Amor de Perdição (1862)/XVII
VII.
João da Cruz, no dia 4 de Agosto de 1805, sentou-se á mesa com triste aspecto e nenhum appetite do almoço.
— Não comes, João? — disse-lhe a cunhada.
— Não passa d’aqui o bocado — respondeu elle, pondo o dedo nos gorgomilos.
— Que tens tu?
— Tenho saudades da rapariga... Dava agora tudo quanto tenho para a vêr aqui ao pé de mim com aquelles olhos que pareciam ir direitos aos desgostos que um homem tem no seu interior. Mal hajam as desgraças da minha vida que m’a fizeram perder, Deus sabe se para pouco, se para sempre!... Se eu não tivesse dado o tiro no almocreve, não vinha a ficar em obrigação ao corregedor, e não se me dava que o filho vivesse ou morresse...
— Mas se tens saudades — atalhou a senhora Josefa — manda buscar a rapariga, tem-l’a cá algum tempo, e torna depois para onde ao senhor Simão.
— Isso não é d’homem que põe navalha na cara, Josefa. O rapaz, se ella lhe falta, morre de pasmo dentro d’aquelles ferros. Isto é venêta que me deu hoje... Sabes que mais? leve a breca o dinheiro: ámanhã vou ao Porto.
— Pois isso é o que tu deves fazer.
— Está dito! Quem cá ficar que o ganhe. Vão-se os anneis e fiquem os dedos. Por ora tem-se resistido a tudo com o meu braço. A rapariga, se ficar com menos, lá se avenha. Assim o quer, assim o tenha.
Reanimou-se a physionomia do mestre ferrador, e como que os impeços da garganta se iam removendo á medida que planisava a sua ida ao Porto.
Acabára de almoçar, e ficára scismatico, encostado á mesa do escano.
— Ainda estás malucando?! — tornou Josefa.
— Parece coisa do demonio, mulher!... A rapariga estará doente ou morta?
— Anjo bento da Santíssima Trindade! — exclamou a cunhada, erguendo as mãos — que dizes tu, João!
— Estou cá por dentro negro como aquella sartã!
— Isso é flato, homem! vai tomar ar, trabalha um poucaxinho para espaireceres.
João da Cruz passou ao coberto onde tinha o armario da ferragem e a bigorna, e começou a atarracar cravos.
Alguns conhecidos tinham passado, palavreando com elle consoante costumavam, e achavam-no taciturno e nada para graças.
— Que tens tu, João? — dizia um.
— Não tenho nada. Vai á tua vida, e deixa-me, que não estou para lérias.
Outro parava e dizia:
— Guarde-o Deus, senhor João.
— E a vocemecê tambem. Que novidade ha?
— Não sei nada.
— Pois então vá com nossa Senhora, que eu estou cá de candeias ás avessas.
O ferrador largava o martello; sentava-se aos poucos no tronco, e coçava a cabeça com frenesi. Depois recomeçava novamente, e tão alheado o fazia, que estragava o cravo, ou martellava os dedos.
— Isto é coisa do diabo! — exclamou elle; e foi á cosinha procurar a pichorra, que emborcou como qualquer elegante de paixões ethereas se aturde com absyntho — Hei de afogar-te, coisa má, que me estás apertando a alma! — continuou o ferrador, sacudindo os braços, e batendo o pé no soalho.
Voltou ao coberto a tempo que um viandante ia passando sobre a sua possante mula. Envolvia-se o cavalleiro n’um amplo capote á moda hespanhola, sem embargo da calma que fazia. Viam-se-lhe as botas de coiro cru com esporas amarellas afiveladas, e o chapéo derrubado sobre os olhos.
— Ora viva! — disse o passageiro.
— Viva! — respondeu mestre João, relanceando os olhos pelas quatro patas da mula, a vêr se tinha obra em que entreter o espirito — A mula é de ropia e chibança!
— Não é má. Vocemecê é que é o senhor João da Cruz?
— Para o servir.
— Venho aqui pagar-lhe uma divida.
— A mim? o senhor não me deve nada que eu saiba.
— Não sou eu que devo; é meu pae, e elle foi que me encarregou de lhe pagar.
— E quem é seu pae?
— Meu pae era um recoveiro de Garção, chamado Bento Machado.
Proferida metade d’estas palavras, o cavalleiro afastou rapidamente as bandas do capote, e desfechou um bacamarte no peito do ferrador. O ferido recuou, exclamando:
— Mataram-me!... Marianna, não te vejo mais!...
O assassino teria dado cincoenta passos a todo o galope da espantada mula, quando João da Cruz, debruçado sobre o banco, arrancava o ultimo suspiro com a cara posta no chão, d’onde apontára ao peito do almocreve dez annos antes.
Os caminheiros, que perpassaram pelo cavalleiro inadvertidamente, ajuntaram-se em redor do cadaver. Josefa acudiu ao estrondo do tiro e já não ouviu as ultimas palavras de seu cunhado. Quiz transportal-o para dentro, e correr a chamar cirurgião; mas um cirurgião estava no ajuntamento, e declarou morto o homem.
— Quem o matou? — exclamavam trinta vozes a um tempo.
N’esse mesmo dia vieram justiças de Vizeu lavrar auto e devassar: nenhum indicio lhes deu o fio do mysterioso assassinio. O escrivão dos orphãos inventariou os objectos encontrados, e fechou as portas quando os sinos corriam o derradeiro dobre ao cahir da lousa sobre João da Cruz.
Deus terá descontado, nos instinctos sanguinarios do teu temperamento, a nobreza de tua alma! Pensando nas incoherencias da tua indole, homem que me explicas a providencia, assombra-me as caprichosas antítheses que a mão de Deus infunde em alentos na creatura. Dorme o teu somno infinito, se nenhum outro tribunal te cita a responder pelas vidas que tiraste, e pelo uso que fizeste da tua. Mas se ha estancia de castigo e de misericordia, as lagrimas de tua filha terão sido, na presença do Juiz Supremo, os teus merecimentos.
Fez Josefa escrever a Marianna, noticiando-lhe a morte de seu pae, mas sobrescriptou a carta a Simão Botelho, para maior segurança. Estava Marianna no quarto do prêso, quando a carta lhe foi entregue.
— Não conheço a letra, Marianna... E a obreia é preta...
Marianna examinou o sobrescripto, e empallideceu.
— Eu conheço a letra — disse ella — é do Joaquim da loja.
— Abra depressa, senhor Simão... Meu pae morreria?
— Que lembrança! Pois não teve ha tres dias carta d’elle? E não lhe disse que estava bom?
— Isso que tem?... Veja quem assigna.
Simão buscou a assignatura, e disse:
— Josefa Maria... É sua tia que lhe escreve.
— Leia... leia... que diz ella?
O prêso lia mentalmente, e Marianna instou:
— Leia alto, por quem é, senhor Simão, que estou a tremer... e v. s.^a descora... que é, meu Deus?
Simão deixou cahir a carta, e sentou-se prostrado de animo. Marianna correu a levantar a carta, e elle, tomando-lhe a mão, murmurou:
— Pobre amigo!... choremol-o ambos... choremol-o, Marianna, que o amavamos como filhos...
— Pois morreu? — bradou ella.
— Morreu... mataram-no!...
A moça expediu um grito estridulo, e foi com o rosto contra os ferros das grades. Simão inclinou-a para o seio, e disse-lhe com muita ternura e vehemencia:
— Marianna, lembre-se que é o meu amparo. Lembre-se de que as ultimas palavras de seu pae deviam ser a recommendar-lhe o desgraçado que recebe das suas mãos bemfeitoras o pão da vida. Marianna, minha querida irmã, vença a dôr que póde matal-a, e vença-a por amor de mim. Ouve-me, amiga da minha alma?
Marianna exclamou:
— Deixe-me chorar, por caridade!... Ai! meu Deus, se eu torno a endoidecer!
— Que seria de mim! — atalhou Simão — A quem deixaria Marianna o seu nobre coração para me suavisar este martyrio? Quem me levaria ao desterro uma palavra amiga que me animasse a crêr em Deus!... Não ha de enlouquecer, Marianna, porque eu sei que me estima, que me ama, e que affrontará com coragem a maior desgraça, que ainda póde suggerir-me o inferno! Chore, minha irmã, chore; mas veja-me através das suas lagrimas!