Amor de Perdição/V

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V

 

Balthazar Cominho estava na sala, simulando vingativa indifferença por sua prima. As irmãs do fidalgo e a de mais parentela da casa não deixavam respirar Thereza. Moças e velhas, todas á uma, se repetiam, aconselhando-a a reconciliar-se com seu primo, e dar a seu pae a alegria que o pobre velho tanto rogava a Deus, antes de fechar os olhos. Replicava Thereza que não queria mal a seu primo, nem sequer eslava sentida d’elle; que era sua amiga, e sêl-o-ia sempre em quanto lhe elle deixasse livre o coração.

O velho esperava muito d’aquella noitada de festa. Alguns parentes, presumidos de prudentes, lhe tinham dito que seria proveitoso regalar a filha com os prazeres congruentes á sua idade, dando-lhe ensejo a que ella repartisse o espirito, concentrado n’um só ponto, por diversões em que a natural vaidade se preoccupa, e a força do amor contrariado se vai a pouco e pouco quebrantando. Aconselharam-lhe as reuniões amiudadas, já em sua casa, já na dos seus parentes, para d’este modo Thereza se mostrar a muitos, ser cortejada de todos, e ter em opinião de menos valia o unico homem com quem fallava, e a quem julgava superior a todos. O fidalgo accedeu, mas com difficuldade; porque tinha lá um systema seu de ajuizar das mulheres, e porque vivêra trinta annos de vida libertina e dispendiosa, e se estava agora saboreando na economia e na quietação. Os annos de Thereza eram pela primeira vez festejados com estrondo. A morgada viu então o que era o minuete da côrte, e certos jogos de prendas com que os intervallos n’aquelles tempos, se aligeiravam em delicias, sem fadiga do corpo, nem desagrado da moral.

Mas, de agitada que estava, Thereza não compartia do gôso dos seus hospedes. Desde que soaram as dez horas d’aquella noite, a rainha da festa parecia tão alheada das finezas com que senhoras e homens á competência a lisonjeavam, que Balthazar Coutinho deu fé do dessocêgo de sua prima, e teve a modestia de imaginar que ella se offendêra da indifferença d’elle. Generoso até ao perdão, o morgado de Castro-d’Aire, compondo o rosto com gesto grave e melancolico, dirigiu-se a Thereza, e pediu-lhe desculpa da frieza que elle disse ser como a das montanhas, que tem vulcões por dentro e neve por fóra. Thereza teve a sinceridade de responder que não tinha reparado na frieza de seu primo, e chamou para junto d’ella uma menina, para evitar que a montanha se abrisse em vulcões. Pouco depois ergueu-se, e sahiu da sala.

Eram dez horas e tres quartos. Thereza corrêra ao fundo do quintal, abrira a porta, e, como não visse alguem, tornou de corrida para a sala. No momento, porém, de subir a escada que ligava o jardim á casa, Balthazar Coutinho, que a espiava desde que ella sahiu da sala, chegou a uma das janellas sobre o jardim, bem longe de imaginar que a via. Retirou-se, e entrou com Thereza na sala, ao mesmo tempo, por diversas portas. Decorridos alguns minutos, a menina sahiu outra vez, e o primo tambem. Thereza ouviu, a distancia, o estrepito d’um cavallo, quando passou ao patamar da escada. Balthazar tambem o ouviu, e notou que sua prima, receosa de ser vista e conhecida pela alvura do vestido, levava uma capa ou chaile que a envolvia toda. O de Castro-d’Aire fez pé atraz para não ser visto. Thereza, porém, n’um relance de olhar temeroso, ainda víra um vulto retirar-se. Teve mêdo, e retrocedeu a largar a capa, e entrou na sala, offegante de cansaço e pallida de mêdo.

— Que tens, minha filha? — disse-lhe o pae — Já duas vezes sahisteda sala, e vens tão alvoroçada! Tens algum incommodo, Thereza?

— Tenho uma dôr: preciso de ir respirar de vez em quando... Nada é, meu pae.

Thadeu acreditou, e disse a toda a gente que a sua filha tinha uma dôr; só o não disse a seu sobrinho, porque o não encontrou, e soube que elle tinha sahido.

Tambem Thereza dera pela ausencia do primo, e fingiu que o ia procurar, resolução de que o velho gostou muito. Desceu ella ao jardim, correu á porta, onde a esperava Simão, abriu-a, e com a voz cortada pela anciedade, apenas disse:

— Vai-te embora: vem ámanhã ás mesmas horas... Vai, vai!

Simão, quando isto ouvia, tinha os olhos, fitos n’um vulto, que se approximava d’elle, rente com o muro do quintal. O arreeiro, que primeiro o vira, dera um signal, e entalara as rédeas do cavallo entre umas pedras, para ficar desembaraçado, se o estudante se não podésse haver com o inimigo.

Simão Botelho não se moveu do local, e Balthazar Coutinho parou na distancia de seis passos. O arreeiro tinha lentamente avançado a meio caminho do patrão, quando lhe este disse que não se aproximasse. E, caminhando para o vulto, aperrou duas pistolas, e disse-lhe:

— Isto aqui não é caminho. Que quer?

O fidalgo não respondeu.

— Parece-me que lhe abro a bôca com uma bala! — tornou Simão.

— Que lhe importa o senhor quem está?! — disse Balthazar — Se eu tiver um segredo, como o senhor parece que tem o seu n’estes sitios, sou obrigado a confessar-lh’o?!

Simão reflectiu, e replicou:

— Este muro pertence a uma casa onde mora uma só família, e uma só mulher.

— Estão n’essa casa mais de quarenta mulheres esta noite — redarguiu o primo de Thereza — Se o cavalheiro espera uma, eu posso esperar outra.

— Quem é o senhor? — tornou com arrogancia o filho do corregedor.

— Não conheço a pessoa que me interroga, nem quero conhecer. Fiquemos cada um com o nosso incognito. Boas noites.

Balthazar Coutinho retrocedeu, dizendo entre si: «que partido tem uma espada contra dois homens e duas pistolas?»

Simão Botelho cavalgou, e partiu para casa do hospitaleiro ferrador.

O sobrinho de Thadeu de Albuquerque entrou na sala, sem denunciar levemente alteração de animo. Viu que Thereza o observava de revez, e soube dissimular-se de modo que a socegou. A pobre menina, cansada de commoções, viu com prazer erguer-se para sahir a primeira familia, que deu rebate ás outras, menos ao de Castro-d’Aire e suas irmãs, que ficaram hospedados em casa de seu tio, com tenção de se demorarem oito dias em Vizeu.

Velou Thereza o restante da noite, escrevendo a Simao a detida historia dos seus terrores, e pedindo-lhe perdão de o ella não ter advertido do baile, por fcar doida de alegria com a sua vinda. No tocante ao plano de se encontrarem na seguinte noite não havia alteração na carta. Isto espantou o academico. A seu vêr, o vulto era Balthazar Coutinho, e o pae de Thereza devia ser avisado n’aquella mesma noite.

Respondeu elle contando a historia do incidente com o encapelado; receando, porém, assustar Thereza e gorar a entrevista, escreveu nova carta, em que não transluzia mêdo de ser atacado, nem sequer receio de marear-lhe a fama. Quiz parecer a Simão Botelho que este era o digno porte de um amante corajoso.

Passou o estudante aquelíe dia contando as longas horas, e meditando instantes nos funestos resultados que podia ter a sua temeraria ida, se Balthazar Coutinho era aquelle homem, que reservára para melhor relance a vingança da provocação insolente. Mas de si para si tinha elle que pensar em tal era mais covardia que prudencia.

O ferrador tinha uma filha, moça de vinte e quatro annos, e formas bonitas, e um rosto bello e triste. Notou Simão os reparos em que ella se demorava a contemplal-o, e perguntou-lhe a causa d’aquelle olhar melancolico com que ella o fitava. Marianna corou, abriu um sorriso triste, o respondeu:

— Não sei o que me adivinha o coração a respeito de v. s.^a Alguma desgraça está para lhe succeder.

— A menina não dizia isso — replicou Simão — sem saber alguma coisa da minha vida.

— Alguma coisa sei... — tornou ella.

— Ouviu contar ao arreeiro?

— Não, senhor. E’ que meu pae conhece o paesinho de v. s.^a, e tambem conhece o senhor. E ha bocadinho que eu ouvi estar meu pae a dizer a meu tio, que é o arreeiro que veio com v. s.^a, que tinha suas razões para saber que alguma desgraça lhe estava para acontecer...

— Porque?

— Pr’amor d’uma fidalga de Vizeu, que tem um primo em Castro-d’Aire.

Simão espantou-se da publicidade do seu segredo, e ia colher pormenores do que elle julgava mysterio entre duas familias, quando o mestre ferrador João da Cruz entrou no sobrado, onde o precedente dialogo se passára. A môça, como ouvisse os passos do pae, sahira lestamente por outra porta.

— Com sua licença — disse mestre João.

Dizendo, fechou por dentro ambas as portas, e sentou-se sobre uma arca.

— Ora, meu fidalgo — continuou elle, descendo as mangas arregaçadas da camiza, e apertando-as com difficuldade nos grossos pulsos, como quem sabe as exigencias da ceremonia — ha de desculpar que eu viesse assim em mangas de camiza; mas não dei com a jaqueta...

— Está muito bem, senhor João — atalhou o academico.

— Pois, senhor, eu devo um favor a seu pae, e um favor d’aquella casta. Uma vez armou-se aqui á minha porta uma desordem, a trôco d’um couce que um macho d’um almocreve deu n’uma egua, que eu estava ferrando, e em tão hoa hora foi, que lhe partiu rente o jarrête por aqui, salvo tal logar.

João da Cruz mostrou na sua perna o ponto por onde fôra fracturada a da egua, e continuou:

— Eu tinha alli á mão o martello, e não me tive que não pregasse com elle na cabeça do macho, que foi logo para a terra. O recoveiro de Carção, que era chibante, deitou as unhas a um bacamarte, que trazia entre uma carga, e desfechou comigo, sem mais tirte, nem garte. O’ alma damnada! — disse-lhe eu — pois tu vês que o teu macho me aleijou esta egua, que custou vinte peças a seu dono, e que eu tenho de pagar, e dás-me um tiro por eu te atordoar o macho!?

— E o tiro acertou-lhe? — atalhou Simão.

— Acertou; mas saberá v. s.^a que me não matou; deu-me aqui por este braço esquerdo com dois quartos. E vai eu, entro em casa, vou á cabeceira da cama, e trago uma clavina, e desfecho-lh’a na táboa do peito. O almocreve cahiu como um tôrdo, e não tugiu nem mugiu. Prenderam-me, e fui para Vizeu e já lá estava ha tres annos, no anno em que o paesinho de v. s.^a veio corregedor. Andava muita gente a trabalhar contra mim, e todos me diziam que eu ia pernear na forca. Estava lá na enxovia comigo um prêso a cumprir sentença, e disse-me elle que o senhor corregedor tinha muita devoção com as sete dôres de Nossa Senhora. Uma vez que elle ia passando com a familia para a missa, disse-lhe eu «senhor Corregedor, peço a v. s.^a pelas sete dôres de Maria Santissima, que me mande ir á sua presença, para eu explicar a minha culpa a v.s.^a». O paesinho de v. s.^a chamou o meirinho geral, e mandou tomar o meu nome. Ao outro dia fui chamado ao senhor Corregedor, e contei-lhe tudo, mostrando-lhe ainda as cicatrizes do braço. Seu pae ouviu-me, e disse-me. «Vai-te embora, que eu farei o que podér.» O caso é, meu fidalgo, que eu sahi absolvido, quando muita gente dizia que eu havia de ser inforcado á minha porta. Faz favor de me dizer se eu não devo andar com a cara onde o seu paesinho põe os pés!?

— Tem o senhor João motivo para lhe ser grato, não ha duvida nenhuma.

— Agora faz favor de ouvir o mais. Eu antes de ser ferrador, fui criado de farda em casa do fidalgo de Castro-d’Aire, que é o senhor Balthazar. Conhece-o v. s.^a? Ora, se conhece!...

— Conheço de nome.

— Foi elle que me abonou dez moedas de ouro para me estabelecer; mas paguei-lh’as, Deus louvado. Ha de haver seis mezes que elle me mandou chamar a Vizeu, e me disse que tinha trinta peças para me dar, se eu lhe fizesse um serviço. «O que v. s.^a quizer, fidalgo.» E vai elle disse-me que queria que eu tirasse a vida a um homem. Isto boliu cá por dentro comigo, porque, a fallar a verdade, um homem que mata outro n’um apêrto não é um matador de officio, acho eu, não é assim?

— De certo... — respondeu Simão, adivinhando o remate da historia — quem era o homem que elle queria morto?

— Era v. s.^a... Ó homem! — disse o ferrador com espanto — O senhor nem sequer mudou de côr!

— Eu não mudo nunca de côr, senhor João — disse o academico.

— Estou pasmado!

— E vm.^ce não acceitou a incumbencia, pelo que vejo — tornou Simão.

— Não, senhor; e então logo que elle me disse quem era, a minha vontade era pregar-lhe com a cabeça n’uma esquina.

— E elle disse-lhe a razão porque me mandava matar?

— Não, meu fidalgo; eu lhe conto. Na semana adiante, quando soube que o senhor Balthazar (raios o partam!) tinha sabido de Vizeu, fui fallar com o senhor Corregedor, e contei-lhe tudo o que se passára. O senhor corregedor esteve a scismar um pouquinho, e disse-me, e v. s.^a ha de perdoar por eu lhe dizer o que seu pae me disse tal e qual.

— Diga.

— Seu pae começou a esfregar o nariz, e disse-me: «Eu sei o que é isso. Se aquelle bréjeiro de meu filho Simão tivesse honra, não olharia para a prima d’esse assassino. Cuida o patife que eu consentia que meu filho se ligasse a uma filha de Thadeu de Albuquerque!..» Ainda disse mais coisas que me não lembram; mas eu fiquei sabendo tudo. Ora aqui tem o que houve. Agora, appareceu-me aqui v. s.^a, e a noite passada foi a Vizeu. Perdoará a minha confiança; mas v. s.^a foi fallar com a tal menina: e eu estive vai não vai a seguil-o; mas como ia meu cunhado, que é homem para tres, fiquei descançado. Elle contou-me um encontro que v. s.^a teve á porta do quintal da menina. Se lá torna, senhor Simão, vá preparado para alguma coisa de maior. Eu bem sei que v. s.^a não é medroso; mas d’uma traição ninguem se livra. Se quer que eu vá também, estou ás suas ordens; e a clavina que deu policia ao almocreve ainda alli está, e dá fogo debaixo d’agua, como diz o outro. Mas, se v. s.^a dá licença que eu lhe diga a minha opinião, o melhor é não andar n’essas encamizadas. Se quer casar com ella, vá pedir a seu pae licença, e deixe o resto cá por minha conta; ponto é que ella queira, que eu, n’um abrir e fechar d’olhos, atiro com ella para cima d’uma égua de chupêta, que alli tenho, e o pae e mais o primo ficam a vêr navios.

— Obrigado, meu amigo — disse Simão — Aproveitarei os seus bons serviços, quando me forem necessarios. Á noite hei de ir, como fui a noite passada, a Vizeu. Se houver novidade, então veremos o que se ha de fazer. Conto comsigo, e creia que tem em mim um amigo.

Mestre João da Cruz não replicou. D’alli foi examinar miudamente a fecharia da clavina, e entender-se com o cunhado sobre cautelas necessarias, em quanto descarregava a arma, e a carregava de novo com uns balotes especiaes que elle denominava «amendoas de pimpões».

N’este intervallo, Marianna, a filha do ferrador, entrou no sobrado, e disse com meiguice a Simão Botelho:

— Então sempre é certo ir?

— Vou, porque não hei de ir?

— Pois Nossa Senhora vá na sua companhia — tornou ella, sahindo logo para esconder as lagrimas.