Amor de Perdição (1862)/Conclusão
CONCLUSÃO
Ás onze horas da noite o commandante recolhêra-se n’um beliche de passageiro, e Marianna, sentada no pavimento, com o rosto sobre os joelhos, parecia sucumbir ao quebranto das trabalhosas e afflictivas horas d’aquelle dia.
Simão Botelho velava prostrado no camarote, com os braços cruzados sobre o peito, e os olhos fitos na luz que balançava, pendente d’um arame. O ouvido têl-o-ia talvez attento ao assovio da ventania: devia de soar-lhe como um ai plangente aquelle silvo agudo, voz unica no silencio da terra e do ceu.
Á meia noite estendeu Simão o braço tremulo ao masso das cartas que Thereza lhe enviára, e contemplou um pouco a que estava ao de cima, que era d’ella. Rompeu a obreia, e dispôz-se no camarote para alcançar o baço clarão da lampada.
Dizia assim a carta:
«É já o meu espirito que te falla, Simão. A tua amiga morreu. A tua pobre Thereza, á hora em que leres esta carta, se me Deus não engana, está em descanso.
Eu devia poupar-te a esta ultima tortura; não devia escrever-te; mas perdôa á tua esposa do ceu a culpa pela consolação que sinto em conversar comtigo a esta hora, hora final da noite da minha vida.
Quem te diria que eu morri, se não fosse eu mesma, Simão? D’aqui a pouco perderás da vista este mosteiro; correrás milhares de leguas, e não acharás, em parte alguma do mundo, voz humana que te diga: «A infeliz espera-te n’outro mundo, e pede ao Senhor que te resgate.»
Se te podesses illudir, meu amigo, quererias antes pensar que eu ficava com vida e com esperança de vêr-te na volta do degredo? Assim póde ser, mas ainda agora, n’este solemne momento, me domina a vontade de fazer-te sentir que eu não podia viver. Parece que a mesma infelicidade tem ás vezes vaidade de mostrar que o é, até não podêl-o ser mais! Quero que digas: Está morta, e morreu quando lhe eu tirei a ultima esperança.
Isto não é queixar-me, Simão, não é. Talvez que eu podesse alguns dias resistir á morte, se tu ficasses; mas, d’um modo ou d’outro, era inevitavel fechar os olhos quando se rompesse o ultimo fio, este ultimo que se está partindo, e eu mesma o oiço partir.
Não vão estas palavras accrescentar a tua pena. Deus me livre de ajuntar um remorso injusto á tua saudade.
Se eu podesse ainda vêr-te feliz n’este mundo; se Deus permittisse á minha alma esta visão!... Feliz, tu, meu pobre condemnado!... Sem o querer, o meu amor agora te fazia injuria, julgando-te capaz de felicidade! Tu morrerás de saudade, se o clima do desterro te não matar ainda antes de succumbires á dôr do espirito.
A vida era bella, era, Simão, se a tivessemos como tu m’a pintavas nas tuas cartas, que li ha pouco. Estou vendo a casinha que tu descrevias defronte de Coimbra, cercada de arvores, flôres e aves. A tua imaginação passeava comigo ás margens do Mondego, á hora pensativa do escurecer. Estrellava-se o ceu, e a lua abrilhantava a agua. Eu respondia com a mudez do coração ao teu silencio, e animada por teu sorriso inclinava a face ao teu seio, como se fosse ao de minha mãe. Tudo isto li nas tuas cartas; e parece que cessa o despedaçar da agonia em quanto a alma se esta recordando. N’outra carta me fallavas em triumphos e glorias e immortalidade do teu nome. Também eu ia após da tua aspiração, ou adiante d’ella, porque o maior quinhão dos teus prazeres de espirito queria eu que fosse meu. Era criança ha tres annos, Simão, e já entendia os teus anhelos de gloria, e imaginava-os realisados como obra minha, se me tu dizias, como disseste muitas vezes, que não serias nada sem o estimulo do meu amor.
Ó Simão, de que ceu tão lindo cahimos! Á hora que te escrevo estás tu para entrar na nau dos degredados, e eu na sepultura.
Que importa morrer, se não podemos jámais ter n’esta vida a nossa esperança de ha tres annos?! Poderias tu com a desesperança e com a vida, Simão? Eu não podia. Os instantes do dormir eram os escassos beneficios que Deus me concedia; a morte é mais que uma necessidade, é uma misericordia divina, uma bemaventurança para mim.
E que farias tu da vida sem a tua companheira de martyrio? Onde irás tu aviventar o coração que a desgraça te esmagou, sem poder esmagar a imagem d’esta docil mulher, que seguiu cegamente a estrella da tua malfadada sorte?
Tu nunca hás de amar, não, meu esposo? Terias pejo de ti mesmo, se uma vez visses passar rapidamente a minha imagem por diante dos teus olhos enxutos? Soffre, soffre ao coração da tua amiga estas derradeiras perguntas, a que tu responderás, no alto mar, quando esta carta lêres.
Rompe a manhã. Vou vêr a minha ultima aurora... a ultima dos meus dezoito annos!
Abençoado sejas, Simão! Deus te proteja, e te livre d’uma agonia longa. Todas as minhas angustias lhe offereço em desconto das tuas culpas. Se algumas impaciencias a justiça divina me condemna, offerece tu a Deus, meu amigo, os teus padecimentos para que eu seja perdoada.
Adeus; á luz da eternidade parece-me que já te vejo, Simão.»
Erguei-se Simão Botelho, olhou em redor de si, e fitou com spasmo Marianna, que levantava a cabeça ao menor movimento d’elle.
— Que tem, senhor Simão? — disse ella, erguendo-se.
— Estava aqui, Marianna?... não se vai deitar?!
— Não vou: o commandante deu-me licença de ficar aqui.
— Mas ha de assim passar a noite?! Rogo-lhe que vá, porque não é necessario o seu sacrificio.
— Se o não incommodo, deixe-me aqui estar, senhor Simão.
— Esteja, minha amiga, esteja... Poderei subir ao convez?
— Quer ir ao convez, senhor Botelho? — disse o commandante lançando-se do beliche.
— Queria, senhor commandante.
— Iremos juntos.
Simão ajuntou a carta de Thereza ao maço das suas, e subiu cambaleando. No convéz sentou-se n’um monte de cordame, e contemplou o mirante de Monchique, que avultava negro ao sopé da serra penhascosa em que actualmente vai a rua da Restauração.
O capitão passeava da prôa á ré; mas com o ouvido fito aos movimentos do degredado. Receára elle o proposito do suicidio, porque Marianna lhe incutira semelhante suspeita. Queria o maritimo fallar-lhe palavras consoladoras, mas pensava comsigo: «O que ha de dizer-se a um homem que soffre assim?» E parava junto d’elle algumas vezes, como para desviar-lhe o espirito d’aquelle mirante.
— Eu não me suicido! — exclamou abruptamente Simão Botelho — Se a sua generosidade, senhor capitão, se interessa em que eu viva, póde dormir descansado a sua noite, que eu não me suicido.
— Mas mereço-lhe eu a condescendencia de descer comigo á camara?
— Irei; mas eu lá soffro mais, senhor.
Não replicou o commandante, e continuou a passear no convez, apesar das rajadas de vento.
Marianna estava agachada, entre os pacotes da carga, a pouca distancia de Simão. O commandante viu-a, fallou-lhe, e retirou-se.
Ás tres horas da manhã Simão Botelho segurou entre as mãos a testa que se lhe abria abrazada pela febre.
Não pôde ter-se sentado, e deixou cahir meio corpo. A cabeça, ao declinar, pousou no seio de Marianna.
— O anjo da compaixão sempre comigo! — murmurou elle — Thereza foi muito mais desgraçada...
— Quer descer ao camarote? — disse ella.
— Não poderei... Ampare-me, minha irmã.
Deu alguns passos para o alçapão, e olhou ainda para o mirante. Desceu a ingreme escada, apegando-se ás cordas. Lançou-se sobre o colchão, e pediu agua, que bebeu insaciavelmente. Seguiu-se a febre, o estorcimento, e as ancias, com intervallos de delirio.
De manhã veio a bordo um facultativo, por convite do capitão. Examinando o condemnado, disse que era «maligna» a doença, e que bem podia ser que elle achasse a sepultura no caminho da India.
Marianna ouviu o prognostico, e não chorou.
Ás onze horas sahiu barra fóra a nau. Ás ancias da doença accresceram as do enjoo. A pedido do commandante, Simão bebia remedios, que bolsava logo, revoltos pelas contracções do vomito.
Ao segundo dia de viagem Marianna disse a Simão:
— Se o meu irmão morrer, que hei de eu fazer áquellas cartas que vão na caixa?
Pasmosa serenidade a d’esta pergunta!
— Se eu morrer no mar — disse elle — Marianna atire ao mar todos os meus papeis; todos; e estas cartas que estão debaixo do meu travesseiro tambem.
Passada uma ancia, que lhe embargara a voz, Simão continuou:
— Se eu morrer, que tenciona fazer, Marianna!
— Morrerei, senhor Simão.
— Morrerá?!.. Tanta gente desgraçada que eu fiz!...
A febre augmentava. Os symptomas da morte eram visiveis aos olhos do capitão, que tinha sobeja experiencia de vêr morrerem centenares de condemnados, feridos da febre no mar, e desprovidos de algum medicamento.
Ao quarto dia, quando a nau se movia ronceira defronte de Cascaes, sobreveio tormenta subita. O navio fez-se ao largo muitas milhas, e perdido o rumo de Lisboa, navegou desnorteado para o sul. Ao sexto dia de navegação incerta, por entre espêssas brumas, partiu-se o leme defronte de Gibraltar. E, em seguida ao desastre, aplacaram as refegas, desencapellaram-se as ondas, e nasceu, com a aurora do dia seguinte, um formoso dia de primavera. Era o dia 27 de Março, o nono da enfermidade de Simão Botelho.
Marianna tinha envilhecido. O commandante, encarando n’ella, exclamou:
— Parece que volta da India com os dez annos de trabalhos já passados!...
— Já acabados... de certo... — disse ella.
Ao anoitecer d’esse dia o condemnado delirou pela ultima vez, e dizia assim no seu delirio:
«A casinha, defronte de Coimbra, cercada de arvores, flôres e aves. Passeavas comigo á margem do Mondego, á hora pensativa do escurecer. Estrellava-se o ceu, e a lua abrilhantava a agua. Eu respondia com a mudez do coração ao teu silencio, e, animada por teu sorriso, inclinava a face ao teu seio como se fosse o de minha mãe... De que ceu tão lindo cahimos... A tua amiga morreu... A tua pobre Thereza.............................
E que farias tu da vida sem a tua companheira de martyrio?... Onde irás tu aviventar o coração que a desgraça te esmagou... Rompe a manhã... Vou vêr a minha ultima aurora... a ultima dos meus dezoitos annos. Offerece a Deus os teus padecimentos para que eu seja perdoada... Marianna...»
Marianna collou os ouvidos aos labios roixos do moribundo, quando cuidou ouvir o seu nome.
«Tu virás ter comnosco; ser-te-hemos irmãos no ceu... O mais puro anjo serás tu... se és d’este mundo, irmã; se és d’este mundo, Marianna...»
A transição do delirio para a lethargia completa era o annuncio infallivel do trespasse.
Ao romper da manhã apagára-se a lampada. Marianna sahira a pedir luz, e ouvira um gemido estorturoso. Voltando ás escuras, com os braços estendidos para tactear a face do agonisante, encontrou a mão convulsa, que lhe apertou uma das suas, e relaxou de subito a pressão dos dedos.
Entrou o commandante com uma lampada, e approximoulh’a da respiração, que não embaciou levemente o vidro.
— Está morto!... — disse elle.
Marianna curvou-se sobre o cadaver, e beijou-lhe a face. Era o primeiro beijo. Ajoelhou depois ao pé do camarote com as mãos erguidas, e não orava nem chorava.
Algumas horas depois, o commandante disse a Marianna:
— Agora é tempo de dar sepultura ao nosso venturoso amigo ... É ventura morrer quando se vem a este mundo com tal estrella... Passe a senhora Marianna ali para a camara, que vai ser levado d’aqui o defuncto.
Marianna tirou o masso das cartas debaixo do travesseiro, e foi a uma caixa buscar os papeis de Simão. Atou o rolo no avental, que elle tinha d’aquellas lagrimas d’ella choradas no dia da sua demencia, e cingiu o embrulho á cintura.
Foi o cadaver envolto n’um lençol, e transportado ao convez.
Marianna seguiu-o.
Do porão da nau foi trazida uma pedra, que um marujo lhe atou ás pernas com um pedaço de cabo. O commandante contemplava a scena triste com os olhos humidos, e os soldados, que guarneciam a nau, tão funeral respeito os acurvava, que insensivelmente se descobriram.
Marianna estava, no entanto, encostada ao flanco da nau, e parecia estupidamente encarar aquelles empuxões, que o marujo dava ao cadaver para segurar a pedra na cintura.
Dois homens ergueram o cadaver ao alto sobre a amurada. Deram-lhe o balanço para o arremessarem longe. E antes que o baque do morto se fizesse ouvir na agua, todos viram, e ninguém já pôde segurar Marianna, que se atirára ao mar.
Á voz do commandante desamarraram rapidamente o bote, e saltaram homens para salvar Marianna.
Salval-a!...
Viram-na, um momento, bracejar, não para resistir á morte, mas para abraçar-se ao cadáver de Simão, que uma onda lhe atirou aos braços. O commandante olhou para o sitio d’onde Marianna se atirára, e viu, enleado no cordame, o avental, e á flor d’agua um rolo de papeis que os marujos recolheram na lancha. Eram, como sabem, a correspondencia de Thereza e Simão.
Da familia de Simão Botelho vive ainda, em Villa Real de Traz-os-Montes, a senhora D. Rita Emilia da Veiga Castello Branco, a irmã predilecta d’elle. A ultima pessoa fallecida, ha vinte e seis annos, foi Manoel Botelho, pae do author d’este livro.