melhor que tivesse nascido bruta e disforme, como a mais vil das negras, do que ter recebido do céo estes dotes, que só servem para amargurar-me a existencia?
Isaura não teve muito tempo para dar larga expansão ás suas angustiosas reflexões. Ouvio rumor na porta, e levantando os olhos vio que alguem se encaminhava para ella.
— Ai! meo Deos! — murmurou comsigo. — Ahi temos nova importunação! nem ao menos me deixão ficar sósinha um instante.
Quem entrava, era sem mais nem menos, o pajem André, que já vimos em companhia do feitor, e que mui ancho, empertigado e petulante se foi collocar defronte de Isaura.
— Boa tarde, linda Isaura. Então, como vae essa flor? — saudou o pachola do pajem com toda a faceirice.
— Bem, respondeo secamente Isaura.
— Estás amuada?... tens razão, mas é preciso ir-se accomodando com este novo modo de vida. Devéras que para quem estava acostumada lá na sala, no meio de sedas e flores e agoas de cheiro, ha-de ser bem triste ficar aqui mettida entre estas paredes enfumaçadas que só tresandão a sarro de pito e murrão de candeia.
— Tambem tu, André, vens por tua vez aproveitar-te da occasião para me atirar lama na cara?...
— Não, não, Isaura; Deos me livre de te offender; pelo contrario, dóe-me deveras dentro do coração ver aqui misturada com esta corja de negras beiçudas e catinguentas uma rapariga como tu, que só merece pisar em tapetes e deitar em colchões de damasco. Este senhor Leoncio tem mesmo um coração de fera.
— E que te importa isso? eu estou bem satisfeita aqui.
— Qual!... não acredito; não é aqui teo lugar. Mas tambem por outra banda estimo bem isso.
— Por que?
— Por que, emfim, Isaura, a fallar-te a verdade gosto muito de você, e aqui ao menos podemos conversar mais em liberdade...
— Devéras!... declaro-te desde já, que não estou disposta a ouvir tuas liberdades.
— Ah! é assim! — exclamou André todo enfunado com este brusco desengano. — Então a senhora quer só ouvir as finezas dos moços bonitos lá na sala!... pois olha, minha camarada, isso nem sempre pode ser, e cá da nossa laia não és capaz de encontrar rapaz de melhor figura, do que este seo criado. Ando sempre engravatado, enluvado, calçado, engomado, agaloado, perfumado, e o que mais é, — acrescentou batendo com a mão na algibeira, — com as algibeiras sempre a tinir. A Rosa, que tambem é uma rapariguinha bem bonita, bebe os ares por mim; mas coitada!... o que é ella ao pé de você?... Enfim, Isaura, se você soubesse quanto bem te quero, não havias de fazer tão pouco caso de mim. Se tu quizesses, olha... escuta.
E dizendo isto o maroto do pajem, avisinhando-se de Isaura, foi-lhe lançando desembaraçadamente o braço em torno do collo, como quem queria fallar-lhe em segredo, ou talvez furtar-lhe um beijo.
— Alto lá! — exclamou Isaura repellindo-o com enfado. — Está ficando bastante adiantado e atrevido. Retire-se daqui, senão irei dizer tudo ao senhor Leoncio.
— Oh! perdoa, Isaura; não ha motivo para você se arrufar assim. E’s muito má, para quem nunca te ofendeo, e te quer tanto bem. Mas deixa estar, que o tempo ha-de-te amaciar esse coraçãosinho de pedra. Adeos; eu já me vou embora; mas olha lá, Isaura; pelo amor de Deos, não vá dizer nada a ninguem. Deos me livre que senhô moço saiba do que aqui se passou; era capaz de me enforcar. O que vale, — continuou André comsigo e retirando-se, — o que vale é que neste negocio parece-me que elle anda tão adiantado como eu.
Pobre Isaura! sempre e em toda parte esta continua importunação de senhores e de escravos, que não a deixão socegar um só momento! Como não devia viver afflicto e attribulado aquelle coração! Dentro de casa contava ella quatro inimigos, cada qual mais porfiado em roubar-lhe a paz da alma, e torturar-lhe o coração: tres amantes, Leoncio, Belchior, e André, e uma emula terrivel e desapiedada, Rosa. Facil lhe fôra repellir as importunações e insolencias dos escravos e creados; mas que seria della, quando viesse o senhor!?...
De feito, poucos instantes depois Leoncio, acompanhado pelo feitor, entrava no salão das fiandeiras. Isaura, que um momento suspendera o seo trabalho, e com o rosto escondido entre as mãos se embevecia em amargas reflexões, não se apercebera da presença delles.
— Onde estão as raparigas que aqui costumão trabalhar?... perguntou Leoncio ao feitor, ao entrar no salão.
— Forão jantar, senhor; mas não tardarão a voltar.
— Mas uma cá se deixou ficar... ah! é a Isaura... Ainda bem! — reflectio comsigo Leoncio, — a occasião não pode ser mais favoravel; tentemos os ultimos esforços para reduzir aquella empedernida creatura. Logo que acabem de comer, — continuou elle dirigindo-se ao feitor, — leve-as para a colheita do café. Ha muito que eu pretendia recomendar-lhe isto e tenho-me esquecido. Não as quero aqui mais nem um instante; isto é um lugar de vadiação, em que perdem o tempo sem proveito algum, em continuas palestras. Não falta por ahi tecidos de algodão para se comprar.
Mal o feitor se retirou, Leoncio dirigio-se para junto de Isaura.
— Isaura! murmurou com voz meiga e commovida.
— Senhor! — respondeo a escrava erguendo-se sobresaltada; depois murmurou tristemente dentro d’alma: — meo Deos! é elle!... é chegada a hora do supplicio.