A infanta D. Maria de Portugal e suas damas/Introducção
ANALYZAR a psyche portuguesa nas suas exteriorizações femininas, traçar o perfil, contar a vida de damas illustres, mesmo que não seja em volumosos estudos, mas apenas em esboços ligeiros, não é empresa facilmente realizavel.
E' bella, vasta e muito variada a galeria das que se salientaram na historia patria, tornando-se notaveis quer por qualidades de espirito pouco vulgares, quer por acções inclytas, ou apenas pela sorte ora tragica, ora commovedora que soffreram, ou emfim pela aureola de luz com que poetas por ellas inspirados cingiram as suas frontes.
Os materiaes para executar reconstrucções solidas são todavia escassos. Ha penuria de documentos authenticos e informações concretas e precisas; principalmente com respeito ás intellectuaes. De pouquissimas existem retratos fidedignos.
E o que é peor, nem uma só legou á posteridade confidencias intimas em Memorias, Confissões autobiographicas ou Cartas familiares — janellas da alma que revelam consciencias, segundo o dito de um afamado critico francês. Rarissimas são tambem as que escreveram obras de phantasia, em que, sob nomes de convenção, se retratam a si proprias, ou pelo menos espelham o caracter, a physiognomia mental, o seu mundo affectivo, o credo philosophico que professaram.
Só á luz de acontecimentos, mais ou menos documentados, e através de temperamentos alheios é que conseguimos distinguir a sua indole.
Encontram-se certamente, nas obras de alguns historiadores muitas noticias importantes, anecdotas caracteristicas, ditos que pintam — não sendo das peor partilhadas as figuras archaicas, esculpidas com poucos mas vigorosos traços em sarcophagos e epitaphios, sombreadas no pergaminho dos Livros de Linhagem, ou movidas no suave rytmo dos cantares de louvor ou de escarnio de trovadores; nem tão pouco as heroinas de chronistas ingenuos que narram com singeleza consoladora o successo que presenciaram e ouviram ou houverampor tradição. Possuimos tambem, do seculo XIV em deante, monographias de respeitaveis dimensões, especialmente sobre rainhas, infantas, duquesas, santas e martyres. Algumas são de incontestavel valor. Elucidam, porém, quando muito, sobre uma duzia de figuras. E isso imperfeitamente, pois na maioria dos casos a prosa rhetoricamente encomiastica dos biographos envolveu-as num nimbo vago de monotonas perfeições que faz sorrir ou desconfiar. Nota-se com desprazer a tendencia de tudo uniformizar, levantando-as todas até altura tal que não é possivel distinguir feições individuaes. Intencionalmente, ou não, as mulheres phenomenaes são apresentadas como sujeitas à regra commum. Enroupando-as num mesmo habito convencional conseguem torná-las parecidas, e muito, ao ideal feminino, tal como a antiguidade e a idade media o haviam creado, isto é ao typo da mulher boa, virtuosa, feliz que não tem biographia.
Todos sabem o que foi, o que é esse ideal.
«Vossa gloria será grande se guardardes intactas as virtudes mulheris, de sorte que entre os homens pouco haja a dizer de vós, quer a bem, quer a mal.»
Neste apophtegma hellenico (talhado, ha mais de dois millenios, por aquelle espirito sublime, em volta de cujos labios eloquentes volitava cada vez que os entreabria, Peitho ou seja Suada, a graciosa deusa da rhetorica persuasiva), neste apophtegma que forma na oração funebre aos heroes mortos nos primeiros annos da guerra do Peloponneso, a apostrophe final, dirigida por Pericles ás mulheres de Athenas que assistiam lacrymosas á inhumação dos filhos e maridos, encontra-se resumida a comprehensão do ideal feminino pela Grecia.
O genio latino, esse, condensou-o em estylo mais lapidar, mas com symbolismo transparente, no epitaphio inscripto na pedra tumular de Claudia Romana:
Casta vixit — domum servavit — lanam fecit.
Viveu casta — guardou o lar — e fiou la[1]
Na Allemanha dictam leis e ordenam imperativamente: a casa — esse é o teu dominio. Die Frau gehört ins Haus.
Em Portugal temos a mesma noção esthetica, modificada todavia em sentido catholico pelo christianismo peninsular. Sómente é discreta a que é santa, ou no seu teor original: solo es discreta quien es santa, visto que o engenhoso e agudo auctor da Arte de Galantaria preferiu a lingua castelhana á falla de seus avôs.
Fazendo sua esta ultima definição, os escriptores dos seculos XVII e XVIII que se occuparam da mulher portuguesa — no Theatro Heroino[2] — Jardim de Portugal[3] — Portugal illustrado pelo sexo feminino[4] — Flores de Hespanha[5] — Retratos e Elogios[6] — e quantas mais obras subsistem com titulo e caracter semilhante — retocaram em geral as feições das que floresceram em letras e armas, num fundo uniforme com pincel muito ascetico, pelo systema a que já alludi.
Cortando saliencias, calando defeitos e erros, dissimulando fraquezas e paixões, pondo em relevo exclusivamente feitos e ditos que abonam bons costumes (dando invariavelmente no fim a lista das obras pias, doações a igrejas, fundações de conventos, esmolas á pobreza, praticas devotas) facilitam a idealização, a classificação, mas privam-nos dos elementos necessarios para o desenho de quadros historicamente fieis, coloridos ao vivo, conformes à realidade. Assim dão a entender que louvores em summo grau são devidos não á mulher que sahiu da volgare schiera pelo esplendor da vida, dotes de espirito, formosura, manifestações de talento, genio ou actos de civismo; nem, como na concepção germanica, áquella que cultiva com desvelo, em volta do lar, virtudes domesticas; mas pelo contrario, que antepõem a todos os deveres a sua devoção. A's que sujeitando ás suas aspirações à condição severa de uma vida essencialmente de sacrificio, se dedicam á mais abstracta das obras de misericordia, rezando e mortificando-se por bens da sua alma e mais peccadores, gastando s suas forças vivas em exercicios espirituaes, occultas na penumbra o convento. A' mulher santa, virgem e freira — ou freiratica.
Solo es discreta quien es santa.
Dos seus Theatros e das suas Galerias ficaram excluidas por isso mesmo as entidades abertamente más, as naturezas problematicas, e as mulheres fataes, sem outra culpa que não seja o seu encanto feminil. Não quiseram saber das grandes exaltadas, peculiarmente caras aos investigadores modernos, como Soror Marianna, auctora da obra prima do amor feminino, nem das creaturas de alma voluptuosamente apaixonada, olhos, gestos e dizeres de creança que os poetas immortalizaram, como a Maria de Christovam Falcão, a das lagrimas doces; a Menina e Moça dos olhos verdes que enfeitiçou o romantico Bernardim Ribeiro; a Natercia de Camões, cabeça de ouro e neve figuras que em qualquer Pantheon moderno de notabilidades femininas hão de forçosamente constituir uma categoria á parte, e não a menos interessante e suggestiva.[7]
Ha muito que penso num tal Pantheon e junto materiaes para o construir.
As biographias que vou esboçar não foram todavia subordinadas a nenhum plano geral. Surgiram ao acaso: a primeira, a pedido dos editores do Plutarco Português,[8] a segunda para o jornal A Arte Portuguesa.[9] Ambas apparecem agora retocadas. Creio porém que mais tarde ainda terão de soffrer alterações sensiveis, a fim de entrarem num conjuncto mais vasto, e tambem porque ha subsidios ineditos que até hoje não me foi dado explorar. Determinou a escolha em ambos os casos um detalhe exterior, mas muito importante ― a subsistencia de retratos coevos, authenticos.
A Infanta D. Maria é figura digna de attenção debaixo de varios aspectos.
De sangue real, herdeira da corôa, se não morresse um anno antes da catastrophe de Alcacer-Quebir, pertence á historia e teve biographos conscienciosos.[10]
Em criança e na flôr da idade viu refulgir diante de seus olhos a corôa de França; foi escolhida repetidas vezes para o throno imperial ― orbis destinata imperio ― e outras tantas para o imperio de Hespanha. Acariciando sempre, no intimo do coração, este ultimo projecto, ficou ainda assim innupta, uma triste sempre-noiva. Este estado tragicomico que lhe foi imposto, mas que a final aceitou com sublime altivez, apparentando tê-lo escolhido livremente, despertou a dolente sympathia dos coevos.[11] E ainda hoje é capaz de suscitar a dos posteros.
Latina, blas-bleu, ou antes virago, no nobre sentido que a Renascença italiana deu ao malvisto palavrão,[12] faz excepção á regra commum, tomando logar na tribuna pouco povoada das eruditas portuguesas. Coarcta tambem neste caso pela educação que lhe deram, não renegou, mas antes aceitou, submissa e grata, essa sorte que o tempo e as condições mesologicas lhe haviam talhado. Mas no fim de contas, não sei se a despeito d'essas circumstancias ou devido a ellas, a princesa erudita fica a pouca ou nenhuma distancia do ideal commum, da mulher forte, exaltada pelos hagiographos portugueses, ou antes da Vierge forte. Será por causa da heroica abnegação e paciencia com que tomou sobre si a dupla empresa de solteira e sabia que não escolhera? ou por motivo dos amargos desgostos que fada alguma lhe havia profetizado no berço? ou emfim pela parte activa que teve na cruzada do bem, e pela pureza exemplar da sua conducta?
Tres vezes illustre ― no campo da historia, na republica das sciencias e artes, e na constellação das virtudes.
E para que nada lhe falte podiamos collocá-la egualmente na quarta categoria, entre as Inspiradoras. Não só porque em pleno renascimento, na era camoniana da litteratura portuguesa que é ao mesmo tempo a idade aurea do humanismo, serviu de assumpto a numerosos poetas e prosadores, em vernaculo e latim, mas tambem, porque foi amada, se a fama não mente, com paixão estremosa por um fidalgo da côrte ― parente d'aquell'outro namorado que, um seculo antes, de Amador de uma Infanta, se havia transformado em santo Frei Amador.[13]
O facto em si não pode ser comprovado, como direi no fim d'este estudo. E' mesmo muito provavel que seja mera lenda, como a loucura de Bernardim Ribeiro pela Infanta D. Beatriz. Mas a ser verdade, não prejudicava em nada a purissima fama de D. Maria, nem ia de encontro ao que sabemos dos costumes da época e em geral do genio amoroso dos antigos portugueses ― da sua constellação natural apurados no amor, a ponto de ser quasi costume entre elles o quererem impossiveis e o morrer, matar, ou enlouquecerem de magoa amorosa.
A quem objectar que a côrte de D. João e D. Catharina — introductores e fautores fanaticos da Inquisição e da Companhia de Jesus — era antes que tudo escola de santa doutrina, respondo que nem por isso deixou de ser o que fôra nos seculos anteriores: escola de fina galanteria, de onde sahiram mestres e modelos na arte de amar; e selva de aventuras romanticas onde se desenrolaram innumeros dramas de amor.
Ao dito de D. Francisco de Portugal sobre as damas portuguesas podia, quem quisesse, oppôr o de outro observador não menos sagaz — o mote: son enamoradas porque son discretas ou, virado ao enves, son discretas porque son enamoradas, apontando, além da Religiosa de Beja, muitos mais exemplos comprovativos de que os exercicios espirituaes, longe de embotarem, exaltam ás vezes aquella sensibilidade intensa de alma que aproxima o amor português (não meramente sensual e de cabeça, como costuma ser o da raça latina, mas profundo e de coração) ao dos slavos e germanos, embora com mais freqüencia resulte funesto.
Amor de perdição, e não de salvação.
Páro aqui. A indole amorosa dos portugueses não é assumpto d'estas paginas. Nem é da Infanta namorada (potencia incognita, se existiu), é de uma victima da politica, que vou tratar, de uma princesa que procurou e encontrou o seu consolo nas letras. Incidentalmente direi alguma cousa das suas principaes companheiras e mestras de estudo Joanna Vaz, Luisa e Angela Sigea ― as mais conhecidas entre as eruditas que cercavam a Infanta.[14]
Hortensia de Castro não pertence directamente ao circulo palaciano.[15] Vivendo longe de Lisboa na capital alemtejana e em Villaviçosa, apresenta aspecto menos cortesão e mais academico. Pelo saber classico é todavia irmã gemea das que brilhavam no paço real e no da Infanta.
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- ↑ E' admiravel a arte com que o sempre practico Romano condensou, em seis palavras, todo um programma de economia domestica.
- ↑ Damião de Froes Perim (anagramma de Frei João de S. Pedro), Theatro Heroino, abecedario historico e catalogo das mulheres illustres em armas, lettras, acções heroicas e artes litterarias, Lisboa, 1780.
- ↑ Frei Luis dos Anjos, Jardim de Portugal, Coimbra, 1626.
- ↑ Padre Manuel Tavares (servindo-se do nome de seu irmão Diogo Manuel Ayres de Azevedo), Portugal illustrado pelo sexo feminino, Noticia historica de muitas heroinas portuguesas que floresceram em virtudes, lettras e armas, Lisboa, 1735.
- ↑ Antonio de Sousa de Macedo, Flores de España, Excellencias de Portugal, 1631 e 1737.
- ↑ Retratos e Elogios dos Varões e Donas que illustraram a nação portugueza, 1806-1817. — Publicação promovida por Pedro José de Figueiredo (de cuja penna são as biographias na maior parte), em collaboração com Luis Duarte Villela da Silva, José da Cunha Taborda, e outros. — Cumpre-me citar ainda o Gynecæum Hispana Minerva sive de gentis nostra foeminis doctrina claris ad Bibliothecam Scriptorum, compilado por Nicolas Antonio e impresso no vol. II da Bibliotheca Hispana Nova (1672). Tambem são dignos de menção os capitulos que o consciencioso Desembargador Duarte Nunes de Leão dedicou ás mulheres lusitanas, na sua Descripçam de Portugal. No Cap. 88.o trata: Da honestidade e recolhimento das molheres portuguesas e de suas perfeições. No Cap. seguinte: Do valor e ensino das molheres portuguesas. No 90.o: Da habilidade das molheres portuguesas para as lettras e artes liberaes.
- ↑ Ignoro, se estava destinado a retratar essas inspiradoras un trabalho do poeta Luis de Palmeirim sobre A Mulher Portuguesa, varias vezes annunciado, e, subvencionado pelo estado, se não me engano, mas que nunca sahiu á luz.
- ↑ Plutarcho Portugues, Collecção de Retratos e Biographia dos principaes vultos historicos da civilisação portuguesa, Porto, 1882.
- ↑ A Arte Portugueza (Lisboa 1895) teve de recolher, infelizmente, após seis clangorosos toques de rebate.
- ↑ A lista dos auctores que se occuparam da Infanta é muito extensa. Citarei aqui apenas tres dos mais importantes, a que me refiro repetidas vezes neste estudo. O primeiro que emprehenden traçar o seu simile, ainda durante a sua vida, foi o historiador João de Barros num Panegyrico extensissimo, de 80 capitulos. Escripto quando D. João III a fez duquesa de Viseu, creio que em 1555, a obra sahiu ao cabo de um seculo, com as Noticias de Portugal de Severim de Faria (1655); novamente em 1675 (isto é intercalado na obra que consignarei em segundo logar), e ainda em 1740 e 1791. Com muito mais desenvolvimento tratou d'ella o historiador Frei Miguel Pacheco. O volume, amplamente documentado que lhe dedicou em castelhano — Vida de la Serenissima Infanta D. Maria (Lisboa, 1675) — consta de 204 folhas. — Nos nossos dias, o Conde de Villa-Franca publicou uns apontamentos que chama extractos de um estudo inedito, mas que a meu vêr constituem apenas um primeiro esboço de um livro projectado. Nelle ha alguma novidade, mas tambem muitas inexactidões. E' a Nota H do volume sobre D. João e a Alliança Ingleza, Lisboa, 1884.
- ↑ Riquezas, que costuman apressar casamentos, impediram-os no caso da Infanta, com espanto do publico, não iniciado nas machinações politicas. Variis casibus innupta (o que, bem interpretado, quer dizer: solteira por força maior ou considerações machiavellicas) ― joven que nunca teve dita para casar, sendo grande senhora ― eis o estribilho repetido pelos poetas, durante a sua vida e depois da sua morte, conforme o leitor verá.
- ↑ André de Resende, um dos admiradores mais enthusiasticos da sabia Infanta, chamou-a directamente animosa virago, em allocução solemne, perante a Academia reunida. Cf. Nota 59.
- ↑ Luciano Cordeiro occupou-se de D. João da Silva na interessante monographia sobre Infanta D. Leonor, Uma sobrinha do Infante, Lisboa, 1894.
- ↑ Confira-se p. 35 ― 44 d'esta monographia.
- ↑ Por licença poetica, os que se occupam do grupo da Infanta, costumam aggregar-lhe D. Hortensia de Castro. Cf. p. 36.