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A escrava Isaura/XV

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Capitulo XV.
 

Já é passado cerca de um mez depois dos acontecimentos, que acabamos de narrar. Isaura e Miguel, graças á valiosa intervenção de Alvaro, continuão a habitar a mesma pequena chácara no bairro de Santo Antonio. Já não lhes sendo mais possivel pensar em fugir para mais longe nem occultarem-se, ali se conservão por conselho de seo protector, esperando o resultado dos passos que este se compromettera a dar em favor d’elles, porém sempre na mais angustiosa inquietação, como Damocles tendo sobre a cabeça, aguda espada suspensa por um fio.

Alvaro vae quasi todos os dias a casa dos dous foragidos, e ahi passa longas horas entretendo-os sobre os meios de conseguir a liberdade de sua protegida, e procurando confortal-os na esperança de melhor destino.

Para nos inteirarmos do que tem occorrido desde a fatal noite do baile, ouçamos a conversação que teve lugar em casa de Isaura entre Alvaro e o seo amigo D.r Geraldo.

Este na mesma manhã que seguio-se á noite do baile, deixára o Recife e partira para uma villa do interior, onde tinha sido chamado a fim de encarregar-se de uma causa importante. De volta á capital no fim de um mez, um de seos primeiros cuidados foi procurar Alvaro, não só pelo impulso da amisade, como também estimulado pela curiosidade de saber do desenlace que tivéra a singular aventura do baile. Não o tendo achado em casa por duas ou tres vezes que ahi o procurou, presumio que o meio mais provavel de encontral-o seria procural-o em casa de Isaura, caso ella ainda se achasse no Recife residindo na mesma chácara; não se illudio.

Alvaro, tendo reconhecido a voz de seo amigo, que da porta do jardim perguntava por elle, sahio ao seo encontro; mas antes disso, tendo assegurado aos donos da casa que a pessoa que o procurava, era um amigo intimo, em quem depositava toda confiança, pedio-lhes licença para o fazer entrar.

Geraldo foi introduzido em uma pequena sala da frente. Posto que pouco espaçosa e mobiliada com a maior simplicidade, era esta salinha tão fresca, sombria e perfumada, tão cheia de flores desde a porta da entrada, a qual bem como as janellas estava toda entrelaçada de ramos e festões de flores, que mais parecia um caramanchão ou gruta de verdura, do que mesmo uma sala. Quasi toda a luz lhe vinha pelos fundos atravez de uma larga porta dando para uma varanda aberta, que olhava para o mar. Dali a vista enfiando-se por entre troncos de coqueiros, que derramavão sombra e fresquidão em torno da casa, deslizava pela superficie do oceano, e ia embeber-se na profundidade de um céo limpido e cheio de fulgores.

Miguel e Isaura depois de terem cumprimentado o visitante e trocado com elle algumas palavras de mera civilidade, presumindo que quererião estar sós, retirárão-se discretamente para o interior da casa.

— Na verdade, Alvaro, — disse o doutor sorrindo-se, — é uma deliciosa morada esta, e não admira que gostes de passar aqui grande parte do teo tempo. Parece mesmo a gruta mysteriosa de uma fada. E’ pena, que um maldito nigromante quebrasse de repente o encanto de tua fada, transformando-a em uma simples escrava!

— Ah! não gracejes, meo doutor; aquella scena extraordinaria produzio em meo espirito a mais estranha e dolorosa impressão; porém, francamente te confesso, não mudou senão por instantes a natureza de meos sentimentos para com essa mulher.

— Que me dizes?... a tal ponto chegará a tua excentricidade?!...

— Que queres? a natureza assim me fez. Nos primeiros momentos a vergonha e mesmo uma especie de raiva me cegárão; vi quasi com prazer o transe cruel, porque ella passou. Que triste e pungente decepção! Vi em um momento desmoronar-se e desfazer-se em lama o brilhante castello, que minha imaginação com tanto amor tinha erigido!... uma escrava illudir-me por tanto tempo, e por fim ludibriar-me, expondo-me em face da sociedade á mais humilhante irrisão! faze idéa de quanto eu ficaria confuso e corrido diante daquellas illustres damas, com as quaes tinha feito ombrear uma escrava em pleno baile, perante a mais distincta e brilhante sociedade!...

— E o que mais é, — accrescentou Geraldo, — uma escrava, que as offuscava a todas por sua rara formosura e brilhantes talentos. Nem de proposito poderias preparar-lhes mais tremenda humilhação. E’ um crime, que nunca te perdoarão, posto que saibão que tambem andavas illudido.

— Pois bem, Geraldo; eu, que naquella occasião, desairado e confuso, não sabia onde esconder a cara, hoje rio e me applaudo por ter dado occasião a semelhante aventura. Parece que Deos de proposito tinha preparado aquella interessante scena, para mostrar de um modo palpitante quanto é van e ridicula toda a distincção, que provém do nascimento e da riqueza, e para humilhar até o pó da terra o orgulho e fatuidade dos grandes, e exaltar e ennobrecer os humildes de nascimento, mostrando que uma escrava pode valer mais que uma duqueza.

Pouco durou aquella primeira e desagradavel impressão. Bem depressa a compaixão, a curiosidade, o interesse, que inspira o infortunio em uma pessoa daquella ordem, e talvez tambem o amor, que nem com aquelle estrondoso escandalo pudéra extinguir-se em meo coração, fizerão-me esquecer tudo, e resolvi-me a proteger francamente e a todo o transe a formosa captiva. Apenas consegui que Isaura recobrasse os sentidos, e a vi fora de perigo, corri á casa do chefe de policia, e expondo-lhe o caso, graças ás relações de amisade, que com elle tenho, obtive permissão, para que Isaura e seo pae, — fica sabendo que é realmente seo pae, — podessem recolher-se livremente á sua casa, ficando eu por garante de que não desapparecerião; e assim se effectuou, a despeito dos bramidos do Martinho, que teimava em não querer largar a presa. Todavia no dia seguinte pela manhã, o mesmo chefe, pesando a gravidade e importancia do negocio, quiz que ella fosse conduzida á sua presença para interrogal-a e verificar a identidade de pessoa. Encarreguei-me de conduzil-a. Oh! se a visses então!... atravéz das lagrimas, que lhe arrancava sua cruel situação, transparecia em todo o seo brilho, a dignidade humana. Nada havia nella, que denunciasse a abjecção do escravo, ou que não revelasse a candura e nobreza de sua alma. Era o anjo da dôr exilado do céo e arrastado perante os tribunaes humanos. Cheguei a duvidar ainda da cruel realidade. O chefe de policia possuido de respeito e admiração diante de tão gentil e nobre figura, tratou-a com toda a amabilidade, e interrogou-a com brandura e polidez. Coberta de rubor e pejo confessou tudo com a ingenuidade de uma alma pura. Fugira em companhia de seo pae, para escapar ao amor de um senhor devasso, libidinoso e cruel, que a poder de violencias e tormentos tentava forçal-a a satisfazer seos brutaes desejos. Mas Isaura, a quem uma natureza privilegiada secundada pela mais fina e esmerada educação, inspirára desde a infancia o sentimento da dignidade e do pudor, repellio com energia heroica todas as seducções e ameaças de seo indigno senhor. Emfim ameaçada dos mais aviltantes e barbaros tratamentos, que já começavão a traduzir-se em vias de facto, tomou o partido extremo de fugir, o unico que lhe restava.

— O motivo da fuga, Alvaro, a ser verdadeiro é o mais honroso possivel para ella, e a torna uma heroina; mas... emfim de contas ella não deixa de ser uma escrava fugida.

— E por isso mesmo mais digna de interesse e compaixão. Isaura tem-me contado toda a sua vida, e segundo creio, pode allegar, e talvez provar direito á liberdade. Sua senhora velha, mãe do actual senhor, a qual creou-a com todo o mimo, e a quem ella deve a excelente educação que tem, tinha declarado por vezes diante de testemunhas, que por sua morte a deixaria livre; a morte subita e inesperada desta senhora, que falleceo sem testamento, é a causa de Isaura achar-se ainda entre as garras do mais devasso e infame dos senhores.

— E agora o que pretendes fazer?...

— Pretendo requerer, que Isaura seja mantida em liberdade, e que lhe seja nomeado um curador a fim de tratar do seo direito.

— E onde esperas encontrar provas ou documentos para provar as allegações que fazes?

— Não sei, Geraldo; desejava consultar-te, e esperava-te com impaciencia precisamente para esse fim. Quero que com a tua sciencia juridica me esclareças e inspires neste negocio. Já lancei mão do primeiro e mais obvio expediente que se me offerecia, e logo no dia seguinte ao do baile escrevi ao senhor de Isaura com as palavras as mais comedidas e suasivas, de que pude usar, convidando-o a abrir preço para a liberdade della. Foi péor; o libidinoso e ciumento Rajáh enfureceo-se e mandou-me em resposta esta carta insolente, que acabo de receber, em que me trata de seductor e acoutador de escravas alheias, e protesta lançar mão dos meios legaes para que lhe seja entregue a escrava.

— E’ bem parvo e descortêz o tal sultanete, — disse Geraldo depois de ter percorrido rapidamente a carta, que Alvaro lhe apresentou; — mas o certo é que, pondo de parte a insolencia...

— Pela qual ha-de me dar completa e solemne satisfação, eu o protesto.

— Pondo de parte a insolencia, se nada tens de valioso a apresentar em favor da liberdade da tua protegida, elle tem o incontestavel direito de reclamar e apprehender a sua escrava onde quer que se ache.

— Infame e cruel direito é esse, meo caro Geraldo. E’ já um escarneo dar-se o nome de direito a uma instituição barbara, contra a qual protestão altamente a civilisação, a moral e a religião. Porém tolerar a sociedade que um senhor tyrano e brutal, levado por motivos infames e vergonhosos, tenha o direito de torturar uma fragil e innocente creatura, só por que teve a desdita de nascer escrava, é o requinte da sceleratez e da abominação.

— Não é tanto assim, meo caro Alvaro; esses excessos e abusos devem ser cohibidos; mas como poderá a justiça ou o poder publico devassar o interior do lar domestico, e ingerir-se no governo da casa do cidadão? que abominaveis e hediondos mysterios, a que a escravidão dá lugar, não se passão por esses engenhos e fazendas, sem que, já não digo a justiça, mas nem mesmo os vizinhos, delles tenhão conhecimento?... Em quanto houver escravidão, hão-de se dar esses exemplos. Uma instituição má produz uma infinidade de abusos, que só poderão ser extinctos cortando-se o mal pela raiz.

— E’ desgraçadamente assim; mas se a sociedade abandona deshumanamente essas victimas ao furor de seos algozes, ainda ha no mundo almas generosas, que se incumbem de protegel-as ou vingal-as. Quanto a mim protesto, Geraldo, emquanto no meo peito pulsar um coração, hei-de disputar Isaura á escravidão com todas as minhas forças, e espero que Deos me favorecerá em tão justa e santa causa.

— Pelo que vejo, meo Alvaro, não procedes assim só por espirito de philantropia, e ainda amas muito a essa escrava.

— Tu o disseste, Geraldo; amo-a muito, e hei-de amal-a sempre; nem disso faço mysterio algum. E será cousa estranha ou vergonhosa amar-se uma escrava? O patriarcha Abraham amou sua escrava Agar, e por ella abandonou Sara, sua mulher. A humildade de sua condição não póde despojar Isaura da candida e brilhante aureola, de que a via e até hoje a vejo circumdada. A belleza e a innocencia são astros que mais refulgem quando engolphados na profunda escuridão do infortunio.

— E’ bella a tua philosophia, e digna de teo nobre coração; mas que queres? as leis civis, as convenções sociaes, são obras do homem, imperfeitas, injustas, e muitas vezes crueis. O anjo padece e geme sob o jugo da escravidão, e o demonio exalça-se ao fastigio da fortuna e do poder.

— E assim pois, — reflectio Alvaro com desanimo, — nessas desastradas leis nenhum meio encontras de disputar ao algôz essa innocente victima?

— Nenhum, Alvaro, em quanto nenhuma prova puderes adduzir em pro do direito de tua protegida. A lei no escravo só vê a propriedade, e quasi que prescinde nelle inteiramente da natureza humana. O senhor tem direito absoluto de propriedade sobre o escravo, e só pode perdel-o manumittindo-o ou albreando-o por qualquer maneira, ou por litigio provando-se a liberdade, mas não por sevicias que commetta ou outro qualquer motivo analogo.

— Miseravel e estupida papelada que são essas vossas leis. Para illaquear a boa fé, proteger a fraude, illudir a ignorancia, defraudar o pobre e favorecer a usura e rapacidade dos ricos, são ellas fecundas em recursos e estratagemas de toda a especie. Mas quando se tem em vista um fim humanitario, quando se trata de proteger a innocencia desvalida contra a prepotencia, de amparar o infortunio contra uma injusta perseguição, então ou são mudas, ou são crueis.

Mas não obstante ellas hei-de empregar todos os esforços ao meo alcance para libertar a infeliz do affrontoso jugo que a opprime. Para tal empreza alenta-me não já sómente um impulso de generosidade, como tambem o mais puro e ardente amor, sem pejo o confesso.

O amigo de Alvaro arripiou-se com esta deliberação tão franca e enthusiasticamente proclamada com essa linguagem tão exaltada, que lhe pareceo um deploravel desvario da imaginação.

— Nunca pensei, — replicou com gravidade, — que a tal ponto chegasse a exaltação desse teo excentrico e malfadado amor. Que por um impulso de humanidade procures proteger uma escrava desvalida, nada mais digno e mais natural. O mais não passa de delirio de uma imaginação exaltada e romanesca. Será airoso e digno da posição que occupas na sociedade, deixares-te dominar de uma paixão violenta por uma escrava?...

— Escrava! — exclamou Alvaro cada vez mais exaltado, — isso não passa de um nome vão, que nada exprime, ou exprime uma mentira. Pureza de anjo, formosura de fada, eis a realidade! Pode um homem ou a sociedade inteira contrariar as vistas do creador, e transformar em uma vil escrava o anjo que sobre a terra cahio das mãos de Deos?...

— Mas por uma triste fatalidade o anjo cahio do céo no lodaçal da escravidão, e ninguem aos olhos do mundo o poderá purificar dessa nodoa, que lhe mancha as azas. Alvaro, a vida social está toda juncada de forcas caudinas, por debaixo das quaes nos é forçoso curvar-nos, sob pena de abalroarmos a fronte em algum obstaculo, que nos faça cahir. Quem não respeita as conveniencias e até os preconceitos sociaes, arrisca-se a cahir no descredito ou no ridiculo.

— A escravidão em si mesma já é uma indignidade, uma ulcera hedionda na face da nação, que a tolera e protege. Por minha parte, nenhum motivo enxergo para levar a esse ponto o respeito por um preconceito absurdo, resultante de um abuso, que nos deshonra aos olhos do mundo civilisado. Seja eu embora o primeiro a dar esse nobre exemplo, que talvez será imitado. Sirva elle ao menos de um protesto energico e solemne contra uma barbara e vergonhosa instituição.

— E’s rico, Alvaro, e a riqueza te dá bastante independencia, para poderes satisfazer os teos sonhos philantropicos e os caprichos de tua imaginação romanesca. Mas tua riqueza, por maior que seja, nunca poderia reformar os prejuizos do mundo, nem fazer com que essa escrava, a quem segundo todas as apparencias quererias ligar o teo destino, fosse considerada, e nem mesmo admittida nos circulos da alta sociedade...

— E que me importão os circulos da alta sociedade, uma vez que sejamos bem acolhidos no meio das pessoas de bom senso, e coração bem formado? Demais enganas-te completamente, meo Geraldo. O mundo corteja sempre o dinheiro, onde quer que elle se ache. O ouro tem um brilho, que deslumbra, e apaga completamente essas pretendidas nodoas de nascimento. Não nos faltarão nunca, eu te affianço, o respeito, nem a consideração social, em quanto nos não faltar o dinheiro.

— Mas, Alvaro, esqueces-te de uma cousa muito essencial; e se te não fôr possivel obter a liberdade de tua protegida?...

A esta pergunta Alvaro empalideceo, e opprimido pela idéa de tão cruel como possivel alternativa, sem responder palavra olhava tristemente para o horizonte, quando o boleeiro de Alvaro, que se achava postado com sua caleça junto á porta do jardim, veio anunciar-lhe que algumas pessoas o procuravão e desejavão fallar-lhe, ou ao dono da casa.

— A mim! — resmungou Alvaro; por ventura estou eu em minha casa?... mas como tambem procurão o dono desta... faça-os entrar.

— Alvaro, disse Geraldo espreitando por uma janella, — se me não engano, é gente da policia; parece-me que lá vejo um official de justiça. Teremos outra scena igual á do baile?...

— Impossivel!... com que direito virião tocar-me no deposito sagrado, que a mesma policia me confiou?...

— Não te fies nisso. A justiça é uma deosa muito voluvel e fertil em patranhas. Hoje desmanchará o que fez hontem...