A toponímia indígena artificial no Brasil
nomes de origem tupi criados nos séculos XIX e XX /
Artificial Indigenous Place Names in Brazil: a Classification of
Tupi Origin Names Created in the 19th and 20th Centuries
Professor titular da Área de Línguas Indígenas do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
https://orcid.org/0000-0002-8001-8766
Recebido: 24 jan. 2020. Aprovado: 07 mai. 2020.
Como citar este artigo: NAVARRO, Eduardo de Almeida. A toponímia indígena artificial no Brasil: uma classificação dos nomes de origem tupi criados nos séculos XIX e XX. Revista Letras Raras. Campina Grande, v. 9, n. 2, p. 252267, jun. 2020.
RESUMO No território brasileiro encontram-se topônimos de origem indígena de mais de quinhentos anos de existência, atribuídos pelos próprios índios do passado, talvez até antes do Descobrimento do Brasil, ao lado de nomes indígenas artificiais que têm poucas décadas de existência. Tais nomes surgiram a partir da segunda metade do século XIX e sua criação tornou-se muito comum até os anos 50 do século XX. Esses topônimos artificiais são, muitas vezes, confundidos com os topônimos espontâneos de origem indígena, que são principalmente provenientes do tupi antigo e das línguas gerais dele originadas, ou seja, a língua geral meridional (ou paulista), a língua geral amazônica e o nheengatu. As razões históricas para a ocorrência de tal fenômeno foram o fortalecimento dos nacionalismos políticos no século passado, com reflexos no Brasil, o advento do Modernismo, com profundos efeitos sobre a cultura ocidental em geral e sobre a cultura brasileira, em particular. Este artigo analisa tal toponímia artificial, fazendo uma tentativa de sua classificação.
PALAVRAS-CHAVES: Toponímia Artificial; Tupi Antigo; Línguas Gerais.
ABSTRACT On Brazilian territory there are place names of indigenous origin with over five hundred years of existence, given by Indians themselves in the past, perhaps even before the Discovery of Brazil, together with artificial indigenous names having few decades of existence. Such names appeared since the second half of the 19th century and they became very common until the 1950s. These artificial toponyms are often confused with spontaneous place names of indigenous origin, deriving from ancient Tupi and the general languages originated from it, i.e. the southern general language, the general Amazonian language and Nheengatu. The historical reasons for the occurrence of such phenomenon were the strengthening of political nationalisms in the last century, with reflections in Brazil, the advent of Modernism, with profound effects on Western culture in general and on Brazilian culture in particular. This paper analyzes such artificial place names, making an attempt to classify them.
KEYWORDS: Artificial Place Names; Old Tupi; General Languages.
A maior parte dos nomes de lugares que compõem o sistema toponímico brasileiro provém da língua portuguesa. Com efeito, o português, como língua de um império ultramarino, haveria de suplantar em emprego, em todo o território do Brasil, as línguas indígenas e as línguas gerais aqui faladas. A única região do Brasil onde ainda a língua portuguesa não era majoritariamente empregada até a segunda metade do século XIX era a Amazônia. Contudo, com a grande migração de nordestinos para aquela porção do país, durante o Ciclo da Borracha, o nheengatu perdeu a primazia de emprego para o português. O ano de 1877 foi, com efeito, aquele em que isso finalmente ocorreu. A famosa Seca dos Dois Setes, no sertão nordestino, foi o acontecimento que fez mudar o perfil linguístico da Amazônia, dada a magnitude do êxodo de 500.000 sertanejos, monolíngues em português, que emigraram para lá.
Contudo, as línguas de povos aborígines também haveriam de ter importante participação no sistema toponímico brasileiro. Entre as línguas indígenas e as línguas gerais de matrizes indígenas, quatro foram fundamentais para a nomeação dos lugares no Brasil: o tupi antigo da costa, a língua geral amazônica, a língua geral paulista e o nheengatu. Com efeito, o tupi antigo foi a língua matricial de línguas supraétnicas que se desenvolveram historicamente a partir do século XVII, quando começou a interiorização da colonização brasileira. Tal toponímia é um dos testemunhos mais visíveis da ancestralidade indígena da sociedade brasileira.
Ao tratarmos de topônimos de origem indígena, estamos aqui considerando somente o nome do ponto de vista de sua forma, enquanto um lexema. Isso para evitarmos ambiguidades, fazendo-se supor um nomeador indígena que, muitas vezes, não existiu. Além disso, é preciso considerar que os nomes de origem indígena de que aqui tratamos seguem os processos fonológicos da língua portuguesa. Assim, fonemas não existentes em português realizam-se de diferentes formas quando surgem topônimos a nomear o território nacional. É o que ocorre, por exemplo, com o fonema /ɨ/ do tupi antigo, que se realiza em português como /i/ ou /u/. O mesmo ocorre com o fonema /β/ daquela língua, que se realiza como /b/ ou /v/. Com relação à consoante oclusiva glotal /Ɂ/, ela desaparece nos nomes portugueses de origem indígena.
Foi o engenheiro baiano Teodoro Sampaio, autor de O Tupi na Geografia Nacional, publicado em 1901, quem primeiro chamou a atenção para o fato de haver importante toponímia de origem tupi em regiões que nunca foram habitadas por índios falantes de tupi antigo. São, na verdade, nomes originados das línguas gerais coloniais faladas nos aldeamentos missionários, nas bandeiras, nas monções e nas tropas, enfim, por grande parte dos membros do sistema colonial brasileiro. Efetivamente, nomes com origem em tais línguas gerais estão presentes em quase todas as regiões do interior do Brasil.
Com relação às outras centenas de línguas indígenas faladas no período colonial e nos dois séculos do Brasil independente, pequena foi sua participação individual na nomeação do espaço brasileiro. Se consideradas, porém, em seu conjunto, elas também tiveram uma participação expressiva em nosso sistema toponímico. Os topônimos delas originários, contudo, estão circunscritos territorialmente. Ademais, sucede que muitos desses nomes são intraduzíveis por serem oriundos de línguas já desaparecidas e que não foram estudadas nem gramaticalizadas no passado, diferentemente do que ocorreu com o tupi antigo, com a língua geral amazônica e com o nheengatu.
O tupi antigo foi falado até o final do século XVII. Em fins do século XIX foi a vez de o nheengatu perder primazia para o português em grande parte da Amazônia, sendo hoje usado quase somente no Alto Rio Negro. Já a língua geral paulista desapareceu com o grande fluxo migratório europeu para o sul e sudeste do Brasil a partir de 1850. Assim, o que explica as centenas de topônimos de origem indígena surgidos no final do século XIX e na primeira metade do século XX em todo o Brasil é a nomeação artificial. A criação toponímica artificial em tupi antigo ou em línguas gerais dele oriundas foi muito estimulada, com efeito, pela publicação da obra já mencionada de Teodoro Sampaio, que ajudou a fornecer muitos nomes para frentes pioneiras no Brasil do século XX, com o surgimento de muitos povoados e transformação de antigos distritos em municípios. Assim, na terceira edição de O Tupi na Geografia Nacional, lê-se o seguinte:
A predileção dos brasileiros pelos nomes indígenas na denominação dos lugares é hoje tão acentuada que a toponímia primitiva vai aos poucos se restaurando e às localidades novas dão-se, de preferência, nomes tirados da língua dos ameríndios tupis. (SAMPAIO, 1987, prefácio).
A classificação dos topônimos não é tarefa simples, dada sua natureza multiforme. Tal classificação pode ser feita segundo muitos critérios: o etimológico, o sociolinguístico, o ontológico, o cultural etc. Stewart (1954) foi um dos primeiros que empreenderam uma classificação geral deles. Outra tentativa mais recente de classificação abrangente dos nomes de lugares foi feita por Urazmetova et al. (2017). Segundo elas, “é obviamente impossível criar uma classificação unificada dos nomes dos lugares que pudesse refletir a natureza multidimensional total do vocabulário toponímico[1]” (URAZMETOVA et al., 2017, p. 28, tradução nossa). Tais autoras apresentaram onze princípios ou critérios para se classificarem os topônimos e, assim, segundo elas, devem-se considerar as características paramétricas e ontológicas de um objeto, o tipo de base toponímica, as características etimológicas, motivacionais, cronológicas e estruturais dos nomes de lugares, a polissemia, o grau e a variedade de nomeação toponímica e, finalmente, a localização de um objeto (URAZMETOVA et al., 2017). Tais princípios mencionados pelas referidas autoras são intralinguísticos e extralinguísticos, donde sua multiplicidade.
Segundo o critério da origem dos topônimos, apresentado na classificação de Urazmetova et al. (2017), podemos dividi-los em espontâneos ou artificiais, embora tais autoras não mencionem estas duas categorias. Definimos aqui como espontâneo o nome de lugar que foi atribuído por falantes da língua na qual ele foi criado, de forma anônima. Espontâneos são, geralmente, os nomes de elementos físico-naturais, tais como os cursos d´água, as montanhas, os morros, as serras, as praias etc. Artificiais são os topônimos de atribuição planejada, sendo que os autores da nomeação são conhecidos. Como exemplos de topônimos artificiais estão aqueles atribuídos por iniciativa oficial, como é o caso dos nomes de ruas, de praças, de distritos, de cidades, de municípios etc. Estes geralmente substituem topônimos mais antigos. Artificiais também são os nomes dados a propriedades particulares, tanto rurais quanto urbanas, sem a fixidez, a permanência e o anonimato que caracterizam os nomes espontâneos dados aos elementos físico-naturais.
A criação de topônimos artificiais pode ter diversas causas e motivações, dentre as quais arrolamos as seguintes:
- a) A necessidade de se incorporar um objeto geográfico a um determinado sistema toponímico. Conforme bem observaram Urazmetova et. al. (2017, p. 26), os objetos geográficos não nomeados diminuem cada vez mais à medida que a humanidade expande seus horizontes sobre a superfície terrestre.
- b) A intenção de marcar o início de um novo momento histórico, como é o caso da substituição do nome São Petersburgo por Leningrado, depois da Revolução Russa. Com a descolonização da África e da Ásia, no Pós-Guerra, por exemplo, buscou-se muitas vezes a eliminação de heranças coloniais, como foi o caso da substituição dos nomes Birmânia, Ceilão, Calcutá e Lourenço Marques por Myamar, Sri Lanka, Kolkata e Maputo, respectivamente.
- c) O projeto de valorizar raízes nacionais e identidades culturais, em consequência de fortalecimento de nacionalismos políticos. Tal foi o que ocorreu no Brasil na primeira metade do século XX, quando houve intensa nomeação em línguas ameríndias faladas no passado, como veremos adiante.
- d. A busca de uma estratégia geopolítica de dominação de um território, por meio de eliminação de elementos culturais de um povo que nele vive. Foi o que aconteceu em territórios palestinos ocupados por Israel. Segundo Nur Masalha, apud Moore et al. (2015, p. 17, tradução nossa), lá ocorreu um “toponimicídio”, isto é, “...a ‘desarabização’ da terra, a eliminação de antigos topônimos palestinos e sua substituição por toponímia sionista hebraica, criada recentemente[2]”.
No caso específico do Brasil, a nomeação artificial em línguas indígenas é explicada por certos fenômenos culturais e sociológicos observados no mundo ocidental desde o século XIX. Um deles foi o Romantismo, que valorizou a tradição histórica e nacional sobre os modelos estéticos da Antiguidade. Volta-se para o passado em busca de modelos e representações das novas nações que então surgiam. No caso do Brasil, tais modelos foram os índios de outros séculos e a língua indígena falada nos primeiros tempos da Conquista. Mitificou-se o índio da costa, o tupi. Tal termo era um genérico usado para designar os grupos indígenas que falavam a língua brasílica descrita por Anchieta e Figueira em suas gramáticas. Eram aqueles os tupiniquins, os tupinambás, os potiguaras, os caetés, os temiminós, os tupis de São Vicente etc. Enquanto isso, os muitos índios ainda existentes no século XIX pelo Brasil afora eram socialmente menosprezados, discriminados e suas línguas eram ignoradas.
Com o advento do Modernismo no nosso país, iniciado com a Semana de Arte Moderna, em 1922, os índios do passado tornaram-se novamente uma referência cultural basilar para a renovação estética e cultural que se pretendia. Formava-se um ambiente propício aos estudos das línguas indígenas brasileiras de importância histórica, principalmente o tupi antigo e o nheengatu. Isso também se explicava pelo surgimento de ideologias nacionalistas no mundo ocidental. No Brasil, a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, em 1930, foi o início de uma fase histórica assinalada por grande nacionalismo político e econômico. A Era de Vargas foi, com efeito, uma época em que os topônimos de origem indígena foram abundantemente criados no país. Com efeito, o decreto-lei n. 5.901, de 21 de outubro de 1943, estabelecia normas para a “eliminação no país da repetição de topônimos de cidades e vilas”. O artigo 7º, III, desse decreto-lei rezava o seguinte:
Como novos topônimos, deverão ser evitadas designações de datas, vocábulos estrangeiros, nomes de pessoas vivas, expressões compostas de mais de duas palavras, sendo, no entanto, recomendável a adoção de nomes indígenas ou outros com propriedade local. (DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO, 1943, p. 15750).
Assim, em cumprimento a tal decreto-lei, muitos municípios tiveram seus nomes substituídos no ano seguinte, e, muitos deles, por nomes de origem tupi.
Ainda na Era de Vargas, em 1935, foi criada a cadeira de língua tupi na faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Naquele ano, Tupi e Toponímia passaram a figurar no currículo do curso de Geografia. O primeiro regente de tais cadeiras foi Plínio Ayrosa, um engenheiro e pesquisador autônomo que ministrava palestras no Centro do Professorado Paulista havia já algum tempo e que, pela nomeada que alcançara em virtude disso, foi convidado pelo reitor da novel universidade para criar nela os aludidos cursos. Nos anos quarenta, novas iniciativas semelhantes àquela surgiriam no Brasil. Criam-se cursos de tupi antigo na PUC do Rio de Janeiro (sob a regência do Pe. Antônio Lemos Barbosa), na Universidade da Bahia (com Frederico Edelweiss à frente da dita cadeira) e na Universidade do Paraná (com Mansur Guérios).
Assim, por duas décadas, os estudos tupinológicos dominaram nas universidades que passaram a manter cursos de línguas indígenas. Tal foi a voga que tiveram tais estudos que, durante o segundo governo de Getúlio Vargas, de 1950 a 1954, tramitou no Congresso Nacional um projeto de lei que tornava obrigatória a criação da cadeira de língua tupi em todas as faculdades de Letras do Brasil. Em 3 de setembro daquele ano, poucos dias após o suicídio de Vargas, o presidente Café Filho, seu substituto, assinou a lei n. 2.311, que instituía em todas as faculdades de Filosofia e Letras do País a cadeira de Etnografia Brasileira e Língua Tupi.
Tal lei tinha um sentido nacionalista evidente. Era consequência de uma forte tendência estatizante que o segundo governo de Vargas apresentava, um dos últimos ecos dos pactos populistas que o capital internacional faria soçobrar em todo o Terceiro Mundo nos anos cinquenta e sessenta, fato exemplificado, no Brasil, pelo golpe militar de 1964, pela queda de Perón na Argentina e pela deposição de Ahmed Sukarno, na Indonésia. Nesse momento de desnacionalização econômica e de alinhamento político do Brasil com os Estados Unidos, o Estruturalismo começou a deitar raízes na universidade e na intelligentsia brasileiras. Assim, a partir dos anos sessenta, a criação toponímica artificial em línguas indígenas enfraqueceu-se grandemente.
A fonte dos dados utilizados e de todas as informações apresentadas nesta pesquisa foi o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que, no sítio www.cidades.ibge.gov.br, divulga informações acerca dos municípios brasileiros nos seus aspectos econômicos, políticos, sociais, demográficos e históricos. O IBGE fornece tabelas e gráficos com as suas pesquisas sobre todas as cidades e estados do país, oferecendo informações sobre a história dos 5570 municípios brasileiros e, inclusive, sobre seus nomes, desde os seus primeiros tempos.
Depois de analisarmos centenas de topônimos artificiais de matriz tupi de todos os estados brasileiros, escolhemos vinte nomes que exemplificam bem as categorias nas quais todos os outros podem classificar-se. Fizemos desses vinte nomes uma análise mais detida e minuciosa, por verificarmos que eles são paradigmáticos das classes que definimos.
Os nomes para os quais a presente pesquisa voltou-se foram somente os de matrizes tupis, que são os mais numerosos entre os de origem indígena, e fundamentalmente os nomes de espaços urbanos, isto é, sedes de municípios ou de distritos. É nos nomes destes que encontramos grande variabilidade onomástica, o que não ocorre com relação aos nomes de aspectos físico-naturais do espaço. Com efeito, conforme lembra Dauzat (1937), estes últimos tendem a se manter ao longo dos séculos.
Assim, por meio de levantamento dos topônimos nas línguas indígenas aqui consideradas, procedeu-se a uma pesquisa sobre a antiguidade deles, buscando-se conhecer desde quando tais nomes existem. Levando-se em conta que a língua brasílica da costa (i.e., o tupi antigo) e as línguas gerais dele originadas (com exceção do nheengatu), não eram mais faladas a partir da segunda metade do século XIX, consideramos todos os topônimos dessa origem, surgidos a partir de então fora das áreas de utilização do nheengatu (que ainda é língua viva), como artificiais.
Não tratamos aqui de topônimos híbridos, tais como Itainópolis (PI) ou Cotriguaçu (MT), que contêm étimos de origem não indígena. Não consideraremos tampouco os topônimos “pseudotupis”, isto é, aqueles que são composições e só aparentemente são de origem indígena, como é o caso de JUSSARA (BA), iniciais de Juscelino e Sara, prenomes de um ex-presidente do Brasil e de sua esposa, respectivamente.
Após analisarmos os nomes artificiais de matrizes tupis no Brasil, concluímos poder dividi-los em duas categorias principais:
A. Topônimos adequados:
São nomes formados corretamente do ponto de vista gramatical e atribuídos a lugares onde as línguas de que se originaram foram efetivamente faladas. Ou, ainda, são nomes de origem tupi já incorporados ao léxico do português. Se compostos, obedecem às regras de composição das línguas de matrizes tupis nas quais foram criados.
a. Geograficamente inadequados - São formados corretamente do ponto de vista gramatical, mas atribuídos indevidamente a lugares onde as línguas das quais se originaram nunca foram faladas.
b. Linguisticamente inadequados - São formados incorretamente do ponto de vista gramatical, sem respeito às regras de composição das línguas em que foram criados ou com errada ortografia, semântica etc. Podem ser também nomes híbridos, formados por palavras de mais de uma língua indígena, fato causado pelo desconhecimento de seu criador das diferenças entre elas. Contudo, tais topônimos nomeiam lugares em que as línguas usadas em sua criação foram faladas no passado.
c. Geográfica e linguisticamente inadequados - São aqueles atribuídos indevidamente a lugares onde nunca foram faladas as línguas nas quais tais nomes foram criados e que foram mal formados linguisticamente, sem respeito às regras de composição daquelas línguas, ou com errada ortografia, semântica etc. Podem ser também nomes híbridos, formados com palavras de mais de uma língua indígena de matriz tupi.
Analisaremos, a seguir, topônimos paradigmáticos de cada uma das categorias acima definidas. As etimologias apresentadas baseiam-se em informações do Diccionario Portuguez e Brasiliano (ANÔNIMO, 1795), do Vocabulário Português-Nheengatu, Nheengatu-Português (Stradelli, 2014) e do Dicionário de Tupi Antigo (NAVARRO, 2019). As informações históricas e geográficas, por sua vez, têm por fonte o IBGE (www.cidades.ibge.gov.br).
Aiquara (BA) - Uma modalidade muito comum de topônimos artificiais no Brasil é a daqueles criados por substituição de um nome de origem portuguesa por sua correspondente tradução em tupi antigo, às vezes bem literal, às vezes menos.
Foi o que ocorreu com o atual município baiano de Aiquara (de a’y + kûara, “toca da preguiça”). Com efeito, tal localidade chamava-se, até 1915, Preguiça, nome de um mamífero da família dos bradipodídeos, encontrado nas matas tropicais e equatoriais da América. Segundo o IBGE, tal nome foi escolhido por meio de um plebiscito feito no ano de 1924. É uma composição correta em tupi antigo e, é claro, adaptada à fonologia do português.
Abaiara (CE) - O município cearense de Abaiara foi primeiramente chamado São Pedro, por ato provincial de 1837, como distrito do município de Milagres. Em 1938, o distrito de São Pedro passou a chamar-se Pedro Segundo, em homenagem ao antigo imperador do Brasil. O nome foi novamente alterado por decreto-lei estadual em 1943. Foi criada uma perífrase em tupi para Pedro Segundo, a saber, Abaiara, isto é, “o senhor dos homens”.
Paratinga (BA) - Às vezes, um nome de origem indígena constitui decalque de um nome em português que substituiu outro topônimo de origem indígena considerado depreciativo. Um exemplo de nome de origem indígena dessa natureza é Xiririca, no Vale do Ribeira, em São Paulo. Com efeito, o nome Xiririca, certamente da Língua Geral Paulista, tornou-se sinônimo de fim do mundo, lugar remoto, de difícil acesso, primitivo, pouco habitado, cafundó. Era corrente nas primeiras décadas do século XX a expressão “Isso é para lá de Xiririca”. No ano de 1948, tal nome foi, então, alterado. Esse foi também o caso de um município baiano que se chamava Urubu, nome este que foi alterado em 1912 por projeto de lei, passando, então, a denominar-se Rio Branco. Em 1943, por outro decreto estadual, tal topônimo foi substituído pelo decalque Paratinga, de pará – rio + ting – branco + -a – sufixo nominalizador: “rio branco”.
Ubatã (BA) e Sapiranga (RS) - Muitas vezes, um nome de origem tupi já incorporado ao léxico do português e que designa uma planta, um animal, um artefato indígena, um grupo étnico substitui outro nome em português. O distrito de Dois Irmãos, depois de se chamar Alfredo Martins, teve seu nome modificado para Ubatã, que designa diferentes árvores do gênero Astronium (de ‘yba-atã – “árvore dura”).
A mesma coisa ocorreu com relação ao nome Sapiranga, de município sulino. Com efeito, os estados do Sul tiveram forte influência da cultura guarani, tanto por sua proximidade com o Paraguai, quanto pelas incursões paulistas às missões jesuíticas lá estabelecidas. O guarani foi, inclusive, uma língua que influenciou a língua geral paulista. O termo congonha, por exemplo, nome do chimarrão dos antigos bandeirantes, provém do guarani antigo e figura no dicionário de Montoya. O nome Sapiranga, contudo, não é de origem guarani, mas deve provir da língua geral paulista. Tal nome foi atribuído a um distrito do município de São Leopoldo, em 1890, e proviria de arasá piranga, “araçá vermelho”, designativo de planta da família das mirtáceas, ou seja, nome já incorporado ao léxico do português do Brasil antes do surgimento do nome da localidade.
Acajutiba (BA) - Uma modalidade menos comum de criação de topônimos artificiais em tupi consiste na substituição de nomes híbridos, incorporados ao léxico do português do Brasil, por um nome de origem exclusivamente tupi. Foi o que ocorreu com o povoado de Cajueiro, que em 1937 passou a ser um distrito de Esplanada e teve seu nome alterado para Acajutiba, do tupi antigo akaîu + tyba, “ajuntamento de pés de cajus”.
Andirá (PR) e Abaetetuba (PA) - Tais nomes são exemplos de outra modalidade de formação de topônimos artificiais adequados, em que ocorreu a substituição de um nome de origem tupi por outro nome desta origem.
O município paranaense de Andirá, chamado anteriormente Ingá, era um distrito de Cambará, PR. Ao ser elevado à categoria de município, em 1943, teve de mudar seu nome porque já havia outro município homônimo no estado do Paraná, o que foi proibido pelo decretolei n. 5.901 do presidente Getúlio Vargas, que já mencionamos anteriormente.
O topônimo Abaetetuba (composição de abaeté – “homem muito bom”, termo incorporado ao léxico do português + tyba - ajuntamento, existência: “ajuntamento de homens muito bons”) substituiu um nome anterior, Abaeté, de município paraense, por força do decreto-lei n. 5.901, de 1943, já referido.
Itajá (RN) - Este topônimo é exemplo de nomeação original, não inspirada em denominação anterior nem tomada de dicionários do português. Foi atribuído artificialmente ao povoado dos Lopes, elevado à condição de município em 1992. É uma composição correta: itá – pedra + îá: repleção, apinhamento: “repleção de pedras”.
Todos os topônimos artificiais considerados adequados foram atribuídos a lugares onde as línguas usadas na sua criação foram efetivamente faladas no passado.
Miracatu (SP) – Tal nome é uma composição correta em nheengatu, porém foi atribuído a uma localidade do sudeste do Brasil, onde nunca se falou aquela língua geral da Amazônia. Foi atribuído por decreto-lei estadual, em 1944.
Itaocara (RJ) - É uma composição correta em tupi antigo, mas nome dado à velha Aldeia da Pedra, de índios Puris e Coroados, do tronco Macro-Jê. O nome de tal município fluminense é de criação mais antiga que a da maioria dos outros topônimos artificiais, tendo surgido em 1850.
Itaporanga (PB) - É uma correta composição em tupi antigo: itá – pedra + porang – bonito + -a – sufixo nominalizador: “pedra bonita”. O nome, porém, foi atribuído por um decreto-lei estadual de 1938 a um lugar habitado tradicionalmente por índios do grupo Corema, do tronco Macro-Jê, já extinto.
Ibateguara (AL) - Até 1959, Ibateguara tinha o nome de Horizonte. Foi sugerido o topônimo atual pelo arcebispo de Maceió, D. Ranulfo de Farias, que, ao que consta, queria criar um nome de origem tupi que significasse “lugar alto”. O nome Ibateguara, parece, contudo, provir da junção do substantivo tupi ybaté com o sufixo –ygûara, que forma substantivos gentílicos como paraibyguara, “paraibano”, “morador da Paraíba”. Ybateygûara significa, assim, “moradores do alto”, “moradores das alturas”. O topônimo está, assim, mal formado, sendo inadequado semanticamente e tendo sentido diferente daquele que se buscava, embora tenha uma legítima feição tupi.
Ecoporanga (ES) - Este topônimo porta lexemas do tupi antigo, faltando-lhe, contudo, o prefixo de relação T- para ser um nome correto naquela língua. Deveria, assim, escrever-se Tecoporanga. Tal localidade do estado do Espírito Santo recebeu tal nome quando foi elevada, por lei estadual, à categoria de município, em 1955.
Buritama (SP) – É uma incorreta variante de buriti retama, “terra dos buritis”, que fere as regras de composição do tupi antigo. Nome criado em 1948, quando o distrito de Palmeiras, chamado depois, em 1919, Buriti, tornou-se município.
Unaí (MG) – É um nome composto, que, para significar aquilo que seus criadores pretendiam, fere as regras de composição do tupi antigo ou das línguas gerais deste originadas. Unaí foi um distrito criado com o nome Rio Preto, por lei provincial de 1873. Por lei estadual de 1923, o distrito de Rio Preto tomou o nome atual. Ora, naquelas línguas indígenas mencionadas, o adjetivo qualificativo nunca antecede o substantivo. Rio Preto deveria, assim, traduzir-se por ‘yúna, resultando no nome próprio Iúna.
Jaguariúna (SP) – A mesma coisa ocorreu com o nome do município paulista de Jaguariúna. Em 1896 foi criado por lei estadual o distrito de Jaguari, subordinado ao município de Mogi-Mirim. Por decreto-lei estadual de 1944, o distrito de Jaguari tomou o nome Jaguariúna, que conservou ao se tornar município, em 1953.
Vemos no brasão de Jaguariúna (Fig. 1) a motivação do criador de seu nome: uma onça preta à beira de um rio azul. Ora, “rio da onça preta”, em tupi antigo, deveria traduzir-se por îaguaruny, resultando no topônimo Jaguaruni. A forma Jaguariúna fere as regras de composição do tupi antigo, do qual foram tomados os étimos de tal palavra.
Umuarama (PR) – Em 1927, Silveira Bueno, que seria depois professor de língua portuguesa na Universidade de São Paulo, criou o nome Umuarama para nomear uma colônia de férias do Mackenzie College, a pedido de seu diretor. Como ele próprio afirma, Umuarama foi
[...] neologismo feito por nós, com elementos tupis e significa: lugar ensolarado para encontro de amigos. A primeira forma foi Emuarama, de embu; lugar; ara, cheio de luz, de claridades, bom clima. Depois suavizamos para Umuarama. A terminação ama é um coletivo, equivalendo a muitos, reunião etc. (BUENO, 1984, p. 601)
Onde se encontra em tal composição algo que signifique “para encontro de amigos”, que faria parte, segundo Silveira Bueno, da etimologia de Umuarama? Em qual dicionário de tupi antigo, guarani ou de nheengatu vemos que embu significa lugar?
Por aquelas palavras vê-se como era grande o despreparo daquele autor para tratar de língua tupi, antiga ou moderna. Seu Vocabulário Tupi-Guarani Português contribuiu muito para desorientar os interessados pela Tupinologia. Seu desconhecimento da gramática daquelas línguas ficou completamente demonstrado nas palavras acima.
Para a formação do topônimo Umuarama, Silveira Bueno tomou o termo nheengatu sumuara, “amigo”, retirou-lhe indevidamente o prefixo de relação S- e acrescentou-lhe a forma rama, variante de retama. Sumuararama, com efeito, traduzir-se-ia por terra de amigos, em nheengatu. Retirando-se o prefixo S-, porém, a composição fica sem sentido. Além disso, o fato de atribuir um nome em nheengatu (a língua boa amazônica) a uma localidade do Paraná é uma grande incoerência geográfica.
Mairiporã (SP) - O nome desse município paulista é um hibridismo, formado da composição de um termo da língua geral amazônica (mairi, cidade) e um termo guarani (porã, bonito,a). Foi criado artificialmente por lei estadual de 1948 e substituiu o nome antigo e espontâneo Juqueri. A substituição de tal nome tupi deveu-se ao sentido depreciativo que este topônimo assumiu com a instalação de uma grande colônia psiquiátrica naquela localidade, o Asilo de Alienados do Juqueri, fundado em 1898 pelo médico Francisco Franco da Rocha. Surgiu, assim, um topônimo com origem em línguas que nunca foram faladas naquela região do Brasil.
Itacajá (TO) - O território de tal município do estado do Tocantins foi tradicionalmente habitado por índios Craós, que foram missionados pelo pastor Francisco Colares, o que originou um adensamento humano que se tornou distrito em 1938 e município em 1953. Aquele topônimo provém do nome de uma cachoeira chamada Cajá, no rio Manoel Alves, que banha aquela localidade, sendo Cajá um nome espontâneo, simples e motivado pela existência de uma planta anacardiácea, também chamada cajazeira. Por sua vez, o nome Itacajá, criado artificialmente com étimos do tupi antigo, tem sentido absurdo (“cajá de pedra”) e foi, além disso, atribuído a um lugar onde nunca se falou tupi antigo nem nenhuma língua geral dele oriunda.
A nomeação artificial com origem no tupi antigo e nas línguas gerais dele originadas convive, no Brasil, com a toponímia espontânea e tal fato passa despercebido por muitos. Isso hipertrofiou a influência tupi, que já não foi pequena, na formação do sistema toponímico brasileiro. Não afetou, por razões anteriormente mostradas, a nomeação de elementos físico-naturais, como rios, córregos, morros, serras etc., a qual é infensa a mudanças fáceis. Tais topônimos têm grande importância como crônica do espaço geográfico, revelando aspectos pretéritos dele.
Se foram criados nomes adequados e corretos, também surgiram nomes sem sentido e erroneamente formados, que nada revelam senão o despreparo de seus criadores nas línguas indígenas históricas do Brasil.
Há, contudo, um aspecto positivo nessa nomeação artificial: ela nobilitou ou tentou nobilitar línguas indígenas num século de grande modernização tecnológica como foi o século XX, no qual o índio representou, muitas vezes, o passado e o atraso social e econômico. Inda que mitificado, ele foi, de certa forma, valorizado num Brasil que tinha olhos mais voltados para a Europa e os Estados Unidos. Foi uma maneira de o Brasil homenagear os derrotados da sua história. Tal fenômeno significava também um preito saudosista a um Brasil tradicional que começava a se transformar e a se modernizar. Representava as vozes de um passado que não queria morrer. Bem expressou Teodoro Sampaio tal fenômeno sociocultural do século XX, no prefácio da terceira edição de O Tupi na Geografia Nacional:
- Há aqui um sentimento nacionalista que se quer integrado e vívido, como que a dizer que, da raça americana, vencida, nem tudo se perdeu e que se, no sangue dos descendentes, a dosagem diminui a se apagar, a memória dos primitivos íncolas perdurará com os nomes dos lugares onde a civilização ostenta seus triunfos. (SAMPAIO, 1987, p. 41)
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- ↑ eduardonavarro@usp.br
- ↑ “It is obvious that it is impossible to create a unified classification of place names which would reflect the entire multidimensional nature of the toponymic vocabulary.”
- ↑ “the de-Arabisation of the land […] the erasure of ancient Palestinian place names and their replacement by newly coined Zionist Hebrew toponymy.”