Suspiros poéticos e saudades (1865)/As Saudades/A Tempestade

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Desaparece o sol, o céu negreja,
O rígido aquilão em fúrias brama,
E em cada vaga a morte armada se ergue.

Hei de eu morrer, oh Pátria,
Sem que um suspiro teu sequer mereça?
Sem que minha existência útil te fosse?
E este mar cavará o meu sepulcro?
Meu corpo rolará entregue às ondas,
Té que os marinhos tigres o devorem?

Não terei uma campa, um epitáfio,
Onde no dia aos mortos consagrado
As lágrimas de amigo se deslizem?

Eu estava tranqüilo...
Como um brando regato serpenteia
Entre florida, perfumada relva,
Ou como a lua plácida fulgura
Na abóbada celeste,
Recamada de nítidas estrelas,
Assim os dias meus se devolviam
Em suaves vigílias, brandos sonos.

Tinha um pai, uma mãe, irmãos, amigos;
Debaixo de meus passos se movia,
Sem qu'eu sentisse, a terra;
Ora de humana voz ternas cadências
As passageiras mágoas me adoçavam,
Ora coberto com dosséis de folhas,
Que em chuveiros de flores me cobriam,
Terno cantava ao som da frauta agreste
Que o sabiá simula.

Se no cume da serra a tempestade
Caliginosos braços estendia;
Se nas torres dos templos se esbarravam
Lampejantes coriscos;
Na paterna mansão, ermo de susto,
Escutava o trovão, e o hino excelso
Que entoavam meus pais venerabundos.
Oh! com que rapidez tudo se muda!
O homem nem prevê próximos males!

Aqui, neste Oceano,
Sem que sequer um só prazer desfrute,
Tudo é horror, e um vasto cemitério.
De cada lado gigantescas vagas,
Irritadas elevam-se, curvando
Sobre o navio que sem tino vaga.
Negras nuvens do sol a face enlutam;
Soltos trovões se embatem, troam, bramam;
Rijo sibila o vento nas enxárcias;
Ante a proa em montanhas espumosas
Pulveriza-se o mar, roncando horríssono;
Gemendo as vergas beijam
A onda que se empola, ou já se afunda,

Quais débeis canas que o tufão acurva.
Que horror, oh céus! Que sorte nos aguarda!

Se é nossa estrela que morramos todos,
Quero ser o primeiro
Em quem, oh ondas, sacieis a fúria.

Procuro embalde, cintilar não vejo
Santelmo de esperança;
Só vejo a morte abrir a foz medonha
Em cada vaga, que engolir promete
O lenho, surdo à voz do palinuro.

As velas ferram desmaiados nautas,
Rouqueja o capitão, soa a buzina,
Mulheres tremem, criancinhas choram,
E sobre a bomba passageiros curvos
Arquejando se afanam.

Fitas de fogo ardentes, inflamadas,
Entre rotos listões de negras nuvens,
No horizonte se estendem;

Vasto lago de sangue o mar parece;
Relâmpagos mil chovem, mil se apagam;
Raios dardeja o céu enfurecido,
E os vermelhos coriscos no ar se cruzam,
Como cipós que os bosques emaranham,
Ou qual num rio amontoadas serpes,
Curvilíneas se enlaçam, sobem, descem.

Oh meu Deus! Oh meu Deus, teus olhos volve
Sobre os filhos dos homens.
É verdade, Senhor, eles ingratos
No tempo da bonança se esqueciam
Da tua onipotência;
Ousamos, ímpios, profanar teu nome;
Mas piedade, Senhor, hoje invocamos.

Como filhos rebeldes,
Que os sãos conselhos paternais desprezam,
Zombam mesmo dos pais, e de delírio
Em delírio à desgraça se encaminham;
E quando já no poço da miséria
Lhes brada a consciência,
Então os pais invocam;

E se os pais os não salvam, ali morrem.
Tu és pai, oh meu Deus! Misericórdia!

Um sopro de teus lábios foi bastante
Para armar contra nós a tempestade;
Um sopro de teus lábios
Basta para acalmá-la.

À tua voz, Senhor, tudo se humilha,
O mar, a terra, o céu, o vento, o raio;
Fala, seremos salvos.

Amaina o vento, o mar se tranqüiliza!...
Maravilha de Deus!... As nuvens subam
A teus pés os meus hinos,
Hinos acesos nos transportes d'alma;
Voem de mundo em mundo, de astro em astro,
De Anjo em Anjo, até qu'eles se harmonizem,
E dignos sejam, oh Senhor, que os ouças.

Glória! glória ao Senhor! estamos salvos!
Desaparece a morte,
Raia o sol, ri-se o céu, o mar se aplana!

Glória! glória ao Senhor! estamos salvos!
Afaga-me a esperança,
Que renasce no fundo de minha alma,
Como a fênix das cinzas.
Oh Pátria, serei teu; minha existência
Ao louvor do meu Deus, a teus louvores
De ora avante a consagro.