Amor de Perdição (1862)/XIX
IX.
A verdade é algumas vezes o escolho de um romance.
Na vida real, recebemol-a como ella sáe dos encontrados acasos, ou da logica implacavel das coisas; mas, na novella, custa-nos a soffrer que o author, se inventa, não invente melhor; e, se copía, não minta por amor da arte.
Um romance, que estriba na verdade o seu merecimento, é frio, é impertinente, é uma coisa que não sacode os nervos, nem tira a gente, sequer uma temporada, em quanto elle nos lembra, d’este jogo de nora, cujos alcatruzes somos, uns a subir, outros a descer, movidos pela manivella do egoismo.
A verdade! se ella é feia, para que offerecêl-a em paineis ao publico!?
A verdade do coração humano! Se o coração humano tem filamentos de ferro, que o prendem ao barro d’onde sahiu, ou pezam n’elle e o submergem no charco da culpa primitiva, para que é emergil-o, retratal-o, e dal-o á venda!?
Os reparos são de quem tem o juizo no seu logar; mas eu que perdi o meu a estudar a verdade, já agora a desforra que tenho é pintal-a, como ella é, feia e repugnante.
A desgraça afervora ou quebranta o amor?
Isso é que eu submetto á decisão do leitor intelligente. Factos e não theses é que eu trago para aqui. O pintor retrata uns olhos, e não explica as funcções opticas do apparelho visual.
Ao cabo de dezenove mezes de carcere, Simão Botelho almejava um raio de sol, uma lufada de ar não coada por ferros, o pavimento do ceu, que o da abobada do seu cubiculo pesava-lhe sobre o peito.
Ancia de viver era a sua; não era já ancia de amar.
Seis mezes de sobresaltos diante da forca deviam distender-lhe as fibras do coração; e o coração, para o amor, quer-se forte e tenso de uma certa rijeza, que se ganha com o bom sangue, com os anceios das esperanças, e com as alegrias que o enchem e reforçam para os revezes.
Cahiu a forca pavorosa aos olhas de Simão; mas os pulsos ficaram em ferros, o pulmão ao ar mortal das cadêas, o espirito intanguido na glacial estupidez d’umas paredes salitrosas, e d’um pavimento, que resôa os derradeiros passos do ultimo padecente, e d’um tecto que filtra a morte a gottas d’agua.
O que é o coração, o coração dos dezoito annos, o coração sem remorsos, o espirito anhelante de glorias, ao cabo de dezoito mezes de estagnação da vida?
O coração é a viscera, ferida de paralysia, a primeira que fallece suffocada pelas rebelliões da alma que se identifica á natureza, e a quer, e se devora na ancia d’ella, e se estorce nas agonias da amputação, para as quaes a saudade da felicidade extincta é um cauterio em braza, e o amor que leva ao abysmo pelo caminho da sonhada felicidade, não é sequer um refrigerio.
Ao deslaçar da garganta a corda da justiça, Simão Botelho teve uma hora de desafôgo, como que sentia o patibulo lascar entre os seus braços, e então convidou o coração da mulher, que o perdêra, a assistir ás segundas nupcias da sua vida com a esperança.
Depois, a passo igual, a esperança fugia-lhe para as areias da Asia, e o coração intumecia-se de fel, o amor afogava-se n’elle, morte inevitavel, quando não ha abertura por onde a esperança entre a luzir na escuridão intima.
Esperança, para Simão Botelho, qual?
A India, a humilhação, a miseria, a indigencia.
E os anhelos d’aquella alma tinham mirado a ambições de um nome. Para a felicidade do amor invidava as forças do talento; mas, além do amor, estava a gloria, o renome, e a vã immortalidade, que só não é demencia nas grandes almas, e nos genios que se presentem viver nas gerações vindouras, e se preluzem n’ellas.
Mas grinaldas de amor a escorrerem sangue dos espinhos, essas instillam veneno corrosivo no pensamento, apagam no seio a faisca das nobres affoitezas, apoucam a ideia que abrangêra mundos, e paralysam de mortal spasmo os estos do coração.
Assim te sentias tu, infeliz, quando dezoito mezes de carcere, com o patibulo ou o degredo na linha do teu porvir, te haviam matado o melhor da alma.
A ti mesmo perguntavas pelo teu passado, e o coração, se ousava responder, retrahia-se recriminado pelos dictames da razão.
D’além, d’aquelle convento onde outra existencia agonisava, gementes queixas te vinham espremer fel na chaga; e tu, que não sabias, nem podias consolar, pedias palavras ao anjo da compaixão para ella, e recebias as do demonio do desespêro para ti.
Os dez annos de ferros, era que lhe quizeram minorar a pena, eram-lhe mais horrorosos que o patibulo. E aceital-o-ias, por ventura, se amasse o ceu, onde Thereza bebia o ar, que nos pulmões se lhe formava em peçonha? Creio: — antes a masmorra, onde póde ouvir-se o som abafado de uma voz amiga; antes os paroxismos de dez annos sobre as lages humidas d’uma enxovia, se, na hora extrema, a ultima faisca da paixão, ao bruxolear para morrer, nos alumia o caminho do ceu por onde o anjo do amor desditoso se levantou a dar conta de si a Deus, e a pedir a alma do que ficou.
Thereza pedira a Simão Botelho que aceitasse dez annos de cadêa, e esperasse ahi a sua redempção por ella.
«Dez annos! — dizia-lhe a inclausurada de Monchique — Em dez annos terá morrido meu pae, e eu serei tua esposa, e irei pedir ao rei que te perdôe, se não tiveres cumprido a sentença. Se vaes ao degredo, para sempre te perdi, Simão, porque morrerás, ou não acharás memoria de mim quando voltares.»
Como a pobre se illudia nas horas em que as debeis forças de sua vida se lhe concentravam no coração!
As ancias, a lividez, o deperecimento tinham voltado. O sangue, que creára novo, já lhe sahia em golfadas com a tosse.
Se por amor ou piedade o condemnado aceitasse os ferrolhos tres mil seiscentas e cincoenta vezes corridos sobre as suas longas noites solitarias, nem assim Thereza sosteria a pedra sepulcral que a vergava d’hora a hora.
«Não esperes nada, martyr — escrevia-lhe elle. — A lucta com a desgraça é inutil, e eu não posso já luctar. Foi um atroz engano o nosso encontro. Não temos nada n’este mundo. Caminhemos ao encontro da morte... Ha um segredo que só no sepulcro se sabe. Vêr-nos-hemos?
Vou. Abomino a patria, abomino a minha familia, todo este solo está aos meus olhos coberto de forcas, e quantos homens fallam a minha lingua, creio que os ouço vociferar as imprecações do carrasco. Em Portugal, nem a liberdade com a opulencia; nem já agora a realisação da esperanças que me dava o teu amor, Thereza!
Esquece-te de mim, e adormece no seio do nada. Eu quero morrer, mas não aqui. Apague-se a luz de meus olhos; mas a luz do ceu, quero-a! quero vêr o ceu no meu ultimo olhar.
Não me peças que aceite dez annos de prisão. Tu não sabes o que é a liberdade captiva dez annos! Não comprehendes a tortura dos meus vinte mezes. A voz unica que tenho ouvido é a da mulher piedosa que me esmola o pão de cada dia, e a do aguazil que veio dar-me a sarcastica boa-nova de uma graça real que me commuta o morrer instantaneo da forca pelas agonias de dez annos de carcere.
Salva-te, se pódes, Thereza. Renuncia ao prestigio d’um grande desgraçado. Se teu pae te chama, vai. Se tem de renascer para ti uma aurora de paz, vive para a felicidade d’esse dia. E senão, morre, Thereza, morre, que a felicidade é a morte, é o desfazerem-se em pó as fibras laceradas pela dôr, é o esquecimento que salva das injurias a memoria dos padecentes.»
As palavras unicas de Thereza, em resposta áquella carta, significativa da turvação do infeliz, foram estas: «Morrerei, Simão, morrerei. Perdôa tu ao meu destino... Perdi-te... bem sabes que sorte eu queria dar-te... e morro, porque não posso, nem poderei jámais resgatar-te. Se pódes, vive; não te peço que morras, Simão; quero que vivas para me chorares. Consolar-te-ha o meu espirito... Estou tranquilla... Vejo a aurora da paz... Adeus até ao ceu, Simão.»
Seguiram-se a esta carta muitos dias de terrível taciturnidade. Simão Botelho não respondia ás perguntas de Marianna. Dil-o-ieis arrobado nas voluptuosas angustias do seu proprio aniquilamento. A creatura, posta por Deus ao lado d’aquelles dezoito annos tão attribulados, chorava; mas as lagrimas, se Simão as via, tiravam-no da mudez socegada para impetos de afflicção, que a final o extenuavam á força de convulsões.
Decorreram seis mezes ainda.
E Thereza vivia, dizendo ás suas consternadas companheiras, que sabia ao certo o dia do seu trespasse.
Duas primaveras vira Simão Botelho pelas grades do seu carcere. A terceira já inflorava as hortas, e esverdeava as florestas do Candal.
Era em Março de 1807.
No dia 10 d’esse mez recebeu o condemnado intimação para sahir na primeira embarcação que levava ancora do Douro para a India. N’esse tempo vinham aqui os navios buscar os degredados, e recebiam em Lisboa os que tinham igual destino.
Nenhum estorvo impedia o embarque de Marianna, que se apresentou ao corregedor do crime como criada do degredado, com passagem paga por seu amo.
— E a passagem vale-a bem! — disse o galhofeiro magistrado.
Simão assistiu no encaixotar de sua bagagem, n’uma quietação terrivel, como se ignorasse o seu destino.
Quiz muitas vezes escrever a derradeira carta á moribunda Thereza, e nem signaes de lagrimas podia já enviar-lhe no papel.
— Que trevas, meu Deus! — exclamava elle, e arrancava a mãos cheias os cabellos — Dai-me lagrimas, Senhor! deixai-me chorar, ou matai-me, que este soffrimento é insupportavel!
Marianna contemplava estarrecida estes e outros lances de loucura, ou os não menos medonhos da lethargia.
— E Thereza! — bradava elle, surgindo subitamente do seu spasmo — E aquella infeliz menina, que eu matei! Não hei de vêl-a mais, nunca mais! Ninguem me levará ao degredo a noticia da sua morte! E quando a eu chamar para que me veja morrer digno d’ella, quem te dirá que eu morri, ó martyr!