Alice no País do Espelho (Trad. Lobato, 2ª edição)/Capítulo 8

Wikisource, a biblioteca livre

CAPÍTULO VIII

“É INVENÇÃO MINHA”


AQUÊLE HORRÍVEL barulho não durou muito tempo. Foi passando e passou de todo. Tudo caiu em profundo silêncio. Alice olhou em redor: nada viu. Não havia mais ninguém por ali. Seria sonho? Nem Leão, nem Unicórnio, nem Mensageiros... Mas o prato estava aos seus pés, o prato do pudim. Vendo-o, Alice refletiu que não podia ter sido sonho. E se tivesse sido um sonho do Rei Branco e não dela? Desconfiada disso, Alice resolveu acordá-lo para ver o que acontecia.

Nesse momento foi interrompida por gritos e “Ahói! Ahói! Xeque!” ao mesmo tempo em que um Cavaleiro[1] vestido de armadura preta galopava em sua direção, brandindo a espada. Ao chegar, deteve o cavalo de brusco e gritou: “Está prisioneira!” e caiu no chão.

Apesar de assustada, Alice tremeu mais pelo Cavaleiro do que por si própria, e ficou a olhá-lo, ansiosa, até que êle montasse outra vez. Logo que o Cavaleiro se viu firme na sela, começou de novo: “Está pri...” mas não pôde terminar. Outro grito de: “Ahói! Ahói! Xeque!” o interrompeu, fazendo Alice voltar o rosto para ver quem era o novo inimigo.

Tratava-se do Cavaleiro Branco, que só parou bem pertinho de Alice e tudo fêz como o Cavaleiro Negro fizera. Caiu, montou de novo e olhou para o seu rival por algum tempo, sem nada dizer. Alice ora punha os olhos num, ora noutro, muito atrapalhada.

— Ela é minha prisioneira, você sabe! disse por fim o Cavaleiro Negro.

— Sim, mas eu apareci e libertei-a! replicou o Cavaleiro Branco.

— Nesse caso, duelemos para ver quem fica seu dono, disse o Cavaleiro Negro enfiando na cabeça o elmo (que estava pendurado no arção da sela e consistia numa cabeça de cavalo.)

— Vai você observar as Regras da Batalha? perguntou o outro, também enfiando na cabeça o capacete.

— Está claro que sim. Sempre observo tais regras, respondeu o Cavaleiro Negro. Em seguida lançaram-se um contra o outro com tal furor que Alice, apavorada, correu a esconder-se atrás duma árvore para não ser vítima dalgum golpe.

“Queria saber quais são as tais Regras da Batalha” pensou consigo a menina no seu esconderijo enquanto observava a luta. Uma regra parece ser que se um Cavaleiro acerta um golpe no adversário, êste vem ao chão, e se erra, quem tem de cair é êle. Outra regra parece ser que ambos seguram as armas com os braços e não com as mãos. E que barulho fazem quando caem! E como se comportam bem os cavalos, imóveis em seus lugares, como se fôssem tabuleiros de xadrez!...

Outra Regra de Batalha que Alice não percebeu era que êles sempre caíam de ponta cabeça, e que a luta

terminaria quando ambos assim caíssem ao mesmo tempo, um ao lado do outro. Logo que isso aconteceu, ergueram-se os dois, apertaram-se as mãos e o Cavaleiro Negro, montando de novo, partiu no galope.

— Foi uma vitória gloriosa, não acha? murmurou o Cavaleiro Branco ainda sem fôlego, dirigindo-se para ela.

— Não sei, respondeu Alice na dúvida. Mas já vou dizendo que não quero ficar prisioneira de ninguém. Quero virar Rainha, isso sim.

— Será Rainha só depois que atravessar o próximo regato. Eu a levarei em segurança até ao extremo da floresta. É êsse o fim da minha missão.

— Muitíssimo obrigada, exclamou Alice contente. E dá-me licença de retirar da sua cabeça êsse capacete?

Sem o ajutório da menina êle jamais o conseguiria, por isso aceitou.

— Uff! Agora posso respirar mais livremente, disse, logo que se viu livre do capacete. Em seguida correu a mão pelos cabelos em desalinho, fixando na menina os olhos azuis, muito meigos. Parecia lindo, o Cavaleiro. Alice jamais imaginara um soldado assim.

Sua armadura era de fôlha e muito mal arranjada. Sôbre os ombros via-se-lhe uma lata vazia de leite condensado, de bôca para baixo, com a tampa entortada. Alice examinou-a com grande curiosidade.

— Está admirando a minha lata, bem vejo, disse êle em amável tom. É uma invenção para guardar sanduíches e mais coisas. Uso-a assim de bôca para baixo para que não chova dentro.

— Não choverá dentro, observou Alice, mas as coisas que puser dentro cairão. Não vê que a tampa está aberta?

Era tão evidente aquilo que o Cavaleiro ficou desapontado e triste.

— Não pensei nisso, murmurou corando, e vejo que tem razão. Nesse caso tôdas as coisas que eu trazia dentro já caíram e a lata não me serve de nada...

Assim dizendo desamarrou a lata para jogá-la fora, mas arrependeu-se e, tomado duma súbita idéia, foi pendurá-la ao galho duma árvore, dizendo: “É capaz de adivinhar por que estou fazendo isto?”

Alice fêz sinal que não.

— Para que as abelhas a usem como colmeia. Virei depois colhêr o mel.

— Mas você tem na sela uma coisa que parece colmeia, isso aí! observou Alice apontando para o arção da sela.

— Sim, é de fato uma colmeia, disse o Cavaleiro, e da melhor marca. Mas nem uma única abêlha entrou nela ainda. Não presta. E êste outro objeto aqui é uma ratoeira. Creio que os ratinhos espantam as abelhas — ou que as abelhas espantam os ratinhos, porque também nesta ratoeira não caiu rato nenhum.

— Eu estava a pensar para que seria essa ratoeira, disse a menina, porque os ratos nunca sobem em cima dos cavalos.

— De fato é assim, disse o Cavaleiro, mas tive mêdo que subissem e viessem fazer cócegas no meu pescoço. É bom a gente prevenir-se contra tudo. Por isso armei as patas do meu cavalo com êsses espinhos de aço.

— Para que servem êles? indagou Alice, reparando que o cavalo tinha acima dos cascos um anel com terríveis pontas de aço.

— Para defendê-lo contra a mordedura dos tubarões, respondeu o Cavaleiro. É outra invenção minha. Agora ajude-me a montar. Vou acompanhá-la até ao extremo da floresta. Que prato é êsse, aí no chão?

— Um prato que já teve um pudim dentro.

— Será bom levá-lo. Poderemos encontrar algum pudim pelo caminho. Ajude-me a pô-lo nesta sacola.

Foi difícil fazer aquilo, apesar do ajutório de Alice, que segurou a sacola com a bôca bem esticada. Mas o Cavaleiro era um desastrado. Por três vêzes, ao tentar enfiar o prato, enfiou-se a si próprio na sacola, custando muito para sair. Por fim o conseguiu e pendurou a sacola na sela, onde já havia tôda uma quitanda de coisas — até cenouras!

— Estão os seus cabelos bem seguros? perguntou o cavaleiro ao montar, julgando talvez que os cabelos de Alice fossem como as coisas que êle trazia sôbre si.

— Na forma do costume, respondeu Alice sorrindo.

— É preciso que estejam bem seguros, porque o vento aqui é muito forte — tão forte como pimenta da miúda.

— Não inventaria também você algum meio de evitar que os cabelos sejam arrancados pelo vento? perguntou Alice.

— Não ainda, mas tenho um meio de evitar que caiam.

— Desejava muito saber isso.

— Muito simples. Consiste em fincar na cabeça uma estaca onde o cabelo possa ir-se enroscando, como os pés de ervilha. O motivo pelo qual o cabelo cai é que vivem pendurados para baixo. O que cresce para cima, como os pés de ervilha, não pode cair. Esta idéia é minha. Experimente a receita.

Alice parece que não gostou da idéia, nem quis experimentá-la. Calou-se e foi caminhando ao lado dêle em silêncio. De quando em quando parava para arrumar o Cavaleiro na sela, visto como era um péssimo cavaleiro.

Sempre que o cavalo parava (e parava cada passinho) êle afocinhava para a frente, e sempre que o cavalo se punha outra vez em marcha êle pendia para trás. Além disso costumava cair de lado, e muitas vêzes do lado da menina, que para evitar ser machucada nunca se aproximava do cavalo.

— Parece-me que você não tem muita prática de andar a cavalo, disse ela numa das ocasiões em que o arrumou na sela.

O Cavaleiro olhou para Alice com surprêsa e um tanto ofendido por aquela observação. — Por que diz isso? — perguntou êle, justamente quando pendia para um lado e se agarrava no cabelo da menina para não vir ao chão.

— Porque os cavaleiros não caem tanto assim, quando têm prática de andar a cavalo.

— Pois eu tenho uma prática enorme, sabe? Enorme!

Alice engoliu o “Realmente?” que ia pronunciando e nada respondeu. Continuaram a caminhar, o Cavaleiro de olhos fechados, Alice sempre em guarda para ampará-lo de novos tombos.

— O grande segrêdo da arte de andar a cavalo, começou o Cavaleiro em voz alta, é conservar-se...

Não pôde concluir. Caiu duma vez ao chão, de ponta cabeça, quase em cima de Alice, que receou que dessa vez quebrasse alguma costela.

Não tem importância, disse êle, erguendo-se. E continuou a conversa. “O grande segrêdo da arte de andar a cavalo, é conservar-se em perfeito equilíbrio na sela. Assim...”

Dizendo isto o Cavaleiro largou as rédeas e abriu ambos os braços para dar uma demonstração prática. Foi infeliz. Caiu de novo, desta vez de costas e bem debaixo das patas do animal.

— Tenho enorme prática, disse êle logo que Alice o montou de novo. Enorme prática!

— Isto está se tornando ridículo! exclamou Alice já impaciente. Você devia mas era montar um cavalo de pau, com rodinhas.

— Essa espécie de cavalo é melhor e de andar mais macio que o meu? perguntou êle interessadíssimo, abraçando-se com o pescoço do animal para não cair de novo.

— Muito melhor que os cavalos de carne e osso, respondeu Alice rindo-se.

— Quero ter um, disse o Cavaleiro. Um ou dois. Ou vários!

Houve um silêncio de alguns instantes, enquanto caminhavam mais uns passos. Súbito o Cavalheiro tomou a palavra de novo. — Sou um danado para inventar coisas! disse. — Da última vez que você me segurou não notou que eu estava pensativo?

— Notei sim, que estava um tanto grave, respondeu Alice.

— Pois é. Estava inventando um novo meio de atravessar cêrcas. Quer saber qual é?

— Diga.

— Direi primeiro como foi que cheguei a essa descoberta. Pense bem: a dificuldade para atravessar uma cêrca reside nos pés, porque a cabeça está acima da cêrca e portanto a cêrca não a impede de passar. Repare agora no meu raciocínio. Primeiro, coloco minha cabeça em cima da cêrea. Depois fico de pé em cima da minha cabeça. Ora, fazendo isto, os pés ficam acima da cêrca e portanto a cêrca não pode mais impedir que os pés passem.

— Estou achando o processo um tanto complicado, disse a menina. Já o experimentou?

— Não ainda, respondeu o cavaleiro gravemente, e por isso nada posso afirmar com segurança. Receio mesmo que seja um tanto difícil.

O pobre Cavaleiro pareceu tão vexado com a idéia de que sua invenção não valia grande coisa que de

dó dêle Alice mudou de assunto. — Que lindo elmo você tem! exclamou ela de súbito. — É invenção sua?

O Cavaleiro olhou com orgulho para o elmo que pendia do arção da sela. — Sim, respondeu, mas já inventei coisa melhor, em forma de canudo. Quando eu caía êsse elmo tocava o chão antes da minha cabeça, de modo que a queda ficava menor. O perigo era ficar entalado dentro dêle, o que me aconteceu uma vez. O meu rival, vendo o elmo no chão, pensou que estivesse vazio e o pôs em sua cabeça, comigo dentro.

O Cavaleiro falava com tamanha seriedade que Alice não se animou a rir.

— Suponho que você se aproveitou da oportunidade para lhe dar uns pontapés, disse ela.

— Sim, dei-lhe tantos pontapés que êle teve de tirar da cabeça o elmo. E para me arrancar fora do canudo foram necessárias horas e horas de trabalho.

Nesse ponto da conversa o Cavaleiro caiu de novo de ponta cabeça, bem dentro dum buraco. Alice receou que dessa vez se machucasse deveras. Todavia, embora só estivesse vendo os seus pés e pernas, porque o resto do corpo estava enterrado, logo sossegou, vendo que o Cavaleiro continuava na conversa como se nada houvesse acontecido. — Dei-lhe, sim, centenas de pontapés, dizia êle lá do fundo do buraco.

— Como pode você falar tão bem estando com a cabeça para baixo? perguntou Alice enquanto o puxava pelo pé. Por fim conseguiu desenterrá-lo. O Cavaleiro olhou para ela muito surpreendido da pergunta. — Que importa onde a minha cabeça possa estar? disse êle. — Meu cérebro continua a trabalhar da mesma maneira e inventar novas coisas.

— E depois duma pausa: — Sabe que acabo de inventar um novo pudim?

— Bravos! gritou Alice. Dê-me logo a receita.

— Toma-se um bocado de mata-borrão, um bocado de pólvora e um bocado de lacre. Mistura-se tudo e... Chegou a hora de despedir-me de você, menina. Estamos no extremo da floresta. Mas antes de partir quero que ouça uma modinha que compus.

— É comprida? perguntou Alice que andava enjoada de modinhas.

— Comprida, sim, mas lindíssima. Quem a ouve não deixa de chorar ou de rir, à vontade.

Assim dizendo deteve o cavalo e largou as rédeas. Depois, marcando o compasso com uma das mãos e sor-

rindo como se estivesse antegozando a sua própria música, deu comêço à cantoria.

De tôdas as estranhas coisas que Alice viu naquele dia, através do Espelho, foi essa cena a que melhor se gravou em sua memória. Anos mais tarde ainda se recordava de tudo perfeitamente: dos bondosos olhos azuis do Cavaleiro, do sol no poente a iluminar o seu cabelo e a brilhar em sua armadura, do cavalo pastando em sossêgo com as rédeas pendentes do pescoço. Ao longe, as sombras da floresta espêssa. Tudo isto ficou como um quadro indelével em sua memória. Mas esqueceu a modinha, que de fato era das mais compridas.

Quando o Cavaleiro pronunciou as últimas notas da cantiga, retomou as rédeas e voltou o cavalo para o caminho por onde tinham vindo.

— Basta caminhar morro abaixo uns metros mais na direção do riozinho, disse êle. Lá chegando você se transformará em Rainha. Mas não parta ainda. Espere que eu desapareça no horizonte. De longe acene-me com o lenço. Tenho necessidade dêsse gesto para encorajar-me.

— Esperarei, sim, respondeu a menina comovida. E muito obrigada por acompanhar-me até aqui. Obrigada também da cantiga, que estava linda.

— É, mas você não chorou, como eu esperei, disse êle ressentido.

Houve as despedidas. O Cavaleiro dirigiu-se lentamente para a floresta e Alice, imóvel, ficou a acompanhá-lo com os olhos. Lá vai êle cambaleando e caindo como sempre! Caiu agora! Montou de novo! É de tanta bugiganga que leva na garupa...

E assim aos boléus o Cavaleiro chegou ao ponto marcado para a despedida com o lenço. Alice sacudiu o lenço no ar por uns minutos, até perder o Cavaleiro de vista.

— Creio que o satisfiz, disse ela, e agora toca a correr morro abaixo para alcançar o riozinho. Vou finalmente virar Rainha!

Correu. Alcançou a margem do regato.

— Viva! Estou na Oitava Casa! exclamou radiante.

E pulou o riozinho. Caiu do outro lado sôbre uma relva macia.

— Oh, como estou contente de haver chegado! Mas... que é isto em minha cabeça? exclamou, sentindo

que qualquer coisa havia caído do céu sôbre sua cabeça e nela se enterrara firme. Qualquer coisa dura e pesada... Alice tirou-a com esforço e viu...

Era uma coroa de ouro!

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. No Jôgo do Xadrez, que usamos no Brasil, a peça que tem cabeça de cavalo se chama apenas Cavalo. Entre os inglêses essa peça se chama Knight, o Cavaleiro.