Ambições/IV

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IV


O dr. Ramalho — homem de trinta e oito annos, mais insinuante do que bello — fôra para alli logo ao sahir da Universidade, era a Pillar ainda uma criancita a quem beijava e contava contos. Vira-a crescer com o desvanecimento d’um pae ou irmão mais velho, não a considerando mulher senão quando ella lhe confessou, n’um impeto de franqueza, o seu enthusiastico amôr pelo Emygdio. Um d’estes amôres romanticos de rapariga, que sente um prazer morbido de sacrificada em offerecer ao homem, julgado infeliz, todas as alegrias e felicidades da terra. O dr. Ramalho tentára então tratá-la com ceremoniosas excellencias, o que a fazia rir perdidamente, terminando por lh’o prohibir.

É que a intimidade acarreta mais vezes affeições assim ternas e simples do que traz o amôr — paixão.

N’esta altura abriram-se as camaras e o dr. Ramalho, que era deputado, teve que sahir para Lisboa.

Á despedida animára os paes, dizendo lhes que, a pleuresia aguda estando vencida, ella ficava livre de perigo e bem entregue aos cuidados do collega; mas se sobreviesse qualquer imprevista recahida o chamassem logo. E terminava em confidencia — «o abalo physico foi tão forte e a fraqueza é tanta que ha muito a recear um desequilibrio nervoso, que temperamentos como o d’ella teem sempre mais ou menos latentes. Que era urgente uma radical mudança em toda a sua vida... Que apressassem o casamento. A realisação d’esse ardente desejo do seu coração havia de a curar.

Os paes concordaram de boa vontade em apressar o casamento; tudo quanto a filha desejasse elles fariam para a melhorar. Mas a doente sorrindo desdenhosa á proposta e olhando o Emygdio que a fitava ansiado e a Candida que se fingia desinteressada da conversa, respondeu que não tinha pressa, que havia muito tempo... queria que o João assistisse, queria melhorar de todo...

Desde esse dia é que o Vilhegas se mortificava a procurar o motivo d’aquella mudança da noiva, que lhe roubava assim a fortuna ambicionada quando elle já estava de mãos estendidas para a agarrar.

Redobrou de cuidados e de medicamentos, mas a Pillar, em vez de melhorar, de dia para dia se mostrava mais enfraquecida, mais desanimada e perto da morte. Quando os paes, cheios de dôr, fallavam em mandar vir o dr. Ramalho, ella oppunha-se, chorava, dizia que estava melhor, e que se elles o queriam chamar é porque a julgavam muito mal, em estado desesperado...

Sabia-se condemnada, e comprazia-se em ver o Vilhegas soffrer sósinho, na impossibilidade de a curar; e elle, vaidoso, preferia tambem ser o unico a tratá-la para assim ganhar o terreno que sentia esboroar-se-lhe sob os pés. Queria illudir-se, não vendo que a noiva tinha na face, quasi cadaverica, um sorriso torturado de quem tudo comprehendia; e morria vingada porque a sua morte era o castigo d’elle. Á Candida sabia bem que o não deixava; conhecia-o agora ambicioso e vulgar tal qual era, incapaz de se sacrificar por uma mulher ou por um interesse que não fosse exclusivamente seu.

Morria, a pobre, mais por ter visto morrer o seu ideal do que pela doença que lhe consumia o corpo.

Não lhes dizia nada, sentindo um mortal prazer em vê-los estorcer-se na incerteza e no pavor. Crueldade verdadeiramente humana e bem desculpavel a quem soffrera esse despedaçar de illusões em que corpo e alma se lhe caem esphacelados.

Tinha dias d’uma passividade dolorosa em que era impossivel, mesmo á propria mãe, arrancar-lhe uma palavra ou um gemido; outros em que fallava e ria, mas de tal maneira confrangida e amarga, que antes a preferiam nos dias de maior tristeza.

Tudo n’ella se transformára ou modificára. O proprio affecto pela mãe, que era d’antes mais respeitoso do que carinhoso, tornára-se n’um grande amôr apaixonado de quem se refugia, mortalmente ferido, no logar em que a acolhida é mais amoravel e certa. Queria-a ao seu lado, sem fazer nada, toda embebida a olhá-la, enchia-a de caricias, e atormentava a com as palavras de mais desconsolador desânimo.

— «Oh mãesinha, — dizia lhe um dia — se não fosse o João, pedia-te, e ao papá tambem, para morrerem commigo. Querias?!...

— «Oh meu anjo, mas tu não hasde morrer. Para que pensas n’essas tolices? Não vês o que diz o Vilhegas? A tua doença tem muito de nervoso, hade passar, verás!...

— «Pois é, eu sei... mas dize: gostarias de morrer commigo?

— «Oh se gostava! Que maior felicidade pode haver para uma pobre mãe?!... Não deixar n’este mundo egoista e mau os filhos do seu coração, não os vêr partir levando-lhes a alma?!...

— «Pensas como eu, somos bem irmãs no sentir! Se tivesse filhos... Oh! se tivesse um filho!... — os olhos enchiam-se-lhe de lagrimas, com uma grande magua de virgem que sente que todo o seu ser se revolta vendo-se privada injustamente da mais alta, nobre e bella das alegrias femininas, o orgulho de ser mãe. — Olha, se eu tivesse um filho havia de amá-lo assim.

Ficava-se horas esquecidas deitada sobre os joelhos da mãe, não podendo sentir nem o barulho d’um relogio sem gritar que lhe espetavam alfinetes no cerebro. De dia para dia peorava e a irritabilidade nervosa augmentava a ponto de a pôr a cada instante em crises de soluços e lagrimas que lhe avermelhavam a bocca com o sangue que os pulmões não comportavam já.

Emygdio, desanimado scientificamente, queria conservar a todo o custo uma illudidora esperança; d’essa esperança sem base que está no intimo de todos os seres humanos, inferiores ou superiores, eternas crianças que somos, só fortes á custa de raciocinio e vontade consciente e educada.

Mas n’essa manhã desconsoladora de inverno, vira-a tão desmudada e cadaverica, que desanimára de todo. A correr se dirigira ao telegrapho para chamar o dr. Ramalho e para alli voltára logo e alli se conservava na espectativa do grande desastre.

Os paes encaravam-se espavoridos, sem manifestação de sentimento, porque a dôr quando assim forte é como anesthesico para o espirito que se concentra no ultimo reducto da esperança, no impossivel, no milagre...

A noite cahia com a lentidão pastosa das tardes de chuva, que se afogam em lama silenciosamente. Os criados, em bicos de pés, accendiam as luzes indispensaveis para o serviço, trocando phrases a meia voz em que a palavra morte se repetia já como um dobre de sinos, e soluços abafados se suffocavam. Por toda a casa pesava o mesmo silencio funebre que se presentia cheio de gritos prestes a explodir...

O Emygdio, junto da janella, olhava inconsciente a sombra rapida que crescia no jardim, as arvores encharcadas pingando no chão já empoçado, as hastes despidas de folhagem enlaçando n’uma alliança macabra aquellas que o inverno não pode desnudar nas suas furias loucas. Como era differente o aspecto do jardim, n’essa amorosa noite de outomno, a ultima em que estivera com a Candida, aquella em que a Pillar adoecêra!...

Do quarto da doente vinha um murmurio de vozes, que se differençavam. Todas as vezes que a da Pillar, um pouco rouca, já estortorosa, se ouvia, elle enterrava as unhas nas palmas das mãos, n’um desespero de vencido.

Ella soluçava n’esse momento, deitando os braços ao pescoço da mãe como se quizesse agarrar-se ainda á vida que lhe fugia:

— «Soffro, soffro muito!... Vão chamar o papá! Quero ver o João... Tenho medo, mãe, tenho medo!...

— «Medo de quê, filhinha? Estou eu aqui, não vês?... — respondia-lhe estrangulando os soluços a triste mãe.

— «Não sei!... Tenho medo de tudo!... Queria morrer sem ver chegar a morte!...

— «Não hasde morrer, meu anjo! Deus terá piedade de nós!...

Hallucinada, reerguendo-se da cama, respondeu arquejante:

— «Não lh’o peças, ouviste? Podia attender-te, e eu não quero viver, não quero!...

Vendo a angustia da mãe cahiu em si, e rouquejou um soluço de perdão.

— «A Candida? — inquiriu n’um cicio, d’ahi a momentos.

— «Está lá dentro. Tráta-la tão mal, que a pobre menina não se cança de chorar.

— «É da doença,... Trato mal todos, a ti tambem.

— «Não digas isso.

— «Trato, bem sei... Mas tudo vae mudar em breve... Serei tão bôa... Vae chamá-la, que venha, que pode vir... Não lhe farei mal... — Tão amarga ironia resumbravam estas palavras que mais pareciam o riso funebre d’uma caveira.

A Candida entrou sob a gelida impressão de quem entra como réo avergado á culpa, n’um tribunal em que a consciencia é juiz inilludivel e implacavel.

Presentia que o momento solemne das explicações chegára inappelavelmente e não podia avaliar o resultado final d’aquella entrevista que a podia atirar para a miseria mais desoladora, a dos incapazes para o trabalho.

A doente entreabriu os olhos, acenou á mãe e á Engracia para sahirem, e ficou só com a prima. Fixou-a em silencio, com os grandes olhos pasmados dos moribundos, vendo-a estorcer-se n’um supplicio sem ousar avançar nem recuar, querendo fugir á suggestão d’aquelle olhar que a condemnava mais do que a sentença d’um juiz.

— «Vem... — murmurou por fim a inferma.

Deu dois passos cambaleando e foi cahir de joelhos junto do leito onde a Pillar arquejava, levantando-se n’um esforço supremo de vontade, fincando o cotovello direito nas almofadas.

Vendo-a tão proxima de si, teve um instinctivo movimento de repulsa, mas, vencendo-se logo, poude agarrar-lhe o pulso com tudo quanto lhe restava de vida:

— «Mataste-me, lembra-te d’isto... Sei tudo!... Vi tudo!

N’um arranco tragico, gaguejava palavras entrecortadas, que nada diziam, nada do que ella queria talvez dizer. N’um esforço prodigioso de energia, empurrou a prima, sentou-se na cama, e estendeu os braços no vacuo; logo a seguir retezou-se toda, cahindo sobre a ruma d’almofadas que lhe tinham feito supportavel a cama.

O aspecto da pobresita era terrificante, olhos escancarados como se procurassem a luz que lhes fugia, a camisa desabotoada descobrindo as claviculas descarnadas, a bocca augmentada pela emaciação contrahida n’um rictus doloroso, e a pelle a que a luz da lamparina dava um tom azulado enrugada como velho pergaminho. Os braços descahiram-lhe ao longo do corpo e as pequenas mãos transparentes arrepanhavam a roupa...

A Candida levantou os olhos que baixára para fugir á obcessão d’aquelle olhar condemnatorio, e a impressão de horror foi tal que d’um salto se pôz á porta, clamando pelo Emygdio, que vira no quarto proximo.

— «Perdidos, perdidos — murmurou n’uma voz que o terror fazia trémula e soluçante como se um frio intenso a sacudisse. — Diz que a matámos, sabe tudo... vae dizer aos paes!...

O rapaz recuou tambem aterrorisado, até á porta, poz-se a considerar o pequeno volume que o corpo, que fôra uma tão harmonica conjugação de linhas graceis, reduzido á miseria d’um esqueleto sem fórma, fazia sob a cobertura.

Rodeada de luxo e mimos, cheia de esperança e de alegria, intelligente, boa, educada; um pequeno nada bastára para a matar — uma traição tão grosseira e vil, que n’esse instante duvidava até que a tivessem praticado...

Matára-a, bem certo que a matára, com o seu procedimento d’uma maldade e estupidez revoltante e com a covardia de não querer ver o mal quando talvez fosse ainda tempo de o remediar...

Tudo quanto na sua alma havia ainda de honesto estremecia de pavor e remorso; depois todos os seus sonhos de grandeza se evolavam n’uma debandada de desânimo: Tanto sacrificio pela Candida... se valia a pena! Olhou a, pareceu-lhe como nunca formosa, d’uma imponente formosura dramatica de Magdalena de Rubens, mas como nunca tambem a ideia de não a esposar se apresentou nitida no seu cerebro.

Foi ella quem primeiro readquiriu todo o seu sangue frio, abeirou-se da cama para tocar na mão que a prima conservava fóra do leito, na esperança talvez de a sentir enregelada pela morte, incapaz de se levantar para a apontar como traidora.

A moribunda, como se áquelle contacto fosse chamada á vida, abriu os olhos desmedidamente, que eram já como janellas rasgadas para o mysterio; conheceu os dois rostos lividos de medo que a fitavam, e sorriu, com um despreso tão fundo, tão vincado nas pregas d’essa ultima mascara de vida, que mais parecia petrificada.

Os dois recuaram espavoridos, apertando-se um contra o outro, procurando-se para se protegerem mutuamente d’esses olhos de moribunda que os fitavam, que os perseguiam como se quizessem levar para a terra a imagem dos assassinos, bem juntos no mesmo crime, bem apavorados e martyrisados por essa suprema vingança da morte.

Então, ao mesmo tempo que o corpo se lhe dobrava para traz e o queixo descahia já sem vida, soltou um gemido tão estortoroso, tão rouco e tão espantosamente exprobatorio, que a Candida fugiu a gritar, com a cabeça perdida, pondo em toda a casa o desespero que o respeito pela moribunda tinha contido até ahi.

O Emygdio foi cahir de joelhos junto da morta, e tentava fechar esses olhos que o endoideciam.

Mas as palpebras oppunham aos seus dedos trémulos uma resistencia fria de coisa morta. Carregava com força, brutalmente, com risco de estoirar as pupilas, mas quando levantava os dedos elles lá estavam envidraçados, n’um espanto tragico e vasio.

Era uma preoccupação independente da sua vontade, uma infantilidade quasi, parecia-lhe que se ficasse assim de olhos abertos toda a gente n’elles poderia ler o seu crime. Não ouvira tantas vezes contar, quando criança, que assim se vingavam as victimas dos seus algozes?!... E que extraordinaria vingança aquella! Conservar eternamente nas pupilas sem vida a imagem de quem lh’a tirára!...

Não era o medico, o homem de sciencia que alli estava, hesitante, enraivecido, todo em lagrimas; era um criminoso vulgar cheio de sustos e preconceitos.