Almas agradecidas/IV
IV.
O novo emprego de Magalhães era muito melhor que o primeiro em categoria e lucro, de maneira que a demissão, longe de lhe ser um golpe funesto do destino, foi um lance de melhor fortuna.
Passou Magalhães a ter melhor casa e a alargar um pouco mais a bolsa, pois que a tinha agora mais farta que dantes; Oliveira observava esta mudança e regozijava-se com a idéia de que contribuíra para ela.
A vida de ambos continuaria por este teor, plácida e indiferente, se um acontecimento não a viesse perturbar de repente.
Um dia, achou Magalhães que Oliveira parecia preocupado. Perguntou-lhe francamente o que era.
— Que há de ser? disse Oliveira. Eu sou um miserável nessas coisas de amores; estou apaixonado.
— Queres que te diga uma coisa?
— O quê?
— Acho que fazes mal em diluir o teu coração com essas mulheres.
— Que mulheres?
— Essas.
— Não me compreendes, Magalhães; a minha atual paixão é séria; amo uma menina honesta.
— Que mágoas então são essas? Casa com ela.
— Esse é o ponto. Creio que ela não me ama.
— Ah!
Houve um silêncio.
— Mas não te resta esperança nenhuma? perguntou Magalhães.
— Não posso dizer isso; não penso que ela seja sempre esquiva ao meu sentimento; mas por ora nada há entre nós.
Magalhães entrou a rir.
— Pareces-me calouro, homem! disse ele. Quantos anos tem ela?
— Dezessete.
— A idade da inocência; suspiras em silêncio e queres que ela te adivinhe. Nunca chegarás ao cabo. Tem-se comparado o amor à guerra. Assim é. No amor, querem-se atos de bravura como na guerra. Avança afoitamente e vencerás.
Oliveira ouvia estas palavras com a atenção de um homem sem iniciativa, a quem todo conselho serve. Confiava no juízo de Magalhães e o parecer dele era razoável.
— Parece-te então que eu devo expor-me?
— Sem dúvida.
O advogado referiu depois todas as circunstâncias do seu encontro com a moça em questão. Pertencia a uma família com quem esteve em casa de terceiro; o pai era um excelente homem, que o convidou a freqüentar a casa, e a mãe uma excelente senhora, que ratificou o convite do marido. Oliveira não tinha ido lá depois disso, porque, segundo imaginava, a moça não correspondia à sua afeição.
— És um tolo, disse Magalhães quando o amigo acabou a narração. Vês a rapariga num baile, ficas gostando dela, e só porque ela não te caiu logo nos braços, desistes de lhe freqüentar a casa. Oliveira, tem juízo: vai à casa dela, e dir-me-ás daqui a pouco tempo se te não aproveita o conselho. Queres casar, não?
— Oh! podias pôr em dúvida?...
— Não; é uma pergunta. Não é casamento romântico?
— Que queres dizer com isso?
— Ela é rica?
Oliveira franziu a testa.
— Não te zangues, disse MagaLhães. Eu não sou nenhum espírito rasteiro; também, conheço as delicadezas do coração. Nada vale mais que um amor verdadeiro e desinteressado. Não se me há de censurar, porém, que eu procure ver o lado prático das coisas; um coração de ouro vale muito; mas um coração de ouro com ouro vale mais.
— Cecília é rica.
— Pois tanto melhor!
— Afianço-te, porém, que essa consideração...
— Não precisas afiançar nada; eu bem sei o que vales, disse Magalhães apertando as mãos de Oliveira. Anda, meu amigo, não te detenho; procura a tua felicidade.
Animado por estes conselhos, tratou Oliveira de sondar o terreno para declarar a sua paixão. Omiti de propósito a descrição de Cecília feita por Oliveira ao seu amigo Magalhães. Não desejava exagerar aos olhos dos leitores a beleza da moça, que a um namorado parece sempre maior do que realmente é. Mas Cecília era realmente formosa. Era uma beleza, uma flor em toda a extensão da palavra. Todas as forças e fulgores da mocidade estavam nela, que apenas saía da adolescência e parecia anunciar longa e esplêndida juventude. Não era alta, mas também não era baixa. Era acima de meã. Era muito corada e viva; tinha uns olhos brilhantes e buliçosos, olhos de namorada ou namoradeira; era talvez um pouco afetada, mas deliciosa; tinha certas exclamações que lhe ficavam bem nos seus lábios finos e úmidos.
Oliveira não viu logo todas estas coisas na noite em que lhe falou; mas não tardou que ela se lhe revelasse assim, desde que começou a frequentar a casa dela.
Nisto, era Cecília ainda um pouco criança; não sabia dissimular, nem era difícil captar-lhe a confiança. Mas, através das aparências de frivolidade e volubilidade, descobria-lhe Oliveira sólidas qualidades de coração. O contacto redobrou o seu amor. No fim de um mez, Oliveira parecia perdido por ela.
Magalhães continuava a ser o conselheiro de Oliveira e o seu único confidente. Um dia, pediu-lhe o namorado que fosse com ele à casa de Cecília.
— Tenho medo, disse Magalhães.
— Por quê?
— Sou capaz: de precipitar tudo, e isso não sei se será conveniente antes de conhecer bem o terreno. Em qualquer caso, não é mau que eu vá examinar por mim mesmo as coisas. Irei quando quiseres.
— Amanhã?
— Seja amanhã.
No dia seguinte, Oliveira apresentou Magalhães em casa do comendador Vasconcelos.
— É o meu melhor amigo, disse Oliveira.
Na casa de Vasconcelos, já estimavam o advogado; esta apresentação bastava para recomendar Magalhães.