Anais da Ilha Terceira/Prefácio

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Não foi a esperança do mesquinho interesse, nem uma ociosa ou vã ambição de glória, mas sim o desejo de ser útil à pátria, que me impeliu a empreender esta obras, começada por mim há mais de vinte anos, compilando-a de muitos papéis e livros pela maior parte desprezados, o nos quais ainda a mão do tempo ou a culpável indiferença de nossos maiores não exercera o seu ofício. Neste empenho dificultoso me oprimia barbaramente a má fortuna minha companheira inseparável em toda a vida; e sem dúvida que esse trabalho improbo ficaria no canto onde se achava, a não ser o bem notório patriotismo da excelentíssima Câmara Municipal de Angra do Heroísmo [1], que, aceitando o meu sincero oferecimento, o mandou rever e imprimir a expensas suas.

Forçoso é confessar, que, na impossibilidade em que me achava de publicar tão volumoso escrito, diversas coisas nele havia menos aperfeiçoadas, e outras talvez inúteis, e até algumas lacunas se encontravam pela escassez dos factos, e esterilidade das matérias, o que obstava ao seguimento regular e preciso nexo histórico. Continuando porém as minhas investigações, depois do oferecimento desta obra, pude alcançar importantes documentos e notícias, às quais, ainda com o valioso auxílio dos ilustres revisores, dei uma conveniente e melhor coordenação. Era na verdade este escrito um apontado que carecia de novo trabalho, e este dependia de circunstâncias que se me não proporcionavam entregue a uma vila laboriosa e alheia das letras. Nesta situação encontrei o necessário auxílio nos ilustríssimos senhores doutor António Moniz Barreto Corte-Real, actual comissário de estudos neste distrito, reitor do Liceu Nacional desta cidade, e José Augusto Cabral de Melo, secretário da mesma Câmara, já então; por ela nomeados para dirigirem os trabalhos da publicação desta obra, o que efectivamente fizeram.

Devo agora dizer o que se contém nesta obra e o sistema que adoptei. — Pareceu-me apropriado a este escrito o título de — Anais —, pela ordem que segui na exposição dos factos; e dividi este primeiro volume em quatro períodos, relativos às quatro épocas mais notáveis que se encontram desde o descobrimento da ilha até à aclamação de el-rei D. João IV. — Quando a ligação dos factos o exigiu, formei capítulos, seguindo a narração pela ordem dos anos tendo o maior cuidado em guardar a exactidão cronológica. Achar-se-á talvez que fui demasiadamente difuso e minucioso, e que tive uma espécie de complacência em narrar, fundado em tradição, sucessos, usos e costumes pouco interessantes. Talvez que também se me note haver escrito a biografia de alguns indivíduos e suas origens, como se quisesse formar aqui um nobiliário de famílias. Tudo isto, confesso, poderá ser um gravíssimo e imperdoável defeito mas persuadi-me que faria um importante serviço se estampasse as memórias de nossos antepassados que andam nas histórias não conhecidos por tais[2], e se deixasse aqui reunidas todas as possíveis memórias de um país que, apesar de circunscrito e moderno em população, é realmente mui considerável, pelos sucessos de que fora teatro, e por ter sido a capital do arquipélago açoriano; e por isso não pude deixar de fazer menção dos seus monumentos históricos e das pessoas mais abalizadas por virtudes e origens, e dos forais, regulamentos e leis de execução permanente, com que tanto lustrou e se engrandeceu por mais de três séculos. Igual persuasão me impeliu a inserir algumas posturas e leis peculiares das vilas e cidade desta ilha, e alguma coisa das constituições e regulamentos eclesiásticos, civis e militares, provisões, e alvarás subsidiários às nossas ordenações, para que pudesse alguém tirar de tudo proveito escrevendo em forma e dignamente a história deste país heróico; e pudesse também aproveitar um dia à reorganização de um código português, conforme a letra do decreto de 13 de Setembro de 1826[3]. Nesta obra fui certamente mui conforme com o pensamento da portaria do Ministério do Reino de 8 de Novembro de 1847[4], que manda e consignar nas Câmaras Municipais os acontecimentos e os factos e importantes que ocorreram e cuja memória seja digna de conservar-se.

Foram estes os pensamentos que tive para escrever esta obra tão difusa, e na qual tenho lidado há muito tempo, mais curioso que ciente, sem outro estímulo que o desejo de ser útil à minha pátria; e por muito feliz e recompensado me darei, se, obtendo desculpa às minhas faltas, merecer este meu trabalho a aceitação do respeitável público, atendendo-se a que de tudo isto só me resultou um fastidioso entretenimento, no meio de imensas ruínas históricas, dispersas entre papéis rotos e cobertos de poeira, que só uma acrisolada paciência e assíduo trabalho, como eu tive, poderia juntar e pôr em ordem.

As fontes de onde extraí estas notícias são insuspeitas, porque, falando dos autores que segui, eles sempre foram havidos por verdadeiros, assim no tempo em que escreveram como posteriormente, pelo desinteresse e imparcialidade com que se houveram na narração das coisas antigas e contemporâneas. — Acharam mui pouco escrito dos tempos passados, ainda que deles houvesse muito a dizer, e disto se queixam com tanta razão como elegantemente se queixou o famoso Jacinto Freire de Andrade na sua História de D. João de Castro, lastimando que, sendo a Lusitânia tão fértil em sujeitos que lhe deram tanto crédito no mundo, fora mui escassa de escritores que a eternizassem na posteridade. — Assim, na primeira e segunda época destes Anais, aparecem muitos factos fundados unicamente em tradições e conjecturas, a respeito dos quais o leitor formará o conceito que achar mais acertado, segundo a sua prudência e ilustração.

Notas[editar]

  1. Servia de presidente interino o Ilustríssimo dr. António Moniz Barreto Corte-Real, por haver passado a administrador do concelho o presidente dela, o excelentíssimo visconde de Bruges. Eram vereadores os Ilustríssimos Tomás José da Silva, António José Rodrigues Fartura, José Borges Leal Corte-Real, António Sieuve de Seguier Camelo Borges, e Luís José de Vasconcelos.
  2. Não foram poucos os sujeitos da ilha Terceira e mais dos Açores que passaram a servir em Portugal e conquistas com distinto nome e fama, sem todavia se lhes nomear a pátria, até às vezes parecem não ser daqui, como se pode ver nas diferentes histórias que deles tratam.
  3. Regendo o reino de Portugal a Senhora Infanta D. Isabel Maria, expediu-se este decreto para se formar em todas as estações um mapa cronológico de todas as leis, ordenações, regimentos, alvarás, decretos, instruções, resoluções de consulta, e avisos de execução permanente, publicados desde 1603 em que o foram as Ordenações, indicando em breve sumário a o objecto de cada um, segundo o método usado pelo senhor João Pedro Ribeiro e outros. Prometeu-se grande recompensa a quem desempenhasse esta comissão: e apesar de se darem nas câmaras desta ilha alguns passos para a execução disto, nada se fez até hoje.
  4. [Nota do editor: A Portaria de 8 de Novembro de 1847, da autoria de António de Azevedo Melo e Carvalho, então titular da Secretaria de Estado dos Negócios Interiores do Reino, determina que em todos os concelhos as respectivas Câmaras Municipais elaborem um livro especial, denominado “Anais do Município”, no qual registariam os acontecimentos e factos mais importantes que ocorrerem, e cuja memória seja digna de conservar-se; as descobertas de riquezas, substâncias e combustíveis minerais; o aumento ou diminuição da produção agrícola e as causas; a longevidade das pessoas de que houver notícia, com a declaração do modo de vida que tiverem e do alimento habitual; as acções generosas e os nomes de seus autores, que mereçam ser transmitidas às gerações futuras; e, finalmente, tudo quanto possa interessar às gerações futuras. Para cumprir esta determinação, cada Câmara Municipal deveria nomear uma comissão que todos os anos, e no princípio do mês de Março descrevesse em letra bem legível no referido livro tudo aquilo que estava previsto na portaria, a qual deixava amplo espaço de escolha quanto ao tipo e importância dos eventos a registar.]