A tacha maldita/III
- I
Do tempo ainda a rápida ampulheta
Não marcara seis horas,
Ainda envolto em grossa manta preta
Dormia o velho sol, pai das auroras.
E já toda a família da madrinha
Da menina gentil, da Zabelinha,
Mergulhava nas águas buliçosas,
Banhava as belas carnes cor de rosas:
Como nos céus a Lua se metia
Das nuvens vaporosas,
Ligeiras, luminosas,
De instante a instante na sutil bacia.
- II
Por entre os coqueirais do Pajeú
Já penetrava o sol;
As cunhãs com as cuias de beiju,
As velhas rezadeiras de lençol,
Os matutos co'as cargas de farinha,
Vendedoras da Feira, os da geninha
— Corrupção da gostosa gengibirra -
Na hora em que se acorda e que se espirra
Saindo ao ar da frígida manhã,
Transitavam na rua:
Como transita a Lua
Entre as nuvens do céu linda e louçã.
Onde foi que o jardim da Aclamação,
No Rio de Janeiro,
Pôde mais comover o coração
— Apesar de cheirar muito a dinheiro —
Que o nosso majestoso Pajéu?
Onde contrasta a gia, o cururu,
Com o vem-vem, o canário, a patativa!
Onde esbelta e sem ordem surge altiva
A prima do poeta, a Natureza:
Como na humanidade
Surgiu a Liberdade
Dos lodaçais da Revolução Francesa!
E como, agora mesmo,
Sutil, divina, a esmo,
Brotou a Abolição na Fortaleza!
Os bandos das graúnas se levantam,
Entre os carnaubais,
Entoam para os céus cantos que encantam,
Que nos fazem bradar: Basta, não mais! —
Erguem-se assim da rede as cearenses,
Nossas priminhas belas. — Fluminenses!
Vós também sois bonitas, eu bem sei;
Haveis porém de obedecer a lei:
— O clarão desse sol que chamam Corte
Encadeia as moreninhas,
Que tombam como as rolinhas
De alva parede ao chão de negra morte.
Oh não te zangues Fluminense bela!
Oh não me causes pânico!
Venhas tu do Mozart, ou da Cancela,
De Botafogo ou do Jardim Botânico,
Do Príncipe Imperial, ou do Sant'Ana,
Da rua do Ouvidor.., confessa, humana,
Que a estação que passas em Petrópolis,
Na Tijuca, em Friburgo, em Teresópolis,
Faz-te esquecer as belas companheiras
Que nos salões vaidosas
Preferem ir pomposas!...
Façamos nossas pazes, brasileiras!
- III
Rodava lentamente um velho carro
De um'alta família.
Lançando aos transeuntes vil escarro,
De olhos encovados p'la vigília,
Olhar cínico, faces pardacentas,
Vinha dentro um rapaz. — Cousas cruentas
Sua figura só por si dizia:
Como apontam o odor de maresia,
A roupa tinta pelo cajueiro,
A pele requeimada,
A fala compassada,
Entre os homens da praia o jangadeiro.
la se refazer em Mecejana
O pobre libertino.
Era um filho de Dona Marciana,
Que fora para a Europa, inda menino,
Aprender a riscar na pedra o giz,
Nas grandes faculdades de Paris.
Aprendera, porém, uma outra cousa
Que costuma levar o moço à lousa.
Não deixa de saber engenharias
Quem conhece o champagne,
Muito embora o que ganhe
Ponha a juro no jogo e nas orgias.
Ao encontrar o seu mimoso filho,
Disse-lhe: Já vais?
— Sim, senhora. E estaca o seu tordilho,
E para o carro sob os coqueirais...
De Izabel, Marciana era a madrinha.
Vinha um bonde ao tinir da campainha.
E moças, carro e bonde confrontaram-se:
Do bonde olhares mil relancearam-se
Muito naturalmente sobre elas...
— Depois minha batuta
Dirá quem desta luta
Foi ferido e feriu, feios ou belas.