A escrava Isaura/XXI

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Capitulo XXI.
 

— Então, Leoncio, — dizia Malvina a seo esposo no outro dia pela manhã, — déste as providencias necessarias para arranjar-se esse negocio hoje mesmo?

— Creio que é a centesima vez que me fazes essa pergunta, Malvina, — respondeo Leoncio sorrindo-se; — todavia pela centesima vez te responderei tambem, que as providencias que estão da minha parte, já forão todas dadas. Hontem mesmo mandei um proprio a Campos, e não tardarão a chegar por ahi o tabellião para passar escriptura de liberdade a Isaura com toda a solemnidade, e tambem o padre para celebrar o casamento. Bem vês que de nada me esqueci. Tratem de estar todos promptos; e tu, Malvina, manda já preparar a capella para se effectuar esse casamento, que pareces desejar com mais ardor, — accrescentou sorrindo, — do que desejaste o teo proprio.

Malvina sahio do salão, deixando Leoncio em companhia de um terceiro personagem, que tambem ali se achava, por nome Jorge, a quem o leitor ainda não conhece. Dizendo que era um parasita, ainda não temos dito tudo.

Este genero contém muitas variedades, e mesmo cada individuo tem sua côr e feição particular. Era um homem bem apessoado, espirituoso, serviçal, cheio de cortezia e amabilidade, condições indispensaveis a um bom parasita. Jorge não vivia da seiva e da sombra de uma só arvore; saltava de uma a outra, e assim peregrinava por longas distancias, o que era da sua parte um excellente calculo, pois proporcionava-lhe uma vida mais variada e recreativa, ao mesmo tempo que tornava sua companhia menos incommoda e fatigante aos seos numerosos amigos. Conhecia e entretinha relações de amizade com todos os fazendeiros das margens do Parahyba desde S. João da Barra até S. Fidelis. A crer no que dizia, andava sempre cheio de afazeres e dando andamento a mil negocios importantes, mas estava sempre prompto a prescindir delles a convite de qualquer desses amigos para passar uns oito ou quinze dias em sua companhia.

Na solidão em que Leoncio se achou depois de seo rompimento com Malvina, Jorge foi para elle um excellente recurso quando se achava na fazenda. Servia-lhe de companheiro não só á mesa, como ao jogo e á caça; entretinha-o a contar-lhe anecdotas divertidas e escandalosas, applaudia-lhe os desvarios e extravagancias, e lisonjeava-lhe as ruins paixões, emquanto Leoncio, que o acreditava realmente um amigo, fazia delle o seo confidente, e communicava-lhe os seos mais intimos pensamentos, os seos planos de perversidade, e os mais secretos negocios de familia.

Para melhor entrarmos no mysterio dos planos atrozes e ignobeis, das satanicas maquinações de Leoncio, ouçamos a conversação intima, que vão travar estes dous entes dignos um do outro.

— Até que por fim, Jorge, achei um meio engenhoso e seguro de aplanar todas as difficuldades. Desta maneira espero que tudo se vae arranjar ás mil maravilhas.

— Seguramente, e já de ante-mão te dou os parabens pelos teos triumphos, e applaudo-te pela feliz combinação de teos planos.

— Mas escuta ainda para melhor poderes comprehendel-os. Com este casamento ficão satisfeitos os desejos de minha mulher, sem que Isaura escape de todo ao meo poder. Como o pae della está debaixo de minha restricta dependencia, eu saberei reter junto de mim esse estupido jardineiro com quem caso-a, e depois... tu bem sabes, o tempo e a perseverança amansão as feras mais bravias. Entretanto a atrevida escrava receberá o castigo, que merece sua inqualificavel rebeldia. Era-me absolutamente necessario dar este passo, por que minha mulher recusa-se obstinadamente a reconciliar-se commigo, emquanto eu conservar Isaura captiva em meo poder, capricho de mulher, com que bem pouco me importaria, se não fosse.... — isto aqui entre nós, meo amigo; confio em tua discrição.

— Pode fallar sem susto, que meo coração é como um tumulo para o segredo da amizade.

— Bem; dizia-te eu, que bem pouco me importaria com os arrufos e caprichos de minha mulher, se não fosse o completo desarranjo em que desgraçadamente vão os meos negocios. Em consequencia de uma infinidade de circunstancias, que é escusado agora explicar-te, a minha fortuna está ameaçada de levar um baque horrendo, do qual não sei se me será possivel levantal-a sem auxilio estranho. Ora meo sogro é o unico, que com o auxilio de seo dinheiro ou de seo credito pode ainda escórar o edificio de minha fortuna prestes a desabar.

— Em verdade procedes com tino e prudencia consummada. Oh! teo sogro!.. conheço-o muito; é uma fortuna solida, e uma das casas mais fortes do Rio de Janeiro; teo sogro não te deixará ficar mal. Quer extremosamente á filha, e não quererá ver arruinado o marido della.

— Disso estou eu certo. Mas isto ainda não é tudo; escuta ainda, Jorge. O meo rival, esse tal senhor Alvaro, que tanto cobiçou a minha Isaura para sua amasia, que não teve pejo de seduzil-a, acoutal-a e protegel-a publica e escandalosamente no Recife, esse grotesco campeão da liberdade das escravas alheias, que protestou me disputar Isaura a todo o risco, ficará de uma vez para sempre desenganado de sua estulta pretensão. Vê pois, Jorge, quantos interesses e vantagens se concilião no simples facto desse casamento.

— Plano admiravel na verdade, Leoncio! — exclamou Jorge emphaticamente. — Tens um tino superior, e uma inteligencia subtil e fertil em recursos!.. se te desses á politica, asseguro-te que farias um papel eminente; serias um estadista consummado. Esse D. Quixote de nova especie, amparo da liberdade das escravas alheias, quando são bonitas, não achará senão moinhos de vento a combater. Muito havemos de nos rir de seo desapontamento, se lhe der na cabeça continuar sua burlesca aventura.

— Creio que nessa não cahirá elle; mas se por cá apparecesse, muito tinhamos que debical-o.

— Meo senhor, — disse André entrando na sala, — ahi estão na porta uns cavalheiros, que pedem licença para apear e entrar.

— Ah! já sei, — disse Leoncio, — são elles, são as pessoas que mandei chamar; o vigario, o tabellião e mais outros... bom! já não nos falta tudo. Vierão mais depressa do que eu esperava. Manda-os apear e entrar, André.

André sahe, Leoncio toca uma campainha, e apparece Rosa.

— Rosa, — diz-lhe elle, — vae já chamar sinhá Malvina, e Isaura, e o senhor Miguel e Belchior. Já devem estar promptos; precisa-se aqui já da presença de todos elles.

— Estou afflicto por ver o fim a esta farça, — disse Leoncio a seo amigo, — mas quero que ella se represente com certo apparato e solemnidade, para inculcar que tenho grande prazer em satisfazer o capricho de Malvina e melhor illudir a sua credulidade; mas, — fique isto aqui entre nós, — este casamento não passa de uma burla. Tenho toda a certeza, de que Isaura despreza do fundo d’alma esse miseravel idiota, que só em nome será seo marido. Entretanto ficarei me aguardando para melhores tempos, e espero que o meo plano surtirá o desejado effeito.

— Cá por mim não tenho a menor duvida a respeito do resultado de um plano tão maravilhosamente combinado.

Mal Jorge acabava de pronunciar estas palavras, appareceo á porta do salão um bello e joven cavalheiro, em elegantes trajos de viagem, acompanhado de mais tres ou quatro pessoas. Leoncio, que já ia pressuroso recebel-os e comprimental-os, estacou de repente.

— Oh!... não são quem eu esperava!.. murmurou comsigo. — Se me não engano... é Alvaro!....

— Senhor Leoncio! — disse o cavalheiro comprimentando-o.

— Senhor Alvaro, — respondeo Leoncio, — pois creio que é a esse senhor, que tenho a honra de receber em minha casa.

— E’ elle mesmo, senhor; um seo criado.

— Ah! muito estimo... não o esperava.... queira sentar-se.... quiz então vir dar um passeio cá pelas nossas provincias do sul?...

Estas e outras phrases banaes dizia Leoncio, procurando refazer-se da perturbação em que o lançára a subita e inesperada apparição de Alvaro naquelle momento critico e solemne.

No mesmo momento entravão no salão por uma porta interior Malvina, Isaura, Miguel e Belchior. Vinhão já preparados com os competentes trajos para a ceremonia do casamento.

— Meo Deos!... o que estou vendo!.. — murmurou Isaura, sacudindo vivamente o braço de Miguel; — estarei enganada?... nao;... é elle.

— E’ elle mesmo. Deos!.. como é possivel.

— Oh! — exclamou Isaura; e nesta simples interjeição, que exhalou como um suspiro, expressava o desafogo de um pégo de angustias, que lhe pesava sobre o coração. Quem de perto a olhasse com attenção veria um leve rubor naquelle rosto, que a dôr e os soffrimentos parecião ter condenado a uma eterna e marmorea palidez; era a aurora da esperança, cujo primeiro e timido arrebol assomava nas faces daquella, cuja existencia naquelle momento ia sepultar-se nas sombras de um lugubre occaso.

— Não esperava pela honra de recebel-o hoje nesta sua casa, — continuou Leoncio recobrando gradualmente o seo sangue frio e seo ar arrogante. — Entretanto ha-de permittir que me felicite a mim e ao senhor por tão opportuna visita. A chegada de Vª. Sª. hoje nesta casa parece um acontecimento auspicioso, e até providencial.

— Sim!?.. muito folgo com isso... mas não terá Vª. Sª. a bondade de dizer por que?..

— Com muito gosto. Saiba que aquella sua protegida, aquella escrava, por quem fez tantos extremos em Pernambuco, vae ser hoje mesmo libertada e casada com um homem de bem. Chegou Vª. Sª. mesmo a ponto de presenciar com os seos proprios olhos a realização dos philantropicos desejos, que tinha a respeito da dita escrava, e eu da minha parte muito folgarei, se Vª. Sª. quizer assistir a esse acto, que ainda mais solemne se tornará com a sua presença.

— E quem a liberta? — perguntou Alvaro sorrindo-se sardonicamente.

— Quem mais senão eu, que sou seo legitimo senhor, — respondeo Leoncio com altiva seguridade.

— Pois declaro-lhe, que o não pode fazer, senhor; — disse Alvaro com firmeza. — Essa escrava não lhe pertence mais.

— Não me pertence!.. — bradou Leoncio levantando-se de um salto, — o senhor delira ou está escarnecendo?..

— Nem uma, nem outra cousa, — respondeo Alvaro com toda a calma; — repito-lhe; essa escrava não lhe pertence mais.

— E quem se atreve a esbulhar-me do direito que tenho sobre ella?

— Os seos credores, senhor, — replicou Alvaro, sempre com a mesma firmeza e sangue frio. — Esta fazenda com todos os escravos; esta casa com seos ricos moveis, e sua baixella, nada disto lhe pertence mais; de hoje em diante o senhor não pode dispor aqui nem do mais insignificante objecto. Veja, — continuou mostrando-lhe um maço de papeis, — aqui tenho em minhas mãos toda a sua fortuna. O seo passivo excede extraordinariamente a todos os seos haveres; sua ruina é completa e irremediavel, e a execução de todos os seos bens vae lhe ser immediatamente intimada.

A um aceno de Alvaro, o escrivão que o acompanhava, apresentou a Leoncio o mandado de sequestro e execução de seos bens. Leoncio arrebatando o papel com mão trémula, passeou rapidamente por elle os olhos faiscantes de cólera.

— Pois que! — exclamou elle, — é assim violenta e atropelladamente, que se fazem estas cousas! por ventura não posso obter alguma moratoria, e salvar minha honra e meos bens por outro qualquer meio?..

— Seos credores já usárão para com o senhor de todas as condescendencias e contemporisações possiveis. Saiba ainda demais, que hoje sou eu o principal, se não o unico credor seo; pertencem-me, e estão em minhas mãos quasi todos os seos titulos de divida, e eu não estou de animo a admittir transacções nem protelações de natureza alguma. Dar seos bens a inventario eis o que lhe cumpre fazer; toda e qualquer evasiva que tentar será inutil.

— Maldição! — bradou Leoncio, batendo com o pé no chão e arrancando os cabellos.

— Meo Deos!.. meo Deos!.. que desgraça!.. e que.. vergonha!... exclamou Malvina soluçando.