A reprovação universal

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Se alguém tivesse dúvida sobre a natureza cosmopolita dos interesses morais, cuja energia luta pela vida na questão que por excelência se ficou chamando, em França, l’Affaire, a maior das causas famosas, devia ter-se-lhe dissipado o erro, ao ouvir ecoar de S. Petersburgo, em pleno idílio da aliança franco-russa, na mais alta eminência da magistratura do grande império eslavo, o grito de reprovação, que partiu dos lábios do presidente do seu primeiro tribunal contra a anomalia trágica dessa iniqüidade.

Se a indignação britânica é politicamente suspeita, neste momento, às prevenções francesas, não lho poderia ser a opinião dos competentes, do profissionais, dos desinteressados da política no seio da nação, cuja amizade a França acabava de celebrar com todos os delírios do entusiasmo. E, quando quisessem acoimar de suspeita ainda a censura inglesa pelo seu ponto de vista inflexível em matéria de justiça, parece que se não poderia articular a mesma declinatória contra os protestos que ressoam das margens do Neva e do Danúbio. Foi a toga que se queixou em S. Petersburgo. Em Viena é a imprensa que clama.

A Neue Frei Presse, comentando o voto da Câmara dos Deputados, considera o projeto do governo francês como um expediente ignominioso, e, depois de se espraiar sobre as excentricidades e surpresas “desse pandemônio legislativo”, acrescenta:

“Das notícias de França a impressão é que as coisas não podem continuar por muito tempo no andar em que vão. Já se destruiu tudo o que era destrutível: os grandes princípios, a reputação no exterior e, no interior, a autoridade. Se houvesse um pretendente audaz, poderia de um só golpe dar em terra com todo esse arrui­nado edifício republicano.”

O Pester Lloyd pronuncia-se assim:

“Que se há de ajuizar do espírito público de um país, onde um pretenso governo republicano fere deliberada e diretamente no rosto a justiça, como acaba de fazer com este projeto, sem insurgir, inteiro, o Partido Republicano?... Verdade seja que nada há que recear pela tranqüilidade da Europa. Conquanto se possam filiar ao empenho em preservar o respeito ao exército todas as monstruosidades do caso Dreyfus, não há, em França, partido bastante insano, para imaginar que um exército com semelhante estado-maior à sua frente esteja apercebido para uma guerra estrangeira. Com tais chefes militares, e em presença do espírito que tão clamorosamente se tem manifestado na questão Dreyfus, a França é, na Europa, une quantité négligeable.”

A Fremdenblatt, que é uma folha semi-oficial, exprime-se com esta severidade:

“Difícil fora dizer quem, de presente, está governando a França. Parece que não será o governo, o qual anda a obedecer a influências a ele alheias, de obscura origem. Por enquanto, o homem que mais influente se mostra no país é o Sr. Q. de Beaurepaire... Para as gerações, que por ela tem pelejado em França, o valor da república tinha o seu centro na convicção de ser ela a forma de governo que melhor amparo oferecia à liberdade e à justiça. Se, depois de se dissiparem tantas outras ilusões, se esvaísse também esta, então a palavra república teria perdido, para a generalidade do povo, o sentido e a estima. Desvanecem-se assim os fundamentos essenciais do regímen, que só pela força do hábito continua a existir.”

Num editorial epigrafado com o título: O regime da covardia, a Wiener Tagblatt verte a sua indignação nestas palavras desabridas:

“Pode o Sr. Dupuy ficar, ou sair. Mas será impossível eliminar o fato desairoso de que de ora avante mais fácil é mover, naquele país, a opinião a poder de indignas falsidades, que pelo acatamento ao direito e à administração da justiça.”

Não são menos duras as palavras da Wiener Allgemeine Zeitung, num artigo de fundo encabeçado, em alusão ao membro demis­sionário do tribunal supremo com a rubrica de Juiz Ravachol:

“Que país! Vê-se aberto um abismo, ao cogitar-lhe no futuro. Quando qualquer funcionário tem nas suas mãos, por meio de alguns escritos de jornais, o arbítrio de provocar virtualmente uma revolução; quando o parlamento, os partidos e o povo se inflamam sob a influência das investidas, incrivelmente baixas e ridículas do primeiro sujeito, bem se podia logo entregar ao populacho das ruas a administração pública, e confiar aos contínuos dos tribunais a distribuição da justiça...

Reina, em França, completa anarquia. O que Beaurepaire exige, é nada mais nada menos que um golpe de estado desfechado, este, não pelos generais, mas pela Câmara dos Deputados, uma vez que ela rompe com o último asilo da Justiça, a Corte de Cassação.”

Mas, para que não fique só a estrangeiros a condenação do funesto precedente, iremos pedir ao próprio jornalismo francês dois juízos da mais alta autoridade.

O primeiro é do Temps:

“Quanto aos resultados do inquérito Mazeau francamente diremos que o nosso sentir é tal qual o da maioria da comissão, que aliás não diverge nem do da comissão toda, nem do do primeiro presidente Mazeau, nem dos dos conselheiros inqueridores, nem do do próprio Governo. Consiste, nesta grande pendência, a singularidade em que toda a gente está de acordo no ponto que é, ou devia ser capital. ‘Não há, neste inquérito, coisa nenhuma.’ Eis, em frase familiar, mas exata, o resumo de todos os pareceres oficiais a seu respeito até hoje. Também esse é o nosso, depois de ponderado e minucioso estudo. Afigura-nos que das sérias acusações proferidas contra os membros da Câmara Criminal da Corte de Cassação não subsiste nada. Seria impossível, nos limites de um artigo de gazeta, examinar, sucessivamente e por menor, cada uma das imputações, com a resposta que a destrói. Os nossos leitores, cada qual de per si, poderão refazer à sua parte este trabalho. Já o fizeram os membros da comissão parlamentar, com todo o cuidado que lhes impunha a sua responsabilidade. Tiveram de concluir que não estava provada uma só das queixas, acoimadas pelo relatório Rénault-Morlière, de mexericos, e que a inquirição da Câmara Criminal fora processada “nas condições normais”. E os dois comissários dissidentes dos seus nove colegas no voto sobre o projeto de lei, puseram timbre em consignar que não rendiam menor homenagem à regularidade dos atos da Câmara Criminal: ‘Pelo que toca aos magistrados da Câmara Criminal em sua boa-fé e honorabilidade não temos dúvida alguma.’ Hão de lembrar-se da categórica declaração do primeiro presidente Mazeau, cuja carta se acha referendada pelos conselheiros Dareste e Voisin. O mesmo Governo, na exposição de motivos, especifica nitidamente que dos magistrados em questão não tem a mínima desconfiança.

“Desde então pareceria haver-se de concluir, em boa lógica, pelo encerramento puro e simples do incidente. Se é legítimo desaforar magistrados indignos, evidentemente o será desaforar magistrados irrepreensíveis. O desaforamento de uma jurisdição regular no correr de um processo, é providência de terrível gravidade, contrária a todos os precedentes, a todos os princípios constitutivos das garantias onde assenta a justiça nos países civilizados. ‘É’, disse muito bem o Sr. Rénault-Morlière, ‘uma medida essencialmente ditatória, na pior acepção da palavra’.

“Compreender-se-ia a iniciativa do governo se convencessem a Câmara Criminal de quebra dos seus deveres. Mas a inanidade das increpações a ela assacadas alui pelos fundamentos o projeto. A missiva do Sr. Mazeau, concluindo pelo desaforamento, não era motivada. Também não a motiva o inquérito publicado. Fica destarte sem explicação o projeto de desaforamento.

“Sabe-se a que o governo dá. Trata-se, ao que ele expõe, de um ato de apaziguação, e é só com este intuito que se requer da Câmara o voto de desaforamento. Apaziguar a quem? Que coisa apaziguar? — Essa fração do povo, que argúi a Câmara Criminal? — Mas ela a crimina sem razão. É o em que convém o Governo. Mas então lhe bastará serem ultrajados esses juízes, posto que sem motivo, para que lhe pareça necessário satisfazer aos seus inimigos? Aí têm, hão de confessar, uma estranha teoria. De futuro, pois, não dependerá mais que do bel-prazer de alguns jornalistas ou oradores o inabilitarem qualquer tribunal regular, que lhes houver desagradado? Caso se reproduza contra as Câmaras reunidas da Corte de Cassação a campanha difamatória, julgar-se-á obrigado o governo a desaforar as câmaras reunidas? A conseqüência de tal sistema é impossibilitar a distribuição da justiça.

“Dizia, na tribuna, há algumas semanas, o Sr. Lebret: ‘Não posso prescindir de declarar, perante a Câmara, a minha admiração pela serenidade, pela calma, com que, a despeito das afrontas cada dia recebidas, a despeito das injustificadas acusações que a alvejam, a Corte de Cassação continua, em recolhimento, o exercício das suas altas funções, mostrando assim ter no mais alto grau o sentimento dos grandes deveres, que lhe incumbem, e em cuja altura se saberá liberar’. No dia 4 de novembro passado o Sr. Carlos Dupuy, Presidente do Conselho, impugnando o projeto de desaforamento apresentado pelo Sr. Gerville Réache, falava nestes termos: ‘Tão possível é de estudar para casos futuros uma proposta deste gênero, quão impossível de desaforar, como esta quer, num momento dado uma jurisdição já preventa’. Tanto quanto era, há três meses, a linguagem do Governo o transunto da sabedoria mesma, parece impossível agora, após a leitura da inquirição Mazeau, atinar com os motivos, que o determinaram a variar.”

Fale agora o Sr. Cornelis, do Figaro, que, após a sua evolução extraordinária perante a reação militar, ninguém poderia razoavelmente averbar de dreyfusismo:

“Acaba-se de ler o volumoso inquérito, que há de servir de preâmbulo à discussão do projeto de lei de circunstância deposto pelo governo. Esse inquérito foi transmitido ao guarda-selos mediante uma carta do Sr. Primeiro Presidente Mazeau que o julgado da Câmara Criminal não satisfaça a opinião pública. Oiço agora, pela primeira vez na minha vida, sustentar a um jurista que as sentenças da justiça têm por fim satisfazer a opinião pública. Até aqui supunha eu que aos juízes pouco se lhes desse da opinião pública, e que os seus arestos tivessem precisamente por objeto fixá-la, não lhe obedecer.

Se assim não fora, e o juiz tivera de consultar a opinião popular, não se percebe por que haveria tribunais, e o povo não dispensaria justiça diretamente, em vez de impor o seu talante aos magistrados.

Creio que essa carta ficará sendo histórica, e, enquanto se ensinar direito neste país, será mostrada aos jurisconsultos em novicia­do como um modelo para não imitar.

Aos leitores imparciais, os únicos cujo critério pesa e nos preo­cupa, o inquérito, com os seus depoimentos e certas dessas recriminações, a cujo despejo só se avantaja a simpleza dos queixosos, não parecerá certamente bastante, para subverter as regras usuais da competência e as formas tradicionais da justiça.

A julgar por mim, todos esses leitores sentir-se-ão dividir entre um sentimento de admiração e uma impressão de funda tristeza. Admirarão sinceramente esses magistrados, que se conservaram impassíveis, mudos e desdenhosos através dos convícios e aleives. Mas também se sentirão entristecidos e humilhados, vendo a que ponto se enxovalhou o tribunal supremo, e por que portas estreitas e baixas forçam a passar os seus juízes, para se justifi­carem.

Ah! quanto mal fizeram à sua terra os homens, que organizaram esta maquinação criminosa contra a justiça francesa, e os que, podendo obstá-lo, lho permitiram! Talvez nem o suspeitem, e é só a sua escusa. Mas o futuro lhes demonstrará a monstruosidade da sua culpa.