Alves & Cia/IX

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NO DIA SEGUINTE, num momento de enternecimento, querendo dar à sua felicidade um meio mais poético - e como o tempo estava adorável -, Godofredo propôs o irem estar uns dias a Sintra. E aí foi uma lua-de-mel. Estavam na Lawrence , tinham um pequeno salão para eles sós; levantavam-se tarde, Godofredo quis champagne ao jantar, e beijavam-se às escondidas debaixo das árvores. E Godofredo não a deixava um instante, ávido de gozar de novo aquela intimidade, que ele julgava perdida, sentindo um prazer infinito em a ver apertar o colete, encontrar um chambre dela sobre uma cadeira, ou assistir-lhe ao penteado.

Ao fim de quatro dias voltaram; e esta lua-de-mel prolongou-se ainda em Lisboa, cheia e larga, sem considerações pôr despesas, com carruagem da companhia, e camarote em São Carlos. Godofredo queria mostrar-se pôr toda a parte com ela, para tapar as bocas do mundo. Em São Carlos mesmo tomava sempre uma frisa, bem em evidência, fazendo exposição da sua felicidade doméstica. E como Ludovina, com os ares da Ericeira, voltara mais forte, mais cheia, magnífica na sua forte beleza de trigueirona forte, os homens na platéia olhavam-na muito; havia sempre algum binóculo fixo sobre ela.

— Lá estão a olhar - dizia Godofredo. - Estão pasmados de nos ver juntos... Pois é para que saibam.

E à frente do camarote puxava devagar os punhos, sorria à sua Lulu.

Numa dessas noites dava-se a Africana, pela primeira vez. E Ludovina, que durante toda a representação estivera torturada com um par de botinas novas, quis sair no meio do quinto ato; e ele cedeu logo, apesar do prazer que lhe davam os gorgeios patéticos da Alteroni, sob as ramagens das mancenilheiras, à luz trágica da lua cheia. Agasalhou-a, deu-lhe o braço: - e no peristilo, a um canto, esperavam que se aproximasse a carruagem da companhia, quando, de repente, apareceu o Machado, de charuto na boca, enfiando o paletot. Ele decerto não os viu porque continuou, através do peristilo, assobiando, com o seu ar um pouco gingado, de gravata branca, acabando de abotoar o paletot. Mas de repente deu com eles! Um momento pareceu hesitar, ficou enleado, pálido, com os dedos esquecidos nos botões. Depois decidiu-se, tirou profundamente o chapéu. De dentro da gola branca da saída de baile, ela fez um ligeiro movimento de cabeça, baixou os olhos, séria, impassível, imóvel, com a sua grande cauda azul apanhada na mão. E Godofredo, depois de hesitar também um instante, terminou pôr dizer alto um olá Machado, boa noite! Machado saíra vivamente, para fora.

No dia seguinte, quando Godofredo entrou no escritório, Machado já estava à sua carteira. Depois dos cumprimentos secos e usuais, Godofredo esteve um momento remexendo os papéis, lendo a correspondência; depois deu um olhar vago e distraído ao jornal; evidentemente estava preocupado, com o pensamento noutra coisa; e de repente recostou-se, fez estalar os dedos, perguntou ao Machado:

— Então ontem que tal lhe pareceu a Alteroni?

Era a primeira vez que lhe dirigia uma palavra - estranha aos negócios da firma! Machado ergueu-se um pouco nervoso para responder:

— Gostei muito... E você?... Boa voz, hein?

E estas banais palavras, apenas soltas, foram como portas dum dique que se abre. Godofredo erguera-se também - e foi um fluxo de palavras, dum e doutro, ao princípio hesitantes, depois tomando calor, aproximando-os um do outro, formando uma viva corrente de simpatia. Era como dois amigos que se encontram depois duma ausência; e cada um reconhecia no outro aquilo que nele sempre estimara: com um trivial gracejo do Machado sobre o tenor, Godofredo ia rebentando a rir - e uma observação de Godofredo sobre o uníssono das rabecas interessou imensamente o outro, fê-lo pensar que o Godofredo era realmente um grande entendedor de música. Depois Godofredo falou da estada em Sintra. E um momento conversaram sobre Sintra, dizendo cada um os sítios que lá preferia, a impressão que eles lhe davam - como se depois daquela longa separação sentissem a necessidade de conferirem as suas idéias e os seus gostos respectivos. Depois, como Machado tinha de sair mais cedo - o shake-hands que deram à despedida foi profundo, ardente, duma reconciliação completa, unindo-os outra vez e para sempre.

Então, outra vez, a vida de Godofredo foi calma e feliz. Na casa da rua de São Bento entrara de novo a ordem e a alegria; os ovos ao almoço já não apareciam crus ou duros; já à noite o Souvenir d’Andalousie dava a Godofredo aquele não sei quê dos vergéis de Granada, e a todo o momento a voz dela, o frou-frou dos vestidos dela banhavam de alegria o seu coração. E o inverno tinha assim passado, passava a primavera, estava-se nos primeiros calores de março quando, uma manhã, ao sair, ao passar no corredor, avistou entre portas a Margarida que dava sub-repticiamente, e em segundo, uma carta à senhora. Foi como um rochedo que lhe arremessassem contra o peito. Mal atinava com o fecho da porta; imaginou logo outro homem, outro amante, e a sua felicidade, aquela felicidade tão laboriosamente reconstruída, de novo rachada pôr todos os laços. Sentiu um terror, como se se visse vítima dum fado, dum fado terrível e bestial, da fatal incontinência da fêmea. Pensou que seria outra vez o Machado; e passou-lhe nos olhos uma onda de sangue, pensou que desta vez não haveria nem conferências, nem consultas, nem testemunhas, mas que entraria no escritório, e lhe meteria à queima-roupa uma bala no coração.

E sentiu-se tão agitado que não supôs poder tolerar o aspecto do Machado; não foi ao escritório, vagueou pela Baixa, tendo sempre diante dos olhos a mão da criada, o papelinho branco, o ar embaraçado da Ludovina. Entrou em casa, sombrio e taciturno. E não podia estar quieto , ia duma sala a outra, atirava com as portas, com o ar dum homem que sufocava, sentindo em volta de si o ar carregado de engano e de traição; Ludovina espantada terminou pôr lhe perguntar o que tinha ele.

— Nervos - respondeu com mau modo.

E daí a momentos, cedendo a um impulso furioso, voltou-se para ela, declarou que estava farto de mistérios, que aquela vida era um inferno, e que queria saber que papel era o que lhe tinha dado a Margarida.

Ela olhou-o, pasmada daquela violência, daquela voz estridente, levando instintivamente a mão ao bolso do robe de chambre.

Ele seguira-lhe o movimento:

— Ah, tens aí a carta! Deixa ver...

Ela então mostrou-se ofendida com aquela desconfiança. Recomeçavam outra vez as suspeitas, as questões? O que, não podia ela receber um papel sem ele querer meter o nariz!

Ele, pálido, com os punhos fechados, gritou:

— Ou me dás a carta, ou te racho!

Ela fez-se pálida, chamou-lhe malcriado, caiu para o sofá a chorar, com as mãos no rosto.

— Dá-me a carta! - gritava ele em bicos de pés. - Dá-me a carta! E desta vez não há-de ser como da outra vez. Vais para um convento, mato-te!

E não esperou a resposta, arremessou-se sobre ela, torceu-lhe o braço, rasgou a algibeira do robe de chambre, apoderou-se da carta. Mas não podia perceber a letra: era uma garatuja, sem ortografia, num pedaço de papel pautado. Começava minha querida senhora; vinha assinada Maria do Carmo, e falava-se lá de esmola, do pequenito que estava melhor do sarampo e de orações que não deixariam de se rezar pôr aquela boa esmola.

Trêmulo, murcho, humilhado, com o papel na mão, ele veio sentar-se ao lado de Ludovina que chorava entre as mãos, e passando-lhe o braço pela cintura, balbuciou:

— Está bem, vejo que não é nada, desculpa, dize lá o que é.

Ela repeliu-o, pôs-se de pé, toda ofendida. Estava satisfeito? Tinha lido a carta, hein? Era dum homem, não era?...

Ele balbuciou, envergonhado:

— Mas também todos esses mistérios...

E como ela, bela e de pé, limpava os olhos engolindo os soluços, ele não se conteve, teve necessidade do seu perdão, pôs-se de joelhos, e com as mãos postas, murmurou:

— Perdoa, Luluzinha, foi tolice minha...

Com um outro soluço ainda maior, ela bateu-lhe com a ponta dos dedos na face...

E ele então quase chorou também, beijou-lhe as mãos, abraçou-lhe os joelhos, terminou pôr se erguer agarrado às saias dela, encheu-lhe o pescoço de beijos. E ainda na comoção dos dois, entre abraços, ela contou-lhe a história das esmolas secretas que fazia a uma pobre rapariga que conhecera na Ericeira, que um patife seduzira e abandonara com dois filhos, um ainda de mama...

— Mas para que fizeste mistério, meu amor? - continuava ele, comovido e apaixonado.

Ela então confessou que já lhe dera mais de cinco mil réis, - e tinha que ele achasse extravagância...

E a alegria que ele sentia era tão viva que exclamou:

— Qual extravagância! Dá-lhe outros cinco... É pôr minha intenção:

Tudo terminou num beijo.

E então Godofredo sentiu-se envergonhado da sua cólera dessa manhã contra o Machado. Lá pensara outra vez em matar o Machado! E agora sentia a necessidade de o rever, apertar-lhe profundamente a mão - sentindo nesse instante pôr ele uma amizade maior, não sei que reconhecimento vago que o enternecia.

Mas no outro dia, quando entrou no escritório, não se conteve, sem motivo abraçou pela conta o Machado. E o outro correspondeu ao abraço, sem estranhar esta efusão, mas com um modo, um ar de enternecimento, um abandono triste que surpreendeu Alves, e a sua surpresa foi maior quando viu que Machado tinha os olhos vermelhos, como se tivesse chorado.

— É minha mãe que está muito mal - disse o Machado, respondendo à interrogação do seu sócio.

E Alves, com a sua alegria cortada pôr aquela dor, só pôde murmurar:

— Diabo!

Era o diabo, era! E o médico não dava esperança. A pobre senhora sofria duma complicação de doenças de fígado, de bexiga, de coração, que pareciam resolver-se agora, num desarranjo total da vida. Na véspera tinha tido um desmaio de duas horas. Ele julgara-a morta: e nessa manhã tinha um alívio, extraordinário, de que ele desconfiava. E o pobre Machado suspirava

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dizendo isto. O amor da mãe fora até aí o seu sentimento mais vivo: eles tinham vivido ambos, sempre juntos; pôr causa dela ele nunca quisera casar, e agora aquela perda parecia tirar da sua vida tudo o que lha tornava cara...

— Deus não há-de querer uma desgraça - murmurou Godofredo comovido...

O Machado encolheu os ombros, e daí a instantes saiu, para voltar para junto da sua pobre doente.

Todos os dias então, três, quatro vezes, Godofredo ia à casa de Machado saber notícias. A pobre senhora piorava: felizmente não sofria, e os seus últimos instantes eram consolados pôr aquele amor em que o filho a envolvia, não se arredando um instante do leito dela, recalcando a dor, escondendo a palidez, animando-a, falando de planos e de idas para o campo, e gracejando como nos bons tempos. Depois uma tarde Godofredo chegou a saber notícias. A criada apareceu com o avental nos olhos. A senhora morrera havia uma hora, como um passarinho. Ele entrou, Machado caiu-lhe nos braços, perdido de choro.

Godofredo não o deixou mais, Passou essa noite com ele: ocupou-se do enterro, dos convites, da compra dun terreno no Alto de São João. E ao outro dia, na solenidade dos pêsames, os amigos da casa davam-lhe a ele apertos de mão, tão sentidos e tão mudos, como ao próprio Machado - reconhecendo, nele, mais que um irmão de Machado, quase um pai.

O enterro foi concorrido; havia vinte carruagens; Godofredo levava a chave do caixão, e no cemitério dirigiu tudo, convidou os amigos mais íntimos para as borlas do esquife, cochichou com os padres, prodigalizou-se, e, quando o caixão desceu à cova, as únicas lágrimas que houveram foram as dele.

No dia seguinte Machado partiu para Vila Franca para casa duma tia; e Godofredo foi levá-lo à estação, ocupou-se da sua bagagem, chorou outra vez ao abraçá-lo.

Passados quinze dias Machado voltou, ocupou outra vez a sua carteira no gabinete de reps verde. Mas não parecia o mesmo. Estava mais sereno, sim, mas tão triste no seu luto, que Godofredo, sempre romântico, pensou de si para si que aqueles lábios nunca mais sorririam.

Depois, vendo-o demorar-se à carteira, sem vontade de ir para casa - para casa agora vazia, para o jantar solitário -, veio-lhe um dos seus bruscos impulsos de bondade, esqueceu tudo, abriu os braços ao Machado:

— O que lá vai! Venha você daí jantar conosco!

E nem o deixou hesitar, quase lhe enfiou o , paletot, arrastou-o pela escada abaixo, chamou uma tipóia, atirou-o para dentro, levou-o em triunfo à rua de São Bento. Machado todo o caminho não disse nada, tremendo àquele encontro, palidecendo já, procurando uma palavra natural para lhe dizer... Logo na escada sentiram o som do piano, e daí a instantes Godofredo, metendo a cabeça através do reposteiro da sala, exclamava radiante:

— Ludovina, trago-te aqui um convidado.

Ela erguera-se, e achou-se diante do Machado, que se curvava profundamente, disfarçando a sua perturbação na profundidade daquela cortesia. Ela fizera-se escarlate - mas a sua voz foi clara e firme, quando lhe estendeu a mão, dizendo:

— Como está, sr. Machado? Então chegou bem?

Ele balbuciou umas palavras, e ficou de pé, esfregando as mãos, devagar - enquanto Ludovina dissipava aquele embaraço, com uma infinidade de palavras, contando a Godofredo uma infinidade de palavras, contando a Godofredo uma visita duns certos Mendonça, e falando do Mendonça, e do Mendonça pequeno, vivamente, nervosa e com as orelhas a arder.

Depois, para dar as suas ordens, apressou-se a sair.

Quando ficaram sós, Godofredo teve esta palavra profunda:

— Isto, quando há boa educação, tudo se vem a acabar bem!

Daí a pouco ela voltou, mais serena, tendo decerto posto na face uma camada de pó-de-arroz. Machado sentara-se no famoso sofá amarelo, e quis-se erguer, dar-lhe esse lugar. Mas ela não consentiu, sentou-se ao lado, na poltrona amarela, e, como se quisesse emendar um esquecimento, apressou-se a dizer dum fôlego, como um recado:

— Eu senti muito a perda que o sr. Machado...

Ele curvava-se, murmurando uma palavra.

E Godofredo acudiu, exclamando:

— Nisso não se fala agora! Devem-se aceitar os decretos de Deus, acabou-se.

Mas uma senhora passara sobre a face comovida de Machado, e um bafo morno de tristeza pesou na sala. E foi esta tristeza que, subitamente, os pôs à vontade. Era como se o Machado, com aquele luto pesado, aquela saudade da mãe, aquele túmulo ainda recente, não fosse o mesmo que ali bebera copos de vinho do Porto, com ela nos braços, sobre o sofá amarelo; mas um outro Machado, um rapaz grave, com uma dor que era necessário consolar, envelhecido, e para sempre incompatível com coisas de amor. Ela achava-o mudado, e olhando-o não se recordava de como ele era noutros tempos; ele também a achava tão estranha, como se fosse a primeira vez que viesse àquela casa. O marido esquecia, eles esqueciam ambos também. E terminaram pôr se olhar, falar, naturalmente, sem embaraço, ela dizendo "sr. Machado", ele respondendo "vossa excelência" frios, tendo para sempre acabado de estremecer um defronte do outro, como dois carvões apagados.

E o jantar foi tranqüilo, calmo, íntimo, quase alegre.

Então a vida continuou, desenrolando-se, banal e corredia como ela é. O luto de Machado acabou, ele voltou aos teatros, teve outras vezes raparigas espanholas e namorou senhoras. Depois o Neto morreu, de repente, de apoplexia, dentro dum omnibus: e a Teresinha veio viver com a irmã. Ao fim de dois anos Machado casou, com uma menina Cantanhede, pôr quem ele concebera uma paixão absurda, frenética, que não podia esperar, o fez concluir namoro, enxoval, licenças e casamento, tudo dentro dum mês.

Houve um baile. Ludovina apareceu com uma bela toilette, mas dançou pouco, porque houvera um engano nos sapatos - e os que tinha nos pés torturavam-na a ponto que esteve para desmaiar.

Depois ao fim dum ano a pobre Cantanhede morreu de parto - e outra vez Machado soluçou perdido de choro nos braços de Godofredo; outra vez Godofredo recebeu a chave do caixão, deu apertos de mão profundos e mudos, na noite de pêsames. Mas desta vez Ludovina ajudava-o, Ludovina chorando também, porque ela e a pobre Cantanhede eram íntimas, não se deixavam, passavam o seu dia a beijar-se. E a dor de Ludovina foi tão grande quase como a do Machado.

Depois a vida continuou banal e corredia como ela é. Ao fim de dois anos Machado tinha pôr amante uma atriz do Ginásio. E pôr esse tempo houve em casa do Alves um desgosto - o casamento de Teresa, feito contra vontade da irmã e do cunhado, com um empregado da alfândega, um imbecil, um tacanho, sem vintém, sem cabeça, que seduzira a menina pôr ser louro como uma espiga. E foi necessário casá-la porque se definhava, ameaçava de se deitar da janela abaixo, e havia outras desconfianças. Foi necessário casá-la.

E os meses passaram, depois os anos. A firma Alves e Cia. Crescia, enriquecia. O escritório, agora mais largo, mais rico, com seis caixeiros, era à esquina da rua da Prata. Godofredo estava mais calvo, Ludovina engordara: tinham carruagem; e no verão iam para Sintra. Depois Machado casou outra vez, com uma viúva, casamento inexplicável porque nem era bonita, nem rica; tinha apenas uns olhos extraordinários, muito negros, muito pestanudos, muito quebrados, a expirar de langor.

Foi um casamento à capucha - e os noivos partiram para Paris. Voltaram, vieram viver para o pé dos Alves, que agora tinham mudado para um palacete a Buenos Aires. E uma outra grande amizade nasceu logo entre a Ludovina e a senhora dos olhos langorosos: bem depressa Ludovina se tornou a escrava desta curiosa criatura que escravizava também o marido, tinha uma influência absoluta em Godofredo, dominava tudo em redor de si, criados, relações, fornecedores, sem nenhum esforço, sem qualidade nenhuma superior, só com a sua figurinha roliça e os seus olhos pestanudos que expiravam de langor.

Agora as duas famílias vivem junto uma da outra - e ao lado uma da outra vão envelhecendo. No dia dos anos de Ludovina há sempre um grande baile - e, sempre inseparável deste dia, vem à memória de Alves aquele outro dia de anos, em que ele entrou em casa, e viu no sofá amarelo... Mas há quanto tempo isso vai. E esta lembrança agora só faz sorrir. E fá-lo também pensar - porque este fato permanece como o grande acontecimento da sua vida e dele extrai geralmente a sua filosofia e as suas reflexões usuais. Como ele diz muitas vezes ao Machado - que coisas prudente é a prudência! Se naquele dia do sofá amarelo ele se tivesse abandonado ao seu furor, ou se tivesse persistido depois em idéias de vingança e rancor, qual teria sido a sua vida? Estaria agora ainda separado de sua mulher, teria quebrado a sua amizade íntima e comercial com o seu sócio, a sua firma não teria prosperado, nem a sua fortuna aumentado; e o seu interior teria sido o dum solteirão azedado, dependente de criadas, maculado talvez pela libertinagem. Nesses longos vinte anos que tinham passado, quantas coisas belas teria perdido, quantos regalos domésticos, quantos confortos, quantos doces serões de família, quantas satisfações da amizade, quantos longos dias de paz e de honra! A estas horas estaria velho, azedado, com a vida estragada, a saúde arruinada, e aquela vergonha do seu passado queimando-o sempre!

E assim, que diferença!

Tinha estendido os braços à esposa culpada, ao amigo desleal, e, com este simples abraço, tornara para sempre a sua esposa um modelo, o seu amigo um coração irmão e fiel. E agora ali estavam todos juntos, lado a lado, honrados, serenos, ricos, felizes, envelhecendo de camaradagem no meio da riqueza e da paz.

Às vezes, pensando nisto, Alves não pode deixar de sorrir de satisfação. Bate então no ombro do seu amigo, lembra-lhe o passado, diz-lhe:

— E nós que estivemos para nos bater, Machado! A gente em novo sempre é muito imprudente... E pôr causa duma tolice, amigo Machado!

E o outro bate-lhe no ombro também, responde sorrindo:

— Pôr causa duma grande tolice, Alves amigo.