Alves & Cia/II

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AO ESTREMECER do reposteiro, Ludovina vira-o, deu um grito, saltou instintivamente para longe do sofá. E Godofredo ouviu aquele grito: mas não se podia mexer, sem saber como, achara-se caído sobre uma cadeira ao pé da porta, e tremia, tremia, como numa sezão, e todo frio. E, através do rumor de febre que lhe enchia a cabeça, o deixava sem idéias, ele sentia toda a atrapalhação que ia dentro na sala. Passos fortes pisavam o tapete, houve algumas palavras, palavras trocadas num sopro, e com angústia: depois o ferrolho da porta que dava para a escada correu; e depois um silêncio. Então, subitamente, a idéia que eles tinham fugido ambos restituiu-lhe bruscamente a força, um furor apoderou-se dele, dum salto arremessou-se para dentro da sala. Mas tropeçou numa pele de raposa que ornava o limiar, foi-se estatelar ridiculamente sobre o tapete; quando se ergueu, furioso, com os punhos cerrados, o reposteiro da porta da escada balouçava-se, à margem, e a escada desenrolava-se, sob a luz da clarabóia, solitária, com o seu grande ar de decência. Então, alucinado, precipitou-se para a janela. Pela rua fora, a passadas de côvado, afastava-se o Machado, com o seu guarda-sol na mão. Onde estava ela então? Quando se voltou, no meio da sala, estava a Margarida, espantada, com o seu cartucho de bolos na mão.

— Onde está ela? - gritou o Godofredo.

Ao princípio a criatura não compreendeu; mas, subitamente, deixou cair o cartucho, levou o avental à cara, rompeu a chorar. Ele repeliu-a, quase a atirou para o chão; correu à cozinha. Com a porta fechada, cantando alto para o saguão, e escamando o seu peixe, a cozinheira não ouvira nada, não sabia nada. Então Godofredo arremessou-se contra a porta do quarto de Ludovina. Estava fechada.

— Abre, ou arrombo!

Não houve resposta: ele colou a orelha à madeira; vinha de dentro como um vago soluçar, um confuso sopro de angústia e de terror.

— Abre, ou arrombo - gritou ele, com uma punhada à porta, como se fosse já sobre o corpo dela que batesse, todo com idéias de sangue e de morte.

Então uma voz aflita disse de dentro , num grito de súplica:

— Mas não me faças mal.

— Juro-te que te não faço mal... Abre, abre!

A chave rangeu. Ele precipitou-se enquanto Ludovina, no seu grande penteador branco, se refugiava pôr trás da cama, apertando as mãos, com os olhos arregalados de pavor, e cheios de lágrimas.

E então, diante daquela mulher que chorava, ele ficou com a garganta estrangulada, sem obter uma palavra, dardejando-lhe um olhar de louco, e quase chorando também.

Então ela deu dois passos lentos para ele, com os braços abertos, tremendo-lhe a voz, tremendo ela toda, gritou por entre as lágrimas :

— Oh Godofredo, pela tua saúde, perdoa, eu não tinha feito mal nenhum, e era só a primeira vez...

E ele com a garganta estrangulada articulava apenas com os dentes cerrados:

— A primeira vez, a primeira vez...

A sua cólera subia, fez explosão, num berro:

— E que fosse a primeira, que tem fosse a primeira? E então com quem, infame! E com quem! O que eu devia era matar-te. Vai, vai-te embora, sai daqui, deixa-me, criatura... Vai-te, vai-te.

Ela saiu, num choro desesperado. Então voltando-se, ele viu à porta do corredor a cozinheira, que olhava, curiosa, com o olho aceso, e mais na sombra do corredor, inquieta, e encolhida, mas espreitando também, a Margarida.

— Que faz vossemecê aqui - gritou ele. - Já para a cozinha! Se há aqui um pio vai tudo para a rua.

E atirou com a porta, ficou passeando furiosamente no quarto, onde o grande leito, com as duas travesseirinhas unidas, ostentava a sua brancura. E através do sangue que lhe fervia na cabeça, as suas idéias fixavam-se, decidia-se a bater-se com o Machado, num duelo de morte; e a ela, mandá-la para casa do pai. Pensou também num convento. Mas pareceu-lhe mais digno ir simplesmente restituí-la ao pai. E apenas mediu, pesou, fixou estas duas resoluções, a sua grande cólera calmou-se.

Agora era uma tristeza dura, negra, onde se misturava a necessidade imperativa, fria, aguda de se vingar... Agora a casa parecia de novo adormecida ao sol, conservando apenas como um surdo calor da cólera que ali passara.

Ele então procurou compor o rosto, mesmo diante do espelho arranjou a gravata; e empurrou a porta que dava para a sala de jantar. Ela estava lá sentada numa cadeira, encostada à parede, com o lenço na mão, chorando baixo, e assoando-se pôr entre lágrimas. Os seus cabelos que ainda estavam as lágrimas. Os seus belos cabelos que ainda estavam metidos numa rede vermelha, e o chambre que se desapertara, deixava ver um bocadinho de renda de camisa, uma vaga brancura de seio. Ele desviou os olhos, nem a quis ver chorar. Foi voltado para a janela, seco e duro, que disse:

— Arranje as suas coisas, para ir para casa de seu pai.

Com os olhos voltados para a vidraça, sentiu que pôr trás o choro brando tinha parado: mas ela não respondeu. Ele esperou ainda, uma súplica, um grito de amizade , uma palavra de arrependimento. Ouvia-a apenas assoar-se. Então tornou-se cruel:

— Em minha casa - continuou, sempre voltado para a janela, com uma voz espectral da sua boca de mármore, e que o devia queimar - não quero prostitutas. Pode levar tudo... Tudo o que é seu leve. Mas rua!

Voltou as costas, foi fechar-se no seu gabinete, uma espécie de alcova pequena, onde tinha apenas uma escrivaninha e uma estante. Sentou-se, preparou o papel, lançou ao alto a data, com a mão trêmula que tornava mexido o seu bolso cursivo comercial. Depois hesitou se diria meu caro Papá, ou só Exmº. Senhor: e decidiu-se pôr esta fórmula porque agora todo o parentesco acabava, não tinha mais família. E, diante do papel branco e vazio, ficou pensando, revolvendo esta idéia - não tinha mais família. Um enternecimento invadiu-o, uma grande compaixão de si mesmo. Pôr que lhe sucedia isto a ele, tão trabalhador, tão bom, e que amava tanto? Uma lágrima veio-lhe aos olhos. Mas não se queria comover, queria escrever friamente, rigidamente, a sua carta. Mas ao tirar o lenço, para secar os olhos, encontrou uma caixa da pulseira. Abriu-a, esteve-a olhando um momento: no seu ninho de seda, a cobra de ouro, com olhos de rubis, enroscava-se trincando o rabo. E ali estava o belo símbolo da continuidade eterna, dos dias felizes que voltam, um a um, para todo sempre. Então veio-lhe um desejo furioso de a acabrunhar, de lhe atirar em rosto todas as suas bondades para com ela, os seus sacrifícios, as toilettes que lhe dera, todas as vontades a que obedecera, e os camarotes em São Carlos, e as dedicações do seu amor. E não se conteve, voltou à sala de jantar, com os lábios cheios de exprobações. Ela ainda lá estava, de pé agora, e como ele há pouco, olhando estupidamente o prédio fronteiro, limpando os olhos. O seu belo perfil banhava-se na luz, a sua grande saia continuava, numa linha mole, a graça forte do seu corpo. E subitamente Godofredo sentiu que as palavras se lhe secavam na boca. Não achava uma transição para começar as suas invectivas: e à outra janela torcia furiosamente o bigode, com o coração num tormento, os lábios estéreis. Pôr fim uma idéia absurda surgiu do seu vago fundo romântico. Atirou a pulseira para cima da mesa; gritou:

— Mete isso também na mala, tinha-ta comprado hoje, é mais uma prenda!

Ela instintivamente deu um olhar à caixa da pulseira. Depois recomeçou a chorar.

Aquelas lágrimas mudas importunavam-no, enervavam-no.

— Para que estás tu a chorar? De quem é a culpa?... Minha não é, que nunca aqui te faltou nada...

E então foi uma explosão. Passeando pela sala, numa voz baixa, rápida, lançou-lhe à face toda a sua ternura, toda a sua dedicação. Ela deixara-se cair sobre uma cadeira, chorando sempre. Parecia dever chorar eternamente. Ele gritou-lhe:

— Mas deixa-te de choros, fala! Dize, explica... Não tens nada a desculpar-te? Foste tu que quiseste, foste tu que o provocaste?

Ela, sentada ainda, levantou vivamente o rosto. Um clarão luziu-lhe nos olhos, através das lágrimas. E, sofregamente, como quem se agarra para não cair, acusou o Machado. Fora ele, ele só tivera a culpa. Aquilo começara havia quatro meses, quando ele tinha deixado a D. Maria. E então começara com ela: e falava-lhe, e tentava-lhe, e escrevia-lhe e aparecia lá quando Godofredo estava no escritório, e um dia, enfim, quase à força...

— Juro-te que foi assim... Eu não queria, pedi-lhe por tudo... Depois tive medo que a Margarida ouvisse o barulho...

E Godofredo ouvia estas coisas, lívido.

— Deixa ver as cartas dele - disse por fim, com uma voz que mal se ouvia.

— Não as tenho...

Ele deu um passo para o quarto, dizendo:

— Eu as acharei.

Ela erguera-se, com um grito, envolvendo-o nos braços:

— Juro-te que as não tenho. Assim Deus me salve... Entreguei-lhas todas há dias...

Ele afastou-a, foi ao toucador. Justamente o molho de chaves estava sobre o mármore, entre os frascos. E então começou uma busca desesperada pôr entre os lenços, as rendas, as caixas de leques, todas essas coisas íntimas de mulher.

Ela, pôr vezes, tomava-lhe o braço, jurava-lhe que não tinha cartas. Ele tranqüilamente afastava-a, continuava, devastando as gavetas. Um leque de marfim quebrara-se ao cair: um rosário de contas com a sua cruz jazia no chão.

E já lhe parecia que ela falava verdade, quando viu o maço de cartas, apertado com uma fita de seda, e expondo-se estupidamente à sua vista, desde o princípio, entre duas escovas. Arrebatou-o, desapertou-o : não eram cartas dele, eram cartas dela. A primeira que abriu começava, meu anjo. Então tranqüilamente meteu-as no bolso. Voltou-se para ela, que ficara prostada à borda do Leito, disse:

— Arranje-se, para ir hoje mesmo.

Voltou ao gabinete. E aí uma por uma leu as cartas. Não havia nada mais imbecil: era a perpétua repetição de frases empoladas, e feitas: " Meu anjo adorado, por que não fez Deus que nos encontrássemos há mais tempo?"... "Meu amor, pensas tu naquela que daria a vida por ti?" E mesmo isto: "Ai, quem me dera ter um filho teu..."

E a cada frase lhe caía no coração, como uma pancada surda, que o devastava. Então, vivamente, e quase rasgando o papel com a pena, escreveu a carta ao sogro, quatro palavras simples, "que encontrara sua mulher com um homem, e desejava que ele a viesse buscar, e a recolhesse. Senão ele pô-la-ia de todo o modo fora de casa, como uma meretriz, indiferente ao destino que ela tomasse". E num post-scriptum acrescentava que ia sair da cinco às sete - e lhe pedia que aproveitasse essa ausência dele para vir buscar sua filha.

Depois meteu a carta no bolso, abotoou a sobrecasaca, passou a manga pela seda do chapéu e saiu. Na escada encontrou um rapaz, de avental branco com um cesto na mão.

— É aqui que mora o sr. Alves?

Era o empadão, o fiambre, o queijo da Serra, todas as coisas boas que le comprara. Uma onda de tristeza afogou-lhe o coração. Teve de se segurar à rampa, para não desfalecer; o rapaz olhava-o espantado.

— É de casa do Mata?

Sim, senhor - respondeu o rapaz, ainda espantado daquele senhor que lhe parecia doente.

Godofredo murmurou:

— Sobe, bate em cima.

E ficou a escutar, ouviu o rapaz tocar, a porta abrir-se, depois a voz da Margarida dizer para dentro:

— É um rapaz que traz uma empada, minha senhora.

Ele desceu as escadas, quatro a quatro, mas embaixo, como dominado pela decência grave da escada, procurou calmar-se, abotoou a sobrecasaca, passou as mãos pela face, preparando-se para passar diante dos seus vizinhos, naquele ar que o fazia estimado e respeitado.