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Amor de Perdição (1862)/XIII

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III.

 

E Thereza?

Perguntam a tempo, minhas senhoras, e não me hei de queixar se me arguirem de a ter esquecido e sacrificado a incidentes de menos porte.

Esquecido, não. Muito ha que me reluz e voeja, alada como o ideal cherubim dos santos, n’esta minha quasi escuridade[1], aquella ave do ceu, como a pedir-me que lhe cubra de flores o rastilho de sangue que ella deixou na terra. Mais lagrimas que sangue deixaste, ó filha da amargura! Flores são tuas lagrimas, e do ceu me diz se os perfumes d’ellas não valem mais aos pés do teu Deus que as preces de muita devota, que morre canonisada, e cujo cheiro de santidade não passa do olfacto hypocrita ou estupido dos mortaes.

Thereza Clementina bem a viram transportada da escadaria do templo, onde cabira, á liteira que a conduziu ao Porto. Recobrando o alento, viu defronte de si uma criada, que lhe dizia banaes e frias expressões de allivio. Se alguma criada de seu pae lhe era amiga, de certo não aquella, acintemente escolhida pelo velho. Nem ao menos a confiança para a expansão em gritos restava á affligida menina.

Perguntava-se a si mesma Thereza se aquella horrorosa situação, seria um sonho! Sentia-se de novo fallecer de forças, e voltava á vida, sacudida pela consciencia da sua desgraça. Condoeu-se a criada, e incitou-a a respirar, chorando com ella, e dizendo-lhe:

— Póde fallar, menina, que ninguem nos segue.

— Ninguem?!

— As suas primas ficaram: apenas vem os dois lacaios.

— E meu pae não?

— Não, fidalga... Póde chorar e fallar á sua vontade.

— E eu vou para o Porto?

— Vamos, sim, minha senhora.

— E tu viste tudo como foi, Constança?

— Desgraçadamente vi....

— Como foi? conta-me tudo.

— A menina bem sabe que seu primo morreu.

— Morreu?! Vi-o cahir quasi aos meus pés; mas....

— Morreu logo, e depois quizeram os criados, á voz de seu pae, prender o senhor Simão; mas elle com outra pistola....

— E fugiu? — atalhou Thereza com vehemencia e alegria.

— A final foi elle que se deu á prisão.

— Está prêso?!

E suffocada pelos soluços, com o rosto no lenço, não ouvia as palavras confortadoras de Constança.

Serenado algum tanto o violento accesso de gemidos e choro, Thereza suggeriu á criada o louco plano de a deixar fugir da primeira estalagem onde pousassem, para ella ir a Vizeu dar o ultimo adeus a Simão.

A criada a custo a despersuadiu do intento, pintando-lhe os novos perigos que ia accumular á desgraça do seu amante, e animando-a com a esperança de livrar-se Simão do crime, com a influencia do pae, apesar da perseguição do fidalgo.

Calaram lentamente estas razões no espirito de Thereza, apesar dos estorvos do coração.

Chorosa, doente, a revezes desfallecida, foi Thereza vencendo a distancia que a separava de Monchique, onde chegou ao quinto dia de jornada.

A prelada já estava sabedora dos successos, por emissarios que se adiantaram ao moroso caminhar da liteira.

Foi Thereza recebida com brandura por sua tia, posto que as recommendações de Thadeu de Albuquerque eram clausura rigorosa, e absoluta privação de meios de escrever a quem quer que fosse.

Ouviu a prelada da bôca de sua sobrinha a fiel historia dos acontecimentos, e mostrou-lhe uma a uma as cartas de Simão Botelho. Choraram abraçadas; mas a prelada, enxugadas as lagrimas de mulher ao fogo da austeridade religiosa, fallou e aconselhou como freira, e freira que ciliciava o corpo com as rozetas, e o coração com as privações tormentosas de quarenta annos.

Thereza carecia de forças para a rebellião. Deixou a sua tia a santa vaidade de exorcismar o demonio das paixões, e deu um sorriso ao anjo da morte, que, de permeio ao seu amor e á esperança, lhe interpunha a aza negra, que tão de luz refulgente rebrilha ás vezes em corações infelizes.

Quiz Thereza escrever.

— A quem, minha filha? — perguntou a prelada.

Não respondeu Thereza.

— Escrever-lhe para que? — tornou a religiosa — Cuidas tu, menina, que as tuas cartas lhe chegam á mão? Que vaes tu fazer senão redobrar a ira de teu pae contra ti e contra o infeliz prêso! Se o amas, como creio, apesar de tudo, cuida em salval-o. Se não ouves a minha razão, finge-te esquecida. Se pódes violentar a tua dôr, dissimula, faz muito por que a teu pae chegue a noticia de que lhe serás obediente em tudo, se elle tiver piedade do teu pobre amigo.

Não recalcitrou Thereza. Deu outro sorriso ao anjo da morte, e pediu-lhe que a envolvesse a ella, e ao seu amor, e á sua esperança, de todo, na negrura de suas azas.

De mez a mez recebia a abbadessa de Monchique uma carta de seu primo. Eram estas cartas um respiradouro da vingança. Em todas dizia o velho que o assassino iria ao patibulo irremediavelmente. A sobrinha não via as cartas; mas reparava nas lagrimas da compassiva freira.

A debil compleição de Thereza deprecia acceleradamente. A sciencia condemnou-a a morte breve. D’isto foi informado Thadeu de Albuquerque, e respondeu: «Que a não desejava morta; mas, se Deus a levasse, morreria mais tranquillo, e com a sua honra sem mancha.» Era assim immaculada a honra do fidalgo de Vizeu!... a HONRA, que dizem proceder em linha recta da virtude de Socrates, da virtude de Jesus Christo, e da virtude de milhões de martyres, que se deram ás garras das feras, quando predicavam a caridade e o perdão aos homens!

Quantas caricias inventou a sympathia e a piedade, todos, por ministerio das religiosas exemplares de Monchique, aporfiaram em refrigerar o ardor, que consumia rapidamente a reclusa. Inutil tudo. Thereza reconhecia com lagrimas a compaixão, e ao mesmo tempo alegrava-se, tirando das caricias a certeza de que os médicos a julgavam incuravel.

Alguma freira inadvertida lhe disse um dia que uma sua amiga do convento dos Remedios de Lamego lhe dissera que Simão tinha sido condemnado á morte.

Thereza estremeceu e murmurou, sem forças já para a exclamação:

— E eu vivo ainda!

Depois orou, e chorou; mas os habitos da sua vida em paroxismos continuaram inalteraveis.

Perguntou á senhora, que lhe dera a noticia, se a sua amiga do convento dos Remedios lhe faria a esmola de fazer chegar ás mãos de Simão uma carta. Promptificou-se a freira, depois que ouviu o parecer da prelada. Entendeu esta religiosa que o derradeiro colloquio entre dous moribundos não podia damnifical-os na vida temporal nem na vida eterna.

Esta é a carta, que leu Simão, quinze dias depois do seu julgamento:

«Simão, meu esposo. Sei tudo... Está comnosco a morte. Olha que te escrevo sem lagrimas. A minha agonia começou ha sete mezes. Deus é bom, que me poupou ao crime. Ouvi a noticia da tua proxima morte, e então soube por que estou morrendo hora a hora. Aqui está o nosso fim, Simão!.. Olha as nossas esperanças! Quando tu me dizias os teus sonhos de felicidade, e eu te dizia os meus!... Que mal fariam a Deus os nossos innocentes desejos!... Porque não merecemos nós o que tanta gente tem!... Assim acabaria tudo, Simão? Não posso crêl-o! A eternidade apresentase-me tenebrosa, porque a esperança era a luz, que me guiava de ti para a fé. Mas não póde findar assim o nosso destino. Vê se podes segurar o ultimo fio da tua vida a uma esperança qualquer. Ver-nos-hemos n’um outro mundo, Simão? Terei eu merecido a Deus contemplar-te? Eu rezo, supplíco; mas desfalleço na fé, quando me lembram as ultimas agonias do teu martyrio. As minhas são suaves, quasi que as não sinto. Não deve custar a morte a quem tiver o coração tranquillo. O peor é a saudade, saudade d’aquellas esperanças que tu achavas no meu coração adivinhando as tuas. Não importa, se nada ha além d’esta vida. Ao menos, morrer é esquecer. Se tu podesses viver agora, de que te serviria? Eu tambem estou condemnada, e sem remedio. Segue-me, Simão! não tenhas saudades da vida, não tenhas, ainda que a razão te diga que podias ser feliz se me não tivesses encontrado no caminho por onde te levei á morte... E que morte, meu Deus!... Aceita-a! não te arrependas. Se houve crime, a justiça de Deus te perdoará pelas angustias que tens de soffrer no carcere... e nos ultimos dias, e na presença da...»

Thereza ia escrever uma palavra, quando a penna lhe cahiu da mão, e uma convulsão lhe vibrou todo o corpo por largo espaço. Não escreveu a palavra; mas a ideia de forca parou-lhe a vida. A freira entrou na cella a pedir-lhe a carta, porque o correio ia partir. Thereza, indicando-lh’a, disse:

— Leia, se quizer, e feche-a, por caridade, que eu não posso.

Nos tres dias seguintes Thereza não sahiu do leito. A cada hora, as religiosas assistentes esperavam que ella fechasse os olhos.

— Custa muito morrer! — dizia algumas vezes a enferma.

Não faltavam piedosos discursos a divertirem-lhe o espírito do mundo.

Thereza ouvia-os, e dizia com ancia:

— Mas a esperança do ceu, sem elle!... que é o ceu, meu Deus?

E o apostolico capellão do mosteiro não sabia dizer se os bens do ceu tinham commum com os do mundo as delicias que falsamente na terra se chamam assim.

Aquellas subtilezas espirituaes, que vem com algumas especies de tisica, assim á maneira dos ultimos lampejos da vital flamma, tinha-as a enferma, quando acontecia fallarem-lhe as religiosas na bemaventurança. Ás vezes, se o capellão, convidado pela lucidez de Thereza, entrava os dominios da philosophia, tratando como problema a immortalidade da alma, a inculta senhora argumentava em breves termos, mas com razões tão claras a favor da união eterna das almas, já d’este mundo esposas, que o padre ficava em duvida se seria heretico contestar uma clausula não inscripta em algum dos quatro evangelhos.

Maravilhava-se já a medicina da pertinacia d’aquella vida. Tinha a abbadessa escripto a seu primo Thadeu, apressurando-o a ir vêr o anjo ao despedir-se da terra. O velho, tocado de piedade, e por ventura de amor paternal, deliberou tirar do convento a filha na esperança de salval-a ainda. Uma forte razão accrescia áquella: era a mudança do condemnado para os carceres do Porto. Deu-se pressa, pois, o fidalgo, e chegou ao Porto a tempo que a religiosa, amiga da outra de Lamego, entregava á doente esta carta de Simão:

«Não me fujas ainda, Thereza. Já não vejo a forca, nem a morte. Meu pae protege-me, e a salvação é possivel. Prende ao coração os ultimos fios da tua vida. Prolonga a tua agonia, em quanto eu te disser que espero. Ámanhã vou para as cadêas do Porto, e hei de ali esperar a absolvição ou commutação da sentença. A vida é tudo. Posso amar-te no degredo. Em toda a parte ha ceu, e flores, e Deus. Se viveres, um dia serás livre; a pedra do sepulcro é que nunca se levanta. Vive, Thereza, vive! Ha dias lembrava-me que as tuas lagrimas lavariam da minha face as nódoas do sangue do enforcado. Esse pesadêlo atroz passou. Agora, n’este inferno respira-se; o esparto do carrasco já me não aperta em sonhos a garganta. Já fito os olhos no ceu, e reconheço a providencia dos infelizes. Hontem vi as nossas estrellas, aquellas dos nossos segredos nas noites da ausencia. Volvi á vida, e tenho o coração cheio de esperanças. Não morras, filha da minha alma!»

Ia alta a noite, quando Thereza, sentada no seu leito, leu esta carta. Chamou a criada para ajudal-a a vestir. Mandou abrir a janella do seu quarto, e encostou a face ás rexas de ferro. Esta janella olhava para o mar; e o mar era n’essa noite uma immensa flamma de prata; e a lua esplendidissima eclipsava o fulgor d’umas estrellas, que Thereza procurava no ceu.

— São aquellas! — exclamou ella.

— Aquellas quê, minha senhora? — disse Constança.

— As minhas estrellas!... pallidas como eu... A vida! ai! a vida! — clamou ella, erguendo-se, e passando pela fronte as mãos cadavericas — Quero viver! Deixai-me viver, ó Senhor!

— Ha de viver, menina! ha de viver, que Deus é piedoso! — disse a criada — mas não tome o ar da noite. Este nevoeiro do rio faz-lhe grande mal.

— Deixa-me, deixa-me, que tudo isto é viver... Não vejo o ceu ha tanto tempo! Sinto-me resuscitar aqui, Constança! Porque não tenho eu respirado todas as noites este ar?! Eu poderei viver alguns annos? poderei, minha Constança? Pede tu, pede muito á minha Virgem Santissima! Vamos orar ambas!... Vamos, que o Simão não morre... O meu Simão vive e quer que eu viva. Está no Porto amanhã; e talvez já esteja...

— Quem, minha senhora?!

— Simão, o Simão vem para o Porto.

A criada julgou que sua ama delirava; mas não a contrariou.

— Teve carta d’elle a fidalga? — tornou ella, cuidando que assim lhe alimentava aquelle instante de febril contentamento.

— Tive... queres ouvir?... eu leio...

E leu a carta, com grande pasmo de Constança, que se convenceu.

Agora vamos rezar, sim?... Tu não és inimiga d’elle, não? Olha, Constança, se eu casar com elle, tu vaes para a nossa companhia. Verás como és feliz. Queres ir, não queres?

— Sim, minha senhora, vou; mas elle conseguirá livrar-se da morte?

— Livra; tu verás que livra; o pae d’elle ha de livral-o... e a Virgem Santissima é que nos ha de unir. Mas se eu morro... se eu morro, meu Deus!

E com as mãos convuísamente enlaçadas sobre o seio, Thereza archejava em pranto.

— Se eu não tenho já forças!... todos dizem que eu morro, e o medico já nem me receita!... Então melhor me fôra ter acabado antes d’esta hora! Morrer com esperanças, ó mãe de Deus!...

E ajoelhou ante o retabulo devoto, que trouxera do seu quarto de Vizeu, ao qual sua mãe e avó já tinham orado, e em cujo rosto compassivo os olhos das duas senhoras moribundas tinham fixado os seus ultimos raios de luz.

  1. Este romance foi escripto n’um dos cubiculos-carceres da Relação do Porto, a uma luz coada por entre ferros, e abafada pelas sombras das abobadas. Anno da Graça de 1861.