Amor de Perdição (1862)/IX
IX.
Duas horas se detivera João da Cruz fóra de casa. Chegou quando a curiosidade do estudante era já soffrimento.
— Estará seu pae prêso?! — dissera elle a Marianna.
— Não m’o diz o coração, e o meu coração nunca me engana — respondêra ella.
E Simão replicára:
— E que lhe diz o coração a meu respeito, Marianna? Os meus trabalhos ficarão aqui?
— Vou-lhe dizer a verdade, senhor Simão... mas não digo...
— Diga, que lh’o peço, porque tenho fé no bom anjo que falla em sua alma. Diga...
— Pois sim... O meu coração diz-me que os seus trabalhos ainda estão no comêço...
Simão ouviu-a attentamente, e não respondeu. Assombrou-lhe o animo esta ideia torva, e affrontosa á singela rapariga: — «Pensará ella em me desviar de Thereza para se fazer amar?»
Pensava assim, quando chegou o ferrador.
— Aqui estou de volta — disse elle com semblante festivo — Sua mãe mandou-me chamar...
— Já sei... E como soube ella que eu estava aqui?
— Ella sabia que o fidalgo estivera cá; mas cuidava que v. s.^a já tinha ido para Coimbra. Quem lh’o disse não sei, nem perguntei; porque a uma pessoa de respeito não se fazem perguntas, dizia meu pae. Dizia ella que sabia o fim a que o senhor viera esconder-se aqui. Ralhou alguma coisa; mas eu, cá como pude, accommodei-a, e não ha novidade. Perguntou-me o que estava o menino fazendo aqui depois que a fidalguinha fôra para o convento. Disse-lhe que v. s.^a estava adoentado d’uma quéda que dera do cavallo abaixo. Tornou ella a perguntar se o senhor tinha dinheiro; e eu disse que não sabia. E vai ella foi dentro, e voltou d’ahi a pouco com este embrulho, para eu lhe entregar. Ahi o tem tal e qual; não sei quanto é.
— E não me escreveu?
— Disse que não podia ir á escrivaninha, porque estava lá o senhor corregedor — respondeu com firmeza mestre João — e tambem me recommendou que não lhe escrevesse v. s.^a, senão de Coimbra, porque, se seu pae soubesse que o menino cá estava, ia tudo razo lá em casa. Ora ahi está.
— E não lhe fallou nos criados de Balthazar?
— Nem um pio!.. Lá na cidade ninguem já fallava n’isso hoje.
— E que lhe disse da senhora D. Thereza?
— Nada, senão que ella fôra para o convento. Agora, deixe-me ir amantar a egua, que está a escorrer em fio. Ó rapariga, traz-me cá a manta.
Em quanto Simão contava onze moedas menos um quartinho, maravilhado da estranha liberalidade, Marianna, abraçando o pae no repartimento visinho da casa, exclamava:
— Arranjou muito bem a mentira!...
— Ó rapariga, quem mentiu foste tu! Aquillo lá o arranjaste tu com essa tua cabecinha! Mas a coisa sahiu ao pintar, heim? Elle comeu-a que nem confeitos! Anda lá, que ficaste sem os bezerros; mas lá virá tempo em que elle te dê bois a troco dos bezerros.
— Eu não fiz isto por interesse, meu pae... — atalhou ella resentida.
— Olha o milagre! isso sei eu; mas, como diz lá o dictado, quem semeia colhe.
Marianna quedou pensativa, e dizendo entre si: — Ainda bem, que elle não póde pensar de mim o que meu pae pensa. Deus sabe que não tenho esperanças nenhumas interesseiras no que fiz.
Simão chamou o ferrador, e disse-lhe:
— Meu caro João, se eu não tivesse dinheiro, aceitava sem repugnancia os seus favores, e creio que vocemecê m’os faria sem esperança de ganhar com elles; mas como recebi esta quantia, ha de consentir que eu lhe dê parte d’ella para os meus alimentos. Motivos de gratidão a dividas, que se não pagam, ainda me ficam muitos para nunca me esquecer de si, e da sua boa filha. Tome este dinheiro.
— As contas fazem-se no fim — respondeu o ferrador, retirando a mão — e ninguem nos ha de ouvir, se Deus quizer. Precisando eu de dinheiro cá venho. Por ora, ainda está a capoeira cheia de gallinhas, e o pão coze-se todas as semanas.
— Mas aceite — instou Simão — e dê-lhe a applicação que quizer.
— Em minha casa ninguem dá leis senão eu — replicou o mestre João, com simulado enfadamento — Guarde lá o seu dinheiro, fidalgo, e não fallemos mais n’isso, se quer que o negocio vá direito até ao fim. E victo-serio!
Nos cinco subsequentes dias recebeu Simão regularmente cartas de Thereza, umas resignadas e confortadoras, outras escriptas na violencia exasperada da saudade. Em uma dizia:
«Meu pae deve saber que estás ahi, e em quanto ahi estiveres, de certo me não tira do convento. Seria bom que fosses para Coimbra, e deixassemos esquecer a meu pae os ultimos acontecimentos. Senão, meu querido esposo, nem elle me dá liberdade, nem eu sei como hei de fugir d’este inferno. Não fazes ideia do que é um convento! Se eu podesse fazer do meu coração sacrificio a Deus, teria de procurar uma atmosphera menos viciosa que esta. Creio que em toda a parte se póde orar e ser virtuosa, menos n’este convento.»
N’outra carta exprimia-se assim: «Não me desampares, Simão, não vás para Coimbra. Eu receio que meu pae me queira mudar d’este convento para outro mais rigoroso. Uma freira me disse que eu não ficava aqui; outra positivamente me affirmou que o pae diligenceia a minha ida para um convento do Porto. Sobre tudo, o que me aterra, mas não me dobra, é saber eu que o intento do pae é fazer-me professar. Por mais que imagine violencias e tyrannias, nenhuma vejo capaz de me arrancar os votos. Eu não posso professar sem ser noviça um anno, e ir a perguntas tres vezes; hei de responder sempre que não. Se eu podesse fugir d’aqui!... Hontem fui á cêrca, e vi lá uma porta de carro que dá para o caminho. Soube que algumas vezes aquella porta se abre para entrarem carros de lenha; mas infelizmente não se torna a abrir até ao principio do inverno. Se não poder antes, meu Simão, fugirei n’esse tempo.»
Tiveram entretanto bom e prompto exito as diligencias de Thadeu de Albuquerque. A prelada de Monchique, religiosa de summas virtudes, cuidando que a filha de seu primo muito de sua devoção e amor a Deus, se recolhia ao mosteiro, preparou-lhe casa e congratulou-se com a sobrinha de tão piedosa resolução. A carta congratulatoria não a recebeu Thereza, porque viera á mão de seu pae. Continha ella reflexões tendentes a desvanecêl-a do proposito, se algum desgosto passageiro a impellia á imprudencia de procurar um refugio onde as paixões se exacerbavam mais.
Tomadas todas as precauções, Thadeu de Albuquerque fez avisar sua filha de que sua tia de Monchique a queria ter em sua companhia algum tempo, e que a partida teria logar na madrugada do seguinte dia.
Thereza, quando recebeu a surprendente nova, já tinha enviado a carta d’aquelle dia a Simão. Em sua afflictiva perplexidade, resolveu fazer-se doente, e tão febril estava das commoções, que dispensava o artificio. O velho não queria transigir com a doença; mas o medico do mosteiro reagiu contra a deshumanidade do pae e da prioreza interessada na violencia. Quiz Thereza n’essa noite escrever a Simão; mas a criada da prelada, obedecendo ás suspeitas da ama, não desamparou a cabeceira do leito da enferma. Era causa a esta espionagem ter dito a escrivã, n’nma hora de má digestão d’aquelle vinho estomacal, que Thereza passava as noites em oração mental, e tinha correspondencia com um anjo do céu por intervenção d’uma mendiga. Algumas religiosas tinham visto a mendiga no páteo do convento esperando a esmola de Thereza; mas cuidaram que era aquella pobre uma devoção da menina. As palavras ironicas da escrivã foram commentadas, e a mendiga recebeu ordem de sahir da portaria. Thereza, n’um impeto de angustia, quando tal soube, correu a uma janella, e chamou a pobre, que se retirava assustada, e lançou-lhe ao pateo um bilhete com estas palavras: «É impossivel a nossa correspondencia. Vou ser tirada d’aqui para outro convento. Espera em Coimbra noticias minhas.» Isto foi rapidamente ao conhecimento da prioreza, e logo, ás ordens d’ella, partiu o hortelão no encalço da pobre. O hortelão seguiu-a até fóra de portas, espancou-a, tirou-lhe o bilhete, e foi do convento apresental-o a Thadeu de Albuquerque. A mendiga não retrocedeu; caminhou a casa do ferrador, e contou a Simão o acontecido.
Simão lançou-se fóra do leito, e chamou João da Cruz. N’aquelle aperto queria ouvir uma voz, queria poder chamar amigo a um homem, que lhe estendesse mão capaz de apertar o cabo d’um punhal. O ferrador ouviu a historia, e deu o seu voto: «esperar até vêr». Simão repelliu a prudencial frieza do confidente, e disse que partia para Vizeu immediatamente.
Marianna estava alli; ouvira a confidencia, e achára acertada a opinião de seu pae. Vendo, porém, a impaciencia do hospede, pediu licença para fallar onde não era chamada, e disse:
— Se o senhor Simão quer, eu vou á cidade, e procuro no convento a Brito, que é uma rapariga minha conhecida, moça d’uma freira, e dou-lhe uma carta sua para entregar á fidalga.
— Isso é possivel, Marianna?! — exclamou Simão, a ponto de abraçar a moça.
— Pois então! — disse o ferrador — o que póde fazer-se, faz-se. Vai-te vestir, rapariga, que eu vou botar o albardão á égua.
Simão sentou-se a escrever. Tão embaralhadas lhe acudiam as ideias, que não atinava a formar o designio mais proveitoso á situação de ambos. Ao cabo de longa vacillação, disse a Thereza que fugisse á hora do dia, quando a porta estivesse aberta, ou violentasse a porteira a abrir-lh’a. Dizia-lhe que marcasse ella a hora do dia seguinte em que elle a devia esperar, com cavalgaduras para a fuga. Em recurso extremo, promettia assaltar com homens armados o mosteiro, ou incendial-o para se abrirem as portas. Este programma era o mais parecido com o espirito do academico: em vivo fogo estava aquella pobre cabeça! Fechada a carta, começou a passear em torcicolos, como se obedecesse a desencontrados impulsos. Encravava as unhas na cabeça, e arrancava os cabellos n’ellas. Marrava como cego contra as paredes, e sentava-se um momento para erguer-se de mais furioso impeto. Machinalmente aferrava das pistolas, e sacudia os braços vertiginosos. Abria a carta para relêl-a, e estava a ponto de rasgal-a, cuidando que iria tarde, ou não lhe chegaria ás mãos. N’este conflicto de contrarios projectos, entrou Marianna, e muito allucinado devia de estar Simão para lhe não dar fé das lagrimas.
O que tu soffrias, nobre coração de mulher pura! Se o que fazes por esse moço é gratidão ao homem que salvou a vida de teu pae, que rara virtude a tua! Se o amas, se por lhe dar allivio ás dôres, tu mesma lhe desempeces o caminho por onde te elle ha de fugir para sempre, que nome darei á tua virtude! que anjo te fadou o coração para a santidade d’um obscuro martyrio!
— Estou prompta, disse Marianna.
— Aqui tem a carta, minha boa amiga. Faça muito por não vir sem resposta — disse Simão, dando-lhe com a carta um embrulho de dinheiro.
— E o dinheiro também é para a senhora? — disse ella.
— Não, é para si, Marianna: compre um annel.
Marianna tomou a carta, e voltou rapidamente as costas, para que Simão lhe não visse o gesto de despeito, se não desprêso.
O academico não ousou insistir, vendo-a apressar-se na descida para o quinteiro, onde o ferrador enfreava a egua.
— Não lhe chegues muito com a vara — disse João da Cruz a Marianna, que, d’um pulo, se assentou no albardão, coberto d’uma colxa escarlate. — Tu vaes amarella como cidra, moça! — exclamou elle reparando na pallidez da moça — Tu que tens?
— Nada; que hei de eu ter?! dê-me cá a vara, meu pae.
A egua partiu a galope, e o ferrador, no meio da estrada, a rever-se na filha e na egua, dizia em soliloquio, que Simão ouvira:
— Vales tu mais, rapariga, que quantas fidalgas tem Vizeu! Pela mais pintada não dava eu a minha egua; e, se cá viesse o Mira-Molim de Marrocos pedir-me a filha, os diabos me levem se eu lh’a dava! Isto é que são mulheres, e o mais é uma historia!