A escrava Isaura/XVII
Achando-se só, Alvaro sentou-se junto a uma mesa, e apoiando nella os cotovelos com a fronte entre as mãos, ficou a cismar profundamente.
Isaura porém, presentindo pelo silencio que reinava na sala, que já ali não havião pessoas estranhas, foi ter com elle.
— Senhor Alvaro, — disse ella chegando-se de manso e timidamente; — desculpe-me... eu venho de certo lhe aborrecer... queria talvez estar só...
— Não, minha Isaura; tu nunca me aborreces; pelo contrario és sempre bem vinda junto de mim...
— Mas vejo-o tão triste!... parece-me que aqui entrou mais gente, e alteravão-se vozes. Derão-lhe algum desgosto, meo senhor?...
— Nada houve de extraordinario, Isaura; forão algumas pessoas, que viérão procurar o doutor Geraldo.
— Mas então por que está assim triste e abatido?
— Não estou triste nem abatido. Estava meditando nos meios de arrancar-te do abysmo da escravidão, meo anjo, e elevar-te á posição para que o céo te creou.
— Ah! senhor, não se mortifique assim por amor de uma infeliz, que não merece taes extremos. E’ inutil luctar contra o destino irremediavel, que me persegue.
— Não falles assim, Isaura. Tens em bem pouca conta a minha protecção e o meo amor!...
— Não sou digna de ouvir de sua boca essa doce palavra. Empregue seo amor em outra mulher que delle seja merecedora, e esqueça-se da pobre captiva, que tornou-se indigna até de sua compaixão occultando-lhe a sua condição, e fazendo-o passar pelo vergonhoso desar de...
— Cala-te, Isaura... até quando pretendes lembrar-te desse maldito incidente?... eu sómente fui o culpado forçando-te a ir a esse baile, e tinhas razão de sobra para não revelar-me a tua desgraça. Esquece-te disso; eu te peço pelo nosso amor, Isaura.
— Não posso esquecer-me, porque os remorsos me avivão sempre n’alma a lembrança dessa fraqueza. A desgraça é má conselheira, e nos perturba e anuvia o espirito. Eu o amava, assim como o amo ainda, e cada vez mais... perdoe-me esta declaração, que é sem duvida uma ousadia na boca de uma escrava.
— Falla, Isaura, falla sempre, que me amas. Pudesse eu ouvir de teos labios essa palavra por toda a eternidade.
— Era um triste amor na verdade, um amor de escrava, um amor sem sorriso nem esperanças. Mas a ventura de ser amada pelo senhor era uma idéa tão consoladora para mim! amando-me o senhor me nobilitava a meos proprios olhos, e quasi me fazia esquecer a realidade de minha humilde condição. Eu tremia ao pensar que descobrindo-lhe a verdade, ia perder para sempre essa doce e unica consolação que me restava na vida. Perdoe, meo senhor, perdoe á escrava infeliz, que teve a louca ousadia de amal-o.
— Isaura, deixa-te de vãos escrupulos, e dessas phrases humildes, que de modo nenhum podem caber em teos labios angelicos. Se me amas, eu tambem te amo, por que em tudo te julgo digna do meo amor; que mais queres tu?.. Se antes de conhecer a condição em que nasceste, eu te amei subjugado por teos raros encantos, hoje que sei que a tantos attractivos reunes o prestigio do infortunio e do martyrio, eu te adoro, eu te idolatro mais que nunca.
— Ama-me, e é essa idéa, que ainda mais me mortifica!... de que nos serve esse amor, se nem ao menos posso ter a fortuna de ser sua escrava, e devo sem remedio morrer entre as mãos de meo algôz...
— Nunca, Isaura! — exclamou Alvaro com exaltação; — minha fortuna, minha tranquillidade, minha vida, tudo sacrificarei para libertar-te do jugo desse vil tyrano. Se a justiça da terra não me auxilia nesta nobre e generosa empreza, a justiça do céo se fará cumprir por minhas mãos.
— Oh! senhor Alvaro!... não vá sacrificar-se por uma pobre escrava, que não merece taes excessos. Abandone-me á minha sina fatal; já não é pouca felicidade para mim ter merecido o amor de um cavalheiro tão nobre e tão amavel, como o senhor; esta lembrança me servirá de alento e consolação em minha desgraça. Não posso porém consentir, que o senhor avilte o seo nome e a sua reputação, amando com tal extremo a uma escrava.
— Por piedade, Isaura, não me martyrizes mais com essa maldita palavra, que constantemente tens nos labios. Escrava tu!.. não o és, nunca o foste, e nunca o serás. Pode acaso a tyrania de um homem ou da sociedade inteira transformar em um ente vil, e votar á escravidão aquella que das mãos de Deos sahio um anjo digno do respeito e adoração de todos? Não, Isaura; eu saberei erguer-te ao nobre e honroso lugar a que o céo te destinou, e conto com a protecção de um Deos justo, por que protejo um dos seos anjos.
Alvaro não obstante ficar sabendo depois da noite do baile, que Isaura era uma simples escrava, nem por isso deixou de tratal-a dahi em diante com o mesmo respeito, defferencia e delicadeza, como a uma donzella da mais distincta jerarquia social. Procedia assim de accordo com os elevados principios que professava, e com os nobres e delicados sentimentos do seo coração. O pudor, a innocencia, o talento, a virtude e o infortunio, erão sempre para elle cousas respeitaveis e sagradas, quer se achassem na pessoa de uma princeza, quer na de uma escrava. Sua affeição era tão casta e pura como a pessoa que della era objecto, e nunca nem de leve lhe passára pelo pensamento abusar da precaria e humilde posição de sua amante, para profanar-lhe a candura immaculada. Nunca de sua parte um gesto mais ousado, ou uma palavra menos casta havião feito assomar ao rosto da captiva o rubor do pejo, e nem tão pouco os labios de Alvaro lhe havião roçado o mais leve beijo pelas virginaes e pudicas faces. Apenas depois de instantes e repetidas supplicas de Isaura, havia tomado a liberdade de tratal-a por tu, e isso mesmo quando se achavão a sós.
Sómente agora pela primeira vez, Alvaro, dominado pela mais suave e vehemente emoção, ao proferir as ultimas palavras, enlaçando o braço em torno ao collo de Isaura a cingia brandamente contra o coração.
Estavão ambos enlevados na doçura deste primeiro amplexo de amor, quando o ruido de um carro, que parou á porta do jardim, e logo após um forte e estrondoso — ó de casa! — os fizérão separar-se.
No mesmo momento entrava na sala o boleeiro de Alvaro, e annunciava-lhe que novas pessoas o procuravão.
— Oh, meo Deos!... que será isto hoje!... serão ainda os malditos esbirros?... — refletio Alvaro, e depois dirigindo-se a Isaura:
— E’ prudente que te retires, minha amiga, — disse-lhe; ninguem sabe o que será e não convém que te vejão.
— Ah! que eu não sirva senão para perturbar-lhe o socego! — murmurou Isaura retirando-se.
Um momento depois Alvaro vio entrar na sala um elegante e bello mancebo, trajado com todo o primor, e affectando as mais polidas e aristocraticas maneiras; mas apezar de sua belleza, tinha elle na physionomia, como Luzbel, um não sei quê de torvo e sinistro, e um olhar sombrio, que incutia pavor e repulsão.
— Este por certo não é um esbirro, — pensou Alvaro, e indicando uma cadeira ao recemchegado: — Queira sentar-se, — disse-lhe, — e tenha a bondade de dizer o que pretende deste seo criado.
— Desculpe-me, — respondeo-lhe o cavalheiro, passeando um olhar escrutador em roda da sala; — não é a Vª. Sª. que eu desejava fallar, mas sim ao morador desta casa ou a sua filha.
Alvaro estremeceo. Estava claro que aquelle mancebo, se bem que nenhuma apparencia tivesse de um esbirro, andava á pista de Isaura. Todavia no intuito de verificar, se era fundada a sua apprehensão, antes de chamar os donos da casa, quiz sondar as intenções do visitante.
— Não obstante, — respondeo elle, — como estou autorisado pelos donos da casa a tratar de todos os seos negocios, pode Vª. Sª. dirigir-se a mim, e dizer o que delles pretende.
— Sim, senhor; não ponho a menor duvida, pois o que pretendo não é nenhum mysterio. Constando-me com certeza, que aqui se acha acoutada uma escrava fugida por nome Isaura, venho apprehendel-a.....
— Nesse caso deve entender-se commigo, que sou o depositario dessa escrava.
— Ah!.. pelo que vejo, Vª. Sª. é o senhor Alvaro!..
— Um criado de Vª. Sª.
— Bem; muito estimo encontral-o por aqui; pois saiba tambem que eu sou Leoncio, o legitimo senhor dessa escrava.
Leoncio!.. o senhor de Isaura!.. Alvaro ficou como esmagado sob o peso desta fulminante e tremenda revelação. Mudo e attonito, contemplou por alguns instantes aquelle homem de sombria catadura, que se lhe apresentava aos olhos, implacavel e sinistro como Lucifer, prestes a empolgar a victima, que deseja arrastar aos infernos. Suor frio porejou-lhe pela testa, e a mais pungente angustia apertou-lhe o coração.
— E’ elle!.. é o proprio algôz!.. ai pobre Isaura!.. — foi este o écho lugubre, que remurmurou-lhe dentro d’alma enregelada pelo desalento.