A viúva Sobral/II

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Emendemos o Brandão. Contou ele que os dois últimos encontros com a viúva, aqui na corte, é que lhe deram a sensação do amor; mas a verdade pura é que a sensação só o tomou inteiramente no Pati do Alferes, de onde ele acaba de chegar. Antes disso, podia ficar um pouco lisonjeado das maneiras dela, e ter mesmo alguns pensamentos; mas o que se chama sensação amorosa não a teve antes. Foi ali que ele mudou de opinião a respeito dela, e se deixou cair nas graças de uma dama, que diziam ter matado o marido com desgostos.

A viúva Sobral não tinha menos de vinte e sete anos nem mais de trinta; ponhamos vinte e oito. Já vimos o que eram os olhos; — podiam ser singulares, como eles diziam, mas eram também bonitos. Vimos ainda um certo jeito da boca, mal aceito ao Cesário, enquanto as narinas o eram ao Brandão, que achou nelas o indício da teima e da perversidade. Resta mostrar a estatura, que era muito elegante, e as mãos, que nunca estavam paradas. No baile não lhe notou o Brandão esta última circunstância; mas no Pati do Alferes, na casa da prima, familiarmente e a gosto, achou que ela movia as mãos sempre, sempre, sempre. Só não atinou com a causa, se era uma necessidade, um sestro, ou uma intenção de mostrá-las, por serem lindas.

“Não, pensou ele no segundo dia, não é para mostrá-las; essa preocupação não se compadece com a maldade do gênio...”

No terceiro dia, começou o Brandão a perguntar onde estava a maldade do gênio de D. Candinha. Não achava nada que pudesse dar indício dela; via-a alegre, dada, conversada, ouvindo as coisas com muita paciência, e contando anedotas do Norte com muita graça. No quarto dia, os olhos de ambos andaram juntos, não se sabendo unicamente se foram os dele que procuraram os dela, ou vice-versa; mas andaram juntos. De noite, na cama, o Brandão jurava a si mesmo que era tudo calúnia, e que a viúva tinha mais de anjo que de diabo. Dormiu tarde e mal. Sonhou que um anjo vinha ter com ele e lhe pedia para trepar ao céu; trazia a cara da viúva. Ele aceitou o convite; a meio caminho, o anjo pegou das asas e cravou-as na cabeça, à laia de pontas, e carregou-o para o inferno. Brandão acordou transpirando muito. De manhã, perguntou a si mesmo:

— Será um aviso?

Evitou os olhos dela, durante as primeiras horas do dia; ela, que o percebeu, recolheu-se ao quarto e não apareceu antes do jantar. Brandão estava desesperado, e deu todos os sinais que podiam exprimir o arrependimento e a súplica do perdão. D. Candinha, que era uma perfeição, não fez caso dele até à sobremesa; à sobremesa começou a mostrar que podia perdoar, mas ainda assim o resto do dia não foi como o anterior. Brandão deu-se a todos os diabos. Chamou-se ridículo. Um sonho? Quem diabo acredita em sonhos?

No dia seguinte tratou de recuperar o perdido, que não era muito, como vimos, tão-somente alguns olhares; alcançou-o para a noite. No outro estavam as coisas restabelecidas. Ele lembrou-se então que, durante as horas de frieza, notara nela o mau jeito da boca, o tal, o que lhe dava indício da perversidade da viúva; mas tão depressa o lembrou, como rejeitou a observação. Antes era um aviso, passara a ser uma oportunidade.

Em suma, voltou no princípio da seguinte semana, inteiramente namorado, posto sem nenhuma declaração de parte a parte. Ela pareceu-lhe ficar saudosa. Brandão chegou a lembrar-se que a mão dela, à despedida, estava um pouco trêmula; mas, como a dele também tremia, não se pode afirmar nada.

Só isto. Não havia mais do que isto, no dia em que ele referiu ao Cesário que ia casar. Que não pensava senão no casamento, era verdade. D. Candinha voltou para a corte daí a duas semanas, e ele estava ansioso por vê-la, para lhe dizer tudo, tudo, e pedi-la, e levá-la à igreja. Chegou a pensar no padrinho: seria o inspetor da alfândega.

Na alfândega, notaram-lhe os companheiros um certo ar distraído, e às vezes, superior; mas ele não disse nada a ninguém. Cesário era o confidente único, e antes não fosse único; ele procurava-o todos os dias para lhe falar da mesma coisa, com as mesmas palavras, e inflexões. Um dia, dois dias, três dias, vá; mas sete, mas quinze, mas todos! Cesário confessava-lhe, rindo, que era demais.

— Realmente, Brandão, tu estás que pareces um namorado de vinte anos...

— O amor nunca é mais velho, redargüiu o outro; e, depois de fazer um cigarro, puxar duas fumaças, e deixá-lo apagar, continuava a repetição das mesmas coisas e palavras, com as mesmíssimas inflexões.