A escrava Isaura/XIX

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Capitulo XIX.
 

— Olha como arranjas isso, Rosa; esta rapariga é mesmo uma estouvada; não tem jeito para nada. Bem mostras que não nasceste para a sala; o teo lugar é na cosinha.

— Ora vejão lá a figura de quem quer me dar regras!... quem te chamou aqui, intromettido? O teo lugar tambem não é aqui, é lá na estribaria. Vae lá governar os teos cavallos, André, e não te intromettas no que não te importa.

— Cala-te dahi, toleirona; — replicou André mudando de lugar algumas cadeiras. — O que sabes é só tagarellar. Não é aqui o lugar destas cadeiras... Olha como estão estes jarros!.. ainda nem alimpaste os espelhos!.. forte desajeitada e preguiçosa que és!... No tempo de Isaura andava tudo isto aqui, que era um mimo; fazia gosto entrar-se nesta sala. Agora, é isto. Está claro que não és para estas cousas.

— Essa agora é bem lembrada! — retorquio Rosa, altamente despeitada. — Se tens saudades do tempo de Isaura, vae lá tiral-a do quarto escuro do tronco, onde ella está morando. Esse de certo ella não ha-de ter gosto para enfeital-o de flores.

— Cala a boca, Rosa; olha que tu tambem lá podes ir parar.

— Eu não, que não sou fujona.

— Por que não achas quem te carregue, senão fugirias até com o diabo. Coitada da Isaura! uma rapariga tão boa e tão mimosa, tratada como uma negra da cosinha! e não tens pena della, Rosa?

— Pena por quê, agora?.. quem mandou ella fazer das suas?

— Pois olha, Rosa, eu estava prompto a aguentar a metade do castigo que ella está soffrendo, mas na companhia della, está entendido.

— Isso pouco custa, André; é fazer o que ella fez. Vae, como ella, tomar ares em Pernambuco, que infallivelmente vaes para a companhia de Isaura.

— Quem déra!.. se soubesse que me prendião com ella, isso é que era um fugir. Mas o diabo é que a pobre Isaura agora vae deixar a nós todos para sempre. Que falta não vae fazer nesta casa!...

— Deixar como?

— Você verá.

— Foi vendida?..

— Qual vendida!

— Alhegada?

— Nem isso.

— Está forra?..

— Que abelhuda!.. Espera, Rosa; tem paciencia um pouco, que hoje mesmo talvez você venha a saber tudo.

— Ora ponha-se com mysterios... então o que você sabe, os outros não podem saber?..

— Não é mysterio, Rosa; é desconfiança minha. Aqui em casa não tarda a haver novidade grossa; vae escutando.

— Ah! ah! — respondeo Rosa galhofando. — Você mesmo está com cara de novidade.

— Psio!.. bico calado, Rosa!.. ahi vem nhonhô.

Pelo dialogo acima o leitor bem vê, que nos achamos de novo na fazenda de Leoncio, no municipio de Campos, e na mesma sala, em que no começo desta historia encontrámos Isaura entoando sua canção favorita.

Cerca de dous mezes são decorridos depois que Leoncio fôra ao Recife apprehender sua escrava. Leoncio e Malvina tinhão-se reconciliado, e vindos da côrte tinham chegado á fazenda na vespera. Alguns escravos, entre os quaes se acham Rosa e André, estão asseando o soalho, arranjando e espanando os moveis daquelle rico salão, testemunha impassivel dos mysterios da familia, de tantas scenas ora tocantes e enlevadoras, ora vergonhosas e sinistras, e que durante a ausencia de Malvina se conservára sempre fechado.

Qual é porém a sorte de Isaura e de Miguel, desde que deixárão Pernambuco? que destino deo Leoncio ou pretende dar áquella?.. por que maneira se reconciliou com sua mulher?

Eis o que passamos a explicar ao leitor, antes de proseguirmos nesta narrativa.

Leoncio tendo trazido Isaura para sua fazenda, a conservara na mais completa e rigorosa reclusão. Não era isto só com o fim de castigal-a ou de cevar sua feroz vingança sobre a infeliz captiva. Sabia quanto era ardente e capaz de extremos, o amor que o jovem pernambucano concebera por Isaura; tinha ouvido as ultimas palavras que Alvaro lhe dirigira = confia em Deos, e em meo amor; eu não te abandonarei. — Era uma ameaça, e Alvaro, rico e audacioso como era, dispunha de grandes meios para pôl-a em execução, quer por alguma violencia, quer por meio de astucias e insidias. Leoncio portanto não só encarcerava com todo o rigor a sua escrava, como tambem armou todos os seos escravos, que dahi em diante distrahidos quasi completamente dos trabalhos da lavoura, vivião em alerta dia e noite como soldados de guarnição a uma fortaleza.

Mas a alma ardente e feroz do joven fazendeiro não desistia nunca de seo louco amor, e nem perdia a esperança de vencer a isenção de Isaura.

E já não era só o amor ou a sensualidade, que o arrastava, era um capricho tyrannico, um desejo feroz e satanico de vingar-se della e do rival preferido. Queria gozal-a, fosse embora por um só dia, e depois de profanada e polluida, entregal-a desdenhosamente ao seo antagonista, dizendo-lhe: — Venha comprar a sua amante; agora estou disposto a vendel-a, e barato.

Encetou pois contra ella nova campanha de promessas, seducções e protestos, seguidos de ameaças, rigores e tyrannias. Leoncio só recuou diante das torturas e da violencia brutal, não por que lhe faltasse ferocidade para tanto, mas por que conhecendo a tempera heroica da virtude de Isaura, comprehendeo que com taes meios só conseguiria matal-a, e a morte de Isaura não satisfazia o seo sensualismo, e nem tão pouco a sua vingança. Portanto tratou de meditar novos planos, não só para recalcar debaixo dos pés o que elle chamava o orgulho da escrava, como de frustrar e escarnecer completamente as vistas generosas de Alvaro, tomando assim de ambos a mais cabal vingança.

Além de tudo, Leoncio via-se na absoluta necessidade de reconciliar-se com Malvina, não que o pundonor, a moral, e muito menos a affeição conjugal a isso o induzissem, mas por motivos de interesse, que em breve o leitor ficará sabendo. Com esse fim pois, Leoncio foi á côrte e procurou Malvina.

Além de todas as más qualidades que possuia, a mentira, a calumnia, o embuste, erão armas que manejava com a habilidade do mais refinado hypocrita. Mostrou-se envergonhado e arrependido do modo por que a havia tratado, e jurou apagar com o seo futuro comportamento até a lembrança de seos passados desvarios. Confessou com uma sinceridade e candura de anjo, que por algum tempo se deixára enlevar pelos attractivos de Isaura, mas que isso não passára de passageiro desvario, que nenhuma impressão lhe deixára na alma.

Além disso assacou mil aleives e calumnias por conta da pobre Isaura. Allegou que ella, como refinada loureira que era, empregára os mais subtis e ardilosos artificios para seduzil-o e provocal-o, no intuito de obter a liberdade em troco de seos favores. Inventou mil outras cousas, e por fim fez Malvina acreditar que Isaura fugira de casa seduzida por um galan, que ha muito tempo a requestava, sem que elles o soubessem; que fôra este, quem fornecêra ao pae della os meios de alforrial-a, e que não o podendo conseguir combinárão de mãos dadas e effectuárão o plano de rapto; que chegando ao Recife, um moço que tanto tinha de rico, como de extravagante e desmiolado, enamorando-se della a tomára a seo primeiro amante; que Isaura com seos artificios, dando-se por uma senhora livre o tinha enleado e illudido por tal forma, que o pobre moço estava a ponto de casar-se com ella, e mesmo depois de saber que era captiva não queria largal-a, e praticando mil escandalos e disparates estava disposto a tudo para alforrial-a. Fôra das mãos desse moço, que elle a fôra tomar no Recife.

Malvina, moça ingenua e credula, com um coração sempre propenso á ternura e ao perdão, deo pleno credito a tudo quanto aprouve a Leoncio inventar não só para justificar suas faltas passadas, como para predispor o comportamento que dahi em diante pretendia seguir.

Na qualidade de esposa offendida irritára-se outróra contra Isaura, quando surprehendêra seo marido dirigindo-lhe fallas amorosas; mas o seo rancor ia-se amainando, e se desvaneceria de todo, se Leoncio não viesse com falsas e aleivosas informações attribuir-lhe os mais torpes procedimentos. Malvina começou a sentir por Isaura desde esse momento, não odio, mas certo afastamento e desprezo, mesclado de compaixão, tal qual sentiria por outra qualquer escrava atrevida e mal comportada.

Era quanto bastava a Leoncio para associal-a ao plano de castigo e vingança, que projectava contra a desditosa escrava. Bem sabia, que Malvina com a sua alma branda e compassiva jámais consentiria em castigos crueis; o que meditava porém nada tinha de barbaro na apparencia, se bem que fosse o mais humilhante e doloroso flagicio imposto ao coração de uma mulher, que tinha consciencia de sua belleza, e da nobreza e elevação de seo espirito.

— E o que pretendes fazer de Isaura? perguntou Malvina.

— Dar-lhe um marido e carta de liberdade.

— E já achaste esse marido?

— Pois faltão maridos?... para achal-o não precisei sair de casa.

— Algum escravo, Leoncio?... oh!... isso não.

— E que tinha isso, uma vez que eu tambem forrasse o marido? era cré com cré, lé com lé. Bem me lembrei do André, que bebe os ares por ella; mas por isso mesmo não a quero dar áquelle maroto. Tenho para ella peça muito melhor.

— Quem Leoncio?

— Ora quem!... o Belchior.

— O Belchior!... exclamou Malvina rindo-se muito. — Estás cassoando; falla serio, quem é?...

— E’ o Belchior, senhora; fallo serio.

— Mas esperas acaso, que Isaura queira casar-se com aquelle monstrengo?

— Se não quizer peor para ella; não lhe dou a liberdade, e ha-de passar a vida enclausurada e em ferros.

— Oh!.. mas isso é demasiada crueldade, Leoncio. De que serve dar-lhe a liberdade em tudo, se não lhe deixas a de escolher um marido?... Dá-lhe a liberdade, Leoncio, e deixa ella casar-se com quem quizer.

— Ella não se casará com ninguem: irá voando direitinho para Pernambuco, e lá ficará muito lampeira nos braços de seo insolente taful, escarnecendo de mim...

— E que te importa isso, Leoncio? — perguntou Malvina com certo ar desconfiado.

— Que tenho!... — replicou Leoncio um pouco perturbado com a pergunta. — Ora que tenho!... é o mesmo que perguntar-me se tenho brio nas faces. Se soubesses como aquelle papalvo provocou-me atirando-me insultos atrozes!.. como desafiou-me com mil bravatas e ameaças, protestando que havia de arrancar Isaura ao meo poder. Se não fosse por tua causa, e tambem por satisfazer os votos de minha mãe, eu nunca daria a liberdade a essa escrava, embora nenhum serviço me prestasse, e tivesse de tratal-a como uma princeza, só para quebrar a prôa e castigar a audacia e petulancia desse impudente rufião.

— Pois bem, Leoncio; mas eu entendo que Isaura mais facilmente se deixará queimar viva, do que casar-se com Belchior.

— Não te dê isso cuidado, minha querida; havemos de catechizal-a convenientemente. Tenho cá forjado o meo plano, com o qual espero reduzil-a a casar-se com elle de muito boa vontade.

— Se ella consentir, não tenho motivo para me oppor a esse arranjo.

Leoncio de feito havia habilmente preparado o seo plano atroz. Tendo trazido do Recife a Miguel debaixo de prisão, juntamente com Isaura, ao chegar em Campos fêl-o encerrar na cadeia, e condenar a pagar todas as despezas e prejuizos que tivéra com a fuga de Isaura, as quaes fizéra orçar em uma somma exorbitante. Ficou portanto o pobre homem exausto dos ultimos recursos que lhe restavão, e ainda por sobre-carga devendo uma somma enorme, que só longos annos de trabalho poderião pagar. Como Leoncio era rico, amigo dos ministros, e tinha grande influencia no lugar, as autoridades locaes prestárão-se de boa mente a todas estas perseguições.

Depois que Leoncio, desanimado de poder vencer a obstinada reluctancia de Isaura, mudou o seo plano de vingança, foi elle em pessoa procurar a Miguel.

— Senhor Miguel, — disse-lhe em tom formalizado, — tenho commiseração do senhor e de sua filha, apesar dos incommodos e prejuizos que me tem dado, e venho propor-lhe um meio de acabarmos de uma vez para sempre com as desordens, intrigas e transtornos, com que sua filha tem perturbado minha casa e o soсego de minha vida.

— Estou prompto para qualquer arranjo, senhor Leoncio, — respondeo respeitosamente Miguel, — uma vez que seja justo e honesto.

— Nada mais honesto, nem mais justo. Quero casar sua filha com um homem de bem, e dar-lhe a liberdade; porém para esse fim preciso muito de sua coadjuvação.

— Pois diga em que lhe posso servir.

— Sei que Isaura ha-de sentir alguma repugnancia em casar-se com a pessoa que lhe destino, em razão de tola e extravagante paixão, que parece ainda ter por aquelle infame peralvilho de Pernambuco, que metteo-lhe mil caraminholas na cabeça, e encheo-a de idéas extravagantes e loucas esperanças.

— Creio que ella não deve lembrar-se desse moço senão por gratidão....

— Qual gratidão!.. pensa vm.ce que elle está fazendo muito caso della?.. tanto como do primeiro sapato que calçou. Aquillo foi um capricho de cabeça estonteada, uma phantasia de fidalgote endinheirado, e a prova aqui está; leia esta carta... O patife tem a sem cerimonia de escrever-me, como se entre nós nada houvesse, assim com ares de amigo velho, participando-me que se acha casado!... que tal lhe parece esta?.. que tenho eu com seo casamento!.. Mas isto ainda não é tudo; aproveitando a occasião, pede-me com todo o desfaçamento que em todo e qualquer tempo, que eu me resolva a dispôr de Isaura, nunca o faça sem participar-lhe, porque muito deseja têl-a para mucama de sua senhora! E’ até onde pode chegar o cynismo e a impudencia!...

— Com effeito, senhor!... isto da parte do senhor Alvaro é custoso de acreditar!

— Pois capacite-se com seos proprios olhos; leia; não conhece esta letra?...

E dizendo isto Leoncio apresentava a Miguel uma carta, cuja letra imitava perfeitamente a de Alvaro.

— A letra é delle; não resta duvida, — disse Miguel pasmado do que acabava de ler. — Ha neste mundo infamias, que custa-se a comprehender.

— E também lições crueis, que é preciso não desprezar, não é assim, senhor Miguel?... Pois bem; guarde essa carta para mostrar á sua filha; é bom que ella saiba de tudo para não contar mais com esse homem, e varrer do espirito as fumaças que por ventura ainda lhe toldão o juizo. Faça também vm.ce o que estiver em seo possivel a fim de predispôr sua filha para esse casamento, que é de muita vantagem, e eu não só lhe perdoarei tudo quanto me fica devendo, como lhe restituo o que já me deo, para vm.ce abrir um negocio aqui em Campos e viver tranquillamente o resto de seos dias, em companhia de sua filha e de seo genro.

— Mas quem é esse genro? Vª. Sª. me não disse ainda.

— E’ verdade;... esquecia-me. E’ o Belchior, o meo jardineiro; não conhece?...

— Muito!... oh! senhor!... com que miseravel figura quer casar minha filha!.. pobre Isaura!.. duvido muito que ella queira.

— Que importa a figura, se tem uma boa alma, e é honesto e trabalhador?..

— Lá isso é verdade; o ponto é ella querer.

— Estou certo que aconselhada e bem catechisada por vm.ce ha-de se resolver.

— Farei o que puder; mas tenho poucas esperanças.

— E se não quizer, peor para ella e para vm.ce: o dito por não dito; fica tudo como estava, — disse terminantemente Leoncio.

Miguel não era homem de tempera a luctar contra a adversidade. O captiveiro e reclusão perenne de sua filha, a miseria que se lhe antolhava acompanhada de mil angustias, erão para elle phantasmas hediondos, cujo aspecto não podia encarar sem sentir mortal pavor e abatimento. Não achou muito oneroso o preço pelo qual o deshumano senhor, livrando-o da miseria, concedia liberdade á sua filha, e acceitou o convenio.