Angélica e Firmino/III

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A mesma sala do primeiro ato

Cena I[editar]

FIRMINO

FIRMINO (Com o chapéu na cabeça) – Vamos... onde botei eu a minha outra caixa de lancetas? Aqui, não... Ah, cá estão! Pobre rapaz, e pobre mãe! (Abre a gaveta e põe algumas notas do Tesouro na carteira) Isto basta; com esta soma poderão viver fartos durante a moléstia. Ah! Já me ia esquecendo a pobre velha. Não me falta que fazer. (Vai saindo)

Cena II[editar]

FIRMINO e CÂNDIDA

CÂNDIDA – Aqui está o remédio de minha mana. Anda Vossa Mercê numa dobadoura, e ainda mais agora, que aspira a ser deputado, e há de ser.

FIRMINO – Dê cá. (Abre o vidro, cheira e entrega a Cândida) Uma colher de chá de meia em meia hora; se ela repugnar a tomá-lo simples, misture-o com água morna. Eu já volto, vou aqui ao vizinho.

CÂNDIDA – Pois onde vai com tanta pressa?

FIRMINO – Vou sangrar o pobre Geraldo carpinteiro, que está com uma pneumonia famosa, e ver aquele homem da louça, que também está mal.

CÂNDIDA – Ora, eles não hão de morrer, e demais, não lhe pagam nada. Venha ver Angélica.

FIRMINO – O perigo destes é grande e importa muito uma hora de tardança. É um filho que sustenta sua mãe, e o outro um pai de nove criancinhas. E, minha amável prima... não devemos ir somente onde os pagam. Eu, por certo, não sou homem de aluguel. Tenho recebido algumas ingratidões, mas o que são elas a par do prazer de ver passearem tantos defuntos na rua?

CÂNDIDA – Como é que os defuntos passeiam?

FIRMINO – Por seu próprio pé. O José Daniel, guarda-livros, não é um defunto ressuscitado?

CÂNDIDA – Percebo agora.

FIRMINO – E muitos nem o chapéu me tiram.

        CÂNDIDA – E se o mandarem chamar outra vez?

FIRMINO – Vou, seja a que hora for.

CÂNDIDA – Pois eu não ia.

FIRMINO – Porque não podeis apreciar ainda a grandeza, a majestade daquele que é um verdadeiro médico, o cura corporal da sociedade. Ah, sim! Mande entregar este dinheiro... não... aqui tem as chaves da minha carteira e, do dinheiro que achar, mande metade àquela viúva lá da rua do Aljube. Ela já vai escapar, mas a filha ainda não está livre. É pena morrer uma criatura tão bela, tão mimosa e tão engraçadinha.

CÂNDIDA – Sim! E que idade tem essa moça tão bela, tão graciosa, tão mimosa?

FIRMINO – Não é uma moça, é uma menina de nove anos e nada mais. Eu volto logo, apesar de ter uma junta... (Vai-se)

Cena III[editar]

CÂNDIDA e GUSTAVO

CÂNDIDA (Fica muito contente e fecha a porta da sala) – Ora, gora

estou só e com as chaves na mão. Quero ver a meu gosto o que está nesta carteira, onde ele guarda os seus segredinhos. Nem sei como me confiou a chave! O que é isto? (Desembrulha) Um retrato... Olhos azuis, cabelo louro... dá uns ares, de longe, com Angélica, mas ela tem olhos pretos. Entendo, algum pecado velho. E se esta mulher ainda vive? Cartas em francês! Agora estou arrependida de não ter estudado bem, porque havia de as ler todas; assinadas “Adelaide”, quantas cartas! (Abre uma gaveta) Assim mesmo ele ganha muito dinheiro! Quando me casar, hei de pô-lo em regra. Nunca mais há de escrever livros. Não quero que passe as noites em claro, em cima de uma mesa; é melhor dormir sossegado. Proibição total de esmolas, a mulheres principalmente; boa sege, bons passeios, bons bailes, e todos os paquetes ter os últimos figurinos de Paris. Ninguém há de andar mais bem vestida do que eu... Que caderno será este? Despesas... Obras de Alibert, cinqüenta mil-réis. Ora veja, para que mais livros! Meu Deus, quanto dinheiro! Retrato de minha mãe, cem mil-réis; caixilho de ouro e cravação de pedras, 350 mil réis... Ah, é o retrato de minha tia! Por isso não é bom sus­peitar mal de ninguém. Não era feia, mas o outro retrato está mais velho e não tem este penteado. Não sei que gosto era aquele de trazerem as cinturas tão em cima, que moda tão indecente! Se eu usasse outra vez este penteado, eu era das primeiras a trazê-lo; acho-o bonito... ora, tudo quanto é moda é bonito. Vamos a tirar o dinheiro que ele mandou... Oh, cá está outra conta! Meu Deus, quanto tem dado! Tudo, tudo dado! Este homem precisa ter quem o guie; gasta dinheiro como água. Ora, ora, nem ele sabe o que tem! Cinqüenta mil-réis para uma mulher! Os ricos nunca dão tais esmolas. Com todos estes desperdícios podia ele ter uma bela sege. Eu quero ir ao teatro todos os dias, e hei de pôr este quarto em ordem. Este barulho é o que a minha bela mana chama uma bela desor­dem, uma bela confusão. E diz ele que isto é um bom sinal! É muito estúrdia, tem coisas [em] que não se parece com as outras.

GUSTAVO (Dentro) – Candinha, Candinha, abre a porta. Já te espiei pelo buraco da chave. Que estás fazendo? Abre.

CÂNDIDA – Estou tirando uma coisa que o primo mandou. (Fe­cha tudo, guarda a chave e abre a porta)

GUSTAVO – (Com um grande charuto) – Que dinheiro é esse?

CÂNDIDA – Que tens, estás tão agitado! Que olhos, meu Deus! O que é que te fizeram?!

GUSTAVO – Nada. Pensei muito esta manhã e quero mudar de vida.

CÂNDIDA – Fazes bem, porque isso não é viver. Quem quererá casar contigo? Não tomas assento nenhum?

GUSTAVO – Que dinheiro é esse? Responde.

CÂNDIDA – Firmino disse-me que abrisse a carteira e, do dinheiro que achasse, tirasse metade para dar uma esmola. Vi embrulha­dos quatrocentos mil-réis, vi mais um papel com dois bilhetes de cem e estes cem separados. Creio que é isto o que ele quer, são cinqüenta; do contrário, seria deitar tudo fora.

GUSTAVO – Não, a conta está clara: são 350. Talvez seja para aquela pobre mulher da rua do Aljube... Ainda hoje por lá passei e dei-lhe uma esmolinha, não pude dar mais. Logo lá hei de ir para saber como vai a sua pobre menina... faz-me uma pena... (À parte) Vamos a ver se engole a pílula. Estou doido, furioso por dinheiro.

CÂNDIDA – Isso não pode ser, é muito dinheiro! Já que o céu te tem chamado para o seu lado, não te custará nada, uma vez que lá tens de ir, dar-lhes estes cinqüenta mil-réis, porque são para ela mesma.

GUSTAVO – Nada, nada, cumpra as ordens do primo e não seja avarenta do que não é seu. São 350 mil-réis.

CÂNDIDA – E se o primo me criminar?

GUSTAVO – Dize-lhe que eu sou a causa. Anda, abre, dá cá o dinheiro. Caridade pensada e de esmola mesquinha.

CÂNDIDA – (Abre a carteira, tira mais dinheiro e dá-o a Gustavo) – Aqui está. Treme-me a mão, não sei o que me está dizendo o coração. Estás hoje com um ar que me parece um não-sei-quê!!

GUSTAVO – Qual ar, nem pera ar! Estou como sempre. Que vidro é este?

CÂNDIDA – Ah, é o remédio de Angélica.

GUSTAVO – Coitadinha! Ela à espera dele e tu aqui de parola! Dá cá isso. (Toma-lhe o dinheiro)

CÂNDIDA – És selvagem até no fazer bem. Olha, Gustavo, não vai botar fora esse dinheiro, como aquele de Angélica...

GUSTAVO – Chiton... que não estou para graças.

CÂNDIDA – Espera-me aqui que eu já venho para te pedir que me tragas umas amostras, mas eu preciso te explicar isso muito, porque...

GUSTAVO – Está bom. Vai-te. (Cândida vai-se)

Cena IV[editar]

GUSTAVO

GUSTAVO – Que fatalidade! Virar-se a roda da fortuna depois de haver ganhado as primeiras mãos! Fui para a roleta, zape: ganho seiscentos mil-réis, e vão-se em menos tempo do que vieram! (Tira um cartão da algibeira, como costumam ser os das casas de jogo, e senta-se) Aqui está tudo: cinco lances da preta... três da encarna­da... um preto, a encarnada segue, eu digo “agora sim”; zás, preta, preta; vou para a maldita vermelha, dobro a parada, zás. Parecia que Satanás sorria-se da minha queda! Tudo, tudo perdi. Impru­dência, imprudência... não devia mudar. E o que fiquei devendo na casa? Meu pai... Deus me livre. Meu primo... tenho novo sermão, e já está sangradinho, já está mais que sangrado. Arnaud? Daquele mato não sai coelho; sovina como um ginja. Este dinheiro?... este dinheiro... e se eu o perder ainda? Se o dono da casa me disser: “Meu senhor, Vossa Senhoria não tem mais crédito aqui,” como disse ao doutor Sandelico, meu amigo? Apre, que não, longe de mim tal vergonha. Um cavalheiro deve medir suas ações. Para que fui eu enganar a tola da Cândida? Se eu perder este dinheiro?... (Pausa) Não, este dinheirinho tem feitiço este dinheirinho tem virtudes, é destinado para uma obra pia, vamos a jogar com ele... mas se a pobre mulher fica sem a esmola?... Se eu ganhar, dou-lhe o dobro. Nada, nada, quem pensa muito fica doido e não faz nada. Por força que hei de ganhar; sinto uma coisa cá dentro que me diz: “Gustavo, tu hás de ganhar.” (Vai-se)

Cena V[editar]

CÂNDIDA

CÂNDIDA – Gustavo, Gustavo, onde estás? Que doido, foi-se sem se lembrar da minha encomenda. Ora, queira Deus que aquela ca­beça vá direita à rua do Aljube. Tomara já que Firmino venha, tenho dois pesos no coração: este dinheiro que dei e o incômodo de minha irmã, que não sei bem o que é. Ora a vejo boa, ora pior. Se aqui não anda outra coisa encoberta! E por mais diligências que faça, não descubro nada. Angélica fica doida; às vezes rola-me uns olhos que me metem medo! Tantas vezes lhe digo “mana, vamos dormir”; nada, lê e relê, chora por gosto. Eu não, choro, mas logo me passa e não fico o resto do tempo, como ela, tão triste. Eu sei que tudo aquilo é mentira. Ah, aí vem ele!

Cena VI[editar]

FIRMINO e CÂNDIDA

FIRMINO – Viva, viva. Como vai a doente? Já deu o remédio?

CÂNDIDA – Assim, assim. Aqui está a sua chave. Já mandei o dinheiro à mãe da tal beleza engraçada, etc. etc.

FIRMINO – Por quem?

CÂNDIDA – Pelo Gustavo, que conhece muito essa mulher e lhe tem feito algumas esmolas.

FIRMINO – Por meu primo! Gustavo está esmoler?!

CÂNDIDA – Sim, senhor, por quê?

FIRMINO – Por nada. Não sabia que ele a conhecia. (Cândida vai se indo) Escute, prima, quanto mandou?

CÂNDIDA – Olhe, se há alguma coisa, eu não tenho a culpa. Gustavo foi quem me disse que eram trezentos e cinqüenta. Eu queria dar-lhe somente cinqüenta.

FIRMINO (Pensando) – Pois bem, está bom. Agora conceda-me licença para trabalhar um pouco, tenho muito que fazer. (Baixo) Não expliquei bem, pago.

CÂNDIDA – Até o jantar. (Vai-se)

Cena VII[editar]

ANTÔNIO e FIRMINO

FIRMINO (Consigo) – Há dias aziagos. Diz-me o coração que este dinheiro há de seguir o caminho do mais. Quando meu tio souber...

ANTÔNIO – Doutor, o que é que tem esta minha Angélica?

FIRMINO – Aquilo é passageiro, são fenômenos nervosos. Angélica tem muita imaginação, é muito impressionável. É necessário que ela vá para um lugar afastado, para um ar puro como o da serra, e lá viva sem livros, sem romances, apenas com algumas músicas, e essas mesmas devem ser alegres. E nada de cantar.

ANTÔNIO – Tudo isso pode ser, mas há um não-sei-quê de misterioso naquela enfermidade que me confunde. E o abalo da viagem, não lhe fará mal?

FIRMINO – As primeiras horas, talvez no primeiro dia, mas esses incômodos serão adoçados pela variedade e beleza da estrada. Quem tem alma grande não tem outro tempo mais em viagem do que para admirar a suntuosidade e magnificência desta terra. Assim tivéssemos nós um verdadeiro amor a ela e um pouco mais de bom senso. Mas vamos ao caso. É necessário que ela parta quanto antes.

ANTÔNIO – Há de ir com teu tio. Lá pela distração não vejo grande utilidade, porque aqui ela tem tudo o que pode desejar, mesmo em casa. Sabes que nada poupo.

FIRMINO – Mas acompanha a isso tudo a pureza do ar, a bondade das águas e uma nutrição mais sã do que a desta cidade. É outra natureza, objetos novos...

ANTÔNIO – Doutor, eu creio que o estudo da filosofia foi muito forte para a cabeça de Angélica e que lhe enfraqueceu a saúde. Não sei... sou pai... não sei a qual eu amo mais, só o que sei dizer é que, quando Angélica adoece, eu fico mais pesaroso. Ditoso o pai que possui uma filha como Angélica! Tudo nela é de uma delicadeza extrema, um coração de anjo! Antes de voltares da Europa, ela me parecia mais bela que a irmã, não sei, havia mais simplicidade. Isto é conversa de amigo íntimo, porque um pai é pai. Ora, por exemplo, aqueles versos que ela fez no dia dos meus anos, ninguém acredita que são dela. Todos dizem que houve mão estranha e que uma moça não é capaz de os fazer.

FIRMINO – Do que ela é capaz sei eu!... Feliz do homem que a possuir.

ANTÔNIO – É precisamente o que ela diz de vós, quando conversa com a mãe ou com a irmã, e isto é de tal maneira que a Cândida disse que se não tinha ciúmes dela, e muito fortes, é porque a conhece e é sua irmã. Que criançadas... valha-nos isto para rir.

Cena VIII[editar]

ANTÔNIO, FIRMINO, DONA CLARA e CÂNDIDA

DONA CLARA – Veja se a pode persuadir a sair para fora, com a sua máxima autoridade, porque eu já me não atrevo a falar-lhe nisso. Custa-me muito amofiná-la.

ANTÔNIO – E o que ela responde?

CÂNDIDA – Chora e não diz nada. Por qualquer coisa chora!

DONA CLARA – Até porque o Arnaud foi divertir-se com os seus patrícios.

CÂNDIDA – E quando ele passou com aquele grande ramalhete de flores, ela me disse que as flores tinham cheiro de orgia e que lhe fizeram náusea.

ANTÔNIO – Criançada. Com doçura tudo arranjaremos, e decerto que há de ir para a fazenda de meu irmão. E agora que tudo são flores no engenho! Neste tempo até o gado trabalha com gosto. Onde está Angélica agora, porque vi-a na sala do jantar com um maldito livro?

DONA CLARA – Lá está no jardim a ler, e eu vos vinha chamar para que a fôsseis ver.

FIRMINO – E o que lê ela?

CÂNDIDA – Chateaubriand.

FIRMINO – Mas que lê ela de Chateaubriand?

CÂNDIDA – A sua favorita: Atala. (Firmino fico pensativo)

DONA CLARA – No que pensas, doutor?

FIRMINO – Nada... ah, perdoai-me! Revolvia agora um meio mais pronto de salvar Angélica.

ANTÔNIO – Pois quê! Seu estado é tão grave?!

DONA CLARA – Minha filha está tão mal?!

CÂNDIDA – Pois que tem ela?!

FIRMINO – Devagar, meus senhores, nada de violências. Um ta­lho de canivete, um espinho de rosa, têm algumas vezes conseqüências muito funestas. O médico vê mais o futuro, e o futuro tem as suas indicações no presente.

DONA CLARA – Eu morreria de dor. Nem pensar nisso quero...

ANTÔNIO – Venha comigo, doutor, venha ajudar-me a persuadi-la.

DONA CLARA – Tens um grande império sobre ela.

FIRMINO – Porque sou médico, e por isso me guardo para a última demão. Vão, que eu irei depois. É muito melhor que vosmecês empreguem todo o seu poderio, toda a sua eloqüência persuasiva, todos esses mimos e jeitos que não possui um homem, do que chegar eu com a minha potestade magistral, com o meu firmã de vizir, e ela ficar contrariada. Um médico não deve agravar a moléstia.

CÂNDIDA – Tudo se faria mais depressa indo o meu primo agora.

DONA CLARA – Porque assim poderemos arranjar a sua roupa toda.

FIRMINO – Vão, que eu lá irei acabar a obra.

DONA CLARA – E ela pode levar a harpa portátil?

CÂNDIDA – Serão necessários vestidos de lã. Às vezes faz frio na roça.

ANTÔNIO – Caímos no moto contínuo. Isso não tem fim. Senhoras a conversarem em arranjos levam a palma a todos os teólogos em disputas sobre o livre arbítrio.

Cena IX[editar]

FIRMINO

[FIRMINO] (Tira vários papéis da algibeira, a carteira, e cai-lhe um embrulho no chão) – O que é isto? Não me lembro de haver comprado nada. (Desembrulha) Os suspensórios que Angélica bordou! Esse mimo que ela destinava para uma surpresa e que tanto me ocultara, envolvendo sempre num doce mistério! Um papel dentro! Versos! Vejamos: (Uma perturbação involuntária se apodera de sua alma. Considera os suspensórios, põe-nos na mesa, passa os dedos nos olhos, como para aclarar a vista, e lê:)

Eu nasci p'ra suspirar,

Para a dor, para a ternura;

Embalou-me o berço a mão

Da mais cruel desventura.

Também nasci para amar,

Para amar com puro ardor;

Mas se eu amo, uma desgraça

Me transmuda o risco em dor.

Minha alma é como um espelho

Que a imagem da dor reflete;

Meu coração como um eco,

Que os meus suspiros repete

Eu tenho dentro em meu peito

Uma fênix amorosa,

Que renasce luminosa

Sobre a chama do seu leito;

Que renasce progressiva

No vigor, na intensidade;

Que se abrasa, e me devora

Com terrível crueldade.

Quando o buril da velhice

Em tuas faces gravar

Os sulcos da longa idade,

E o teu cabelo nevar...

Recorda, lendo estes versos,

Aquela que os escreveu;

Dá-lhe uma lágrima, e dize:

Foi desgraçada!... morreu!!

(Firmino fica estático, com os olhos fixos no último verso; de­pois de algum tempo corre com os olhos esbugalhados e torvos todo o papel; pega nos suspensórios, vai-os levando aos lábios, mas ati­ra-os precipitadamente na mesa, amarrota involuntariamente o papel em uma contração das mãos, passeia e diz:) Com que sou eu o anjo exterminador que paira sobre a cumeeira desta casa! O Sata­nás que sopra no teto hospitaleiro a perturbação e a desgraça! A víbora que envenena o néctar do santuário doméstico! O abutre que espicaça o coração de seus benfeitores! O vampiro funesto que inocula a peste invisível de uma pústula infernal?! Ah, meu Deus! Dois abismos terríveis, dois vulcões se abrem a meus lados. Mas que espectros de fogo são estes que se apoderam de minha mente e de meu coração? Que mar de chamas, que tempestade infernal ferve, me abrasa e parece que me engole?! Ouço o canto das harpias, o ulular das fúrias e vejo o braço do Averno salpicando os céus e a terra com as trevas do caos. Tudo é escuridão! Picos alcantilados, precipícios e uma serpente infernal, tão longa como o horizonte, tão fria como a morte, que me prende, que me prende e titubeia os passos! E como, como fugir deste labirinto horrendo, como abraçar dois gigantes envolvidos em nuvens de ferro? Terá minha alma esse poderio celeste que combate, e palmo a palmo conquista e triunfa das muralhas do inferno?! Meu Deus, meu Deus, socorrei a minha inocência e extingui em meu coração esta flama que o abrasa e o calcina. (Passeia rapidamente, abre as janelas, por onde se vê a vista da barra, respira o ar puro da viração e senta-se, olhando para o Pão de Açúcar) Rocha sublime, eterno monumento da minha pá­tria, gigante de granito aonde o ronco das tempestades, a fúria dos raios, não abalam o mais pequenino átomo de tuas entranhas. O raio se desliza em teu espinhaço como a jibóia num tanque circula­do de flores, e a vaga do oceano que desmonta os botaréus de baluar­tes seculares, que desmorona esses gigantes de pedra com fibras de ferro, que iluminam as costas, vêm lamber teus pés e engrinaldá­-los com festões de nívea espuma. Quanto és feliz! Os teus poros, onde ressumbra a eternidade, só serão abalados pelo som da trombeta eterna, pela voz do último hino que entoará a ruína do universo, a cessação das harmonias e a reconquista do caos! Paixões mundanas, misérias terrestres, lágrimas, dores, tu nunca conhecerás! Nunca perturbarão tua existência! Filho da criação, pátria de ti mesmo, teus amores são os céus, as nuvens tua coroa augusta, as palmeiras tuas madeixas, o teu coração a terra, os teus olhos o sol, a tua vida um círculo harmônico e o teu triunfo a eternidade. Quem me dera ser uma rocha, uma planta, porque não gemeria, não fugi­ria da broca ou do machado; o braço do homem seria uma nuvem e sua voz um sonho desprezível... Angélica, pobre Angélica, nasce­mos infelizes! Tinha-lhe, é verdade, uma simpatia que passava a ponto de entusiasmo. Mas a minha palavra a meu tio dissipava to­dos os fantasmas que se aglomeravam em minha imaginação. Algumas vezes me vislumbrou, não um ciúme, mas uma espécie de inveja da sorte futura de Arnaud... Ah, se eu soubesse que ela nunca o amara... Mas que intento? E a outra? Caráter igual, verdadeiro tipo de uma mulher para casa, talvez incapaz de violento amor, mas também incapaz de violento ódio... Nada, nada, é preciso fugir; abandone-se tudo, resista-se a tudo neste horrível combate, antes que a peleja se trave profundamente no meu já tão dilacerado coração, aliene a minha razão e tenha um triunfo, onde a suspeita possa enegrecer a honra. Pobre Angélica! Como me seria suave o dar-te um ósculo de ternura em tua fronte virginal... Tu és como o arcanjo da beleza senta­do sobre um túmulo entre mil ruínas, o lírio da pureza, expandindo o seu aroma no deserto e açoitado pelas areias do Suão! Mas agora me lembra: Arnaud estava hoje sombrio, abaixou os olhos quando pene­trei no escritório! Uma ave sinistra lhe esvoaçava na mente... Havia em sua fisionomia não sei que traços, que nuvem misteriosa, que estampavam uma grande perturbação em sua alma. Seriam algumas suspeitas? Nada, a bola de neve está lançada, e deve engrossar-se em um terreno gelado. Devo ausentar-me. Fingirei uns trabalhos científicos, um comprometimento, ganharei tempo. Meu Deus! Para que vim eu ao mundo? Para que não morri antes?...

Cena X[editar]

FIRMINO, ADOLFO e POMPEU

ADOLFO – Tudo vai às mil maravilhas. Aqui fica o senhor Pompeu, que é dos nossos e que nos augura um completo triunfo na corte e seus arrabaldes. Esta madrugada vou para a minha casa, e lá me demorarei o tempo necessário para certas ordens, e partirei logo a entender-me com o coronel Silvério, pintar-lhe a situação do país e convidá-lo a metermos o ombro à empresa. Seus filhos, principal­mente o comendador, podem fazer muito, e vinte e dois colégios teremos a flux. (Firmino concerta-se durante esta fala e fecha na gaveta os suspensórios e os versos) Deixa essa papelada por ora e ocupa-te com as eleições, que é causa muito séria. Um candidato deve pensar em colégios e somente respirar votos.

POMPEU – No meu círculo o seu nome está aceito com especial agrado. As suas obras patenteiam os seus sentimentos e a vitória será nossa, senhor Firmino.

ADOLFO – Então, o que dizes? Estás doente, contrariado? O que tens? Olha que nestes tempos é preciso cara alegre e fisionomia de Te-Deum com repiques e foguetes.

FIRMINO – Perdi esta manhã um grande pleito... Morreu um pai de numerosa família, e isto me tem entristecido.

ADOLFO – Pois ainda não estás acostumado a esses revezes?

FIRMINO – Nem nunca me acostumarei. Sou médico, lastimo as derrotas da ciência.

POMPEU – Pois o meu vizinho litopata não é assim. Acaba de ver expirar um doente e vai logo para um jantar ou para o teatro, e o mais é que é faceto de muito espírito. Nada compunge aquele coração.

FIRMINO – Pois eu não sou assim.

POMPEU – E manda logo no outro dia a conta à casa. Há de ficar rico, sabe o nome aos bois. Prometeu-me uma boa soma de votos. Quis mascar um pouco com o seu nome, mas eu lhe disse que o senhor doutor era um grande partidista da liberdade das ciências e de uma generosidade fora do comum. Ainda ontem mandou ele citar uma viúva e disse-me que se lhe não pagar as visitas já e já, há de lhe fazer penhora nos móveis da casa.

FIRMINO – Não nasci para ter escritório de enterros; não posso ajustar mortalhas com viúvas desgrenhadas e filhos inconsoláveis. Paga-me quem quer, ou quem pode. Sou médico, tenho obrigação de curar os pobres.

ADOLFO – Deixemos isso. Estás contente, estás satisfeito com as novas?

FIRMINO – Sim, senhor.

POMPEU – Seria bom que o senhor doutor escrevesse, nas horas vagas, um longo artigo. Não ofendo a sua modéstia, porque isto é natural em quase todos os candidatos que podem escrever dizendo alguma coisa mais sobre a sua pessoa, as suas obras e mesmo realçando os seus talentos.

FIRMINO – Assim tenho escrito para um país onde pouco se escreve. As minhas obras pintam o meu caráter, manifestam as minhas idéias e minhas tendências. A minha política é a da conservação do que está e o seu aperfeiçoamento. Nunca seguirei a senda do ciganismo e não nasci debaixo do malhete de um leilão. Tenho meu preço fixo, desejo ardentemente servir a minha pátria e minhas ambições não passam de ver realizados certos progressos materiais.

ADOLFO – Pois não falaremos mais nisso. Vamos trabalhar, senhor Pompeu, meu sobrinho é de nova têmpera.

POMPEU – Mas é necessário amoldar-se ao século em que vivemos.

FIRMINO – Os séculos não se fazem por si, não são obra do acaso. Pertence sua direção, quase sua confecção, aos idealistas. O exemplo de virtudes gera virtudes, assim como a corrupção gera a corrupção. Sejamos os apóstolos desta gloriosa seita e não nos importemos com o martírio. A palma do triunfo está nos céus e nas bênçãos da posteridade.

POMPEU – Tudo isso é muito bonito para a posteridade e para os céus, mas cá na terra é necessário cavar de enxada e preparar o terreno. Quem aspira a entrar para a urna eleitoral deve saber vi­ver, e não preferi[r] sempre o ar do dia ao da noite. Também refresca, meu rico senhor. Os atalhos, inda que às vezes escabrosos, conduzem sempre com mais prontidão ao ponto, e este mar de eleições tem às vezes suas ressacas, que esbandalham a igrejinha. A urna eleitoral é de ouro, e nada se deve fazer para desampará-la, porque os votinhos não caem do céu.

FIRMINO – Eu não vou contra a maior parte das suas máximas, já que elas são aceitas pelos homens, mas repugno a um manejo que vai de encontro ao meu caráter e aos meus princípios. A urna elei­toral, obtida assim, já não é um padrão de glória, mas uma urna funérea, aonde se encerram as cinzas do amor da pátria e da honra individual.

ADOLFO – Está bom, adeus. Estás muito fúnebre.

POMPEU – Conserve o seu caráter. Essa sua independência também abre uma carreira lucrosa.

FIRMINO – Meus senhores, eu estou hoje muito melancólico. Obrigado por tantos favores. Às suas ordens.

Cena XI[editar]

FIRMINO

[FIRMINO] – Bem disse um político que o homem de estado deve ter cabeça e não coração. A posteridade é as mais das vezes injusta para com os homens sensíveis. Ela só requer fatos estrondosos, anais de pedra e cal, e inteiro esquecimento do mundo interno do coração. Só pertence aos poetas transmiti-lo em suas obras! E o que é a vida de homem pacífico no meio da vida turbulenta da humanidade? Um suspiro no meio de uma celeuma, uma lágrima derramada no oceano, um sopro lançado às nuvens! Quimera... não posso resistir, é-me preciso fugir, e fugir depressa.

Cena XII[editar]

FIRMINO, ANTÔNIO e DONA CLARA

ANTÔNIO – Meu amigo, tanto eu como tua tia forcejamos para decidi-la a partir esta madrugada... Ela pede mais três dias de cidade, e meu irmão não pode esperar: quer assistir à primeira moagem. Hoje devem começar o primeiro corte de cana e o novo engenho do Roca d’Ouro tem de ser bento, e tu sabes que Adolfo não é homem que pactue com circunstâncias fortuitas para abandonar seus máximos deveres.

FIRMINO – Tenha-se tudo pronto. Quando chegar a hora da par­tida, não resiste, e eu irei com ela muito além da Pavuna.

ANTÔNIO – Muito estimo, não só por ela como por Arnaud, que, segundo me disse o meu guarda-livros, levou toda a noite a passe­ar no seu quarto, chorou e hoje está mais que sombrio. Pobre rapaz! Vê alongar-se o dia do seu consórcio.

DONA CLARA – Do que serve chegar um navio da Índia, vender-se toda a carga e ficarem cinqüenta contos livres de despesa?

FIRMINO – Muitos parabéns, meu tio.

ANTÔNIO – Isto é nada quando se trata da prosperidade moral. Do que me serve uma firma que vale milhões, se não tenho prazer? Bem sei que meus filhos não mendigarão, mas esta fortuna quero-a dividir também contigo e Arnaud. Contigo, porque és meu filho, com Arnaud porque me tem, de alguma sorte, ajudado a ganhá-la.

FIRMINO – Meu tio, já vos devo a maior das fortunas: a minha profissão.

DONA CLARA – Isto que teu tio diz é o que eu sinto igualmente.

FIRMINO – Mas voltando a Angélica... é melhor não contrariá-la e deixá-la esperar os três dias.

ANTÔNIO – E teu tio que não espera...

DONA CLARA – A ser assim, vou eu e Gustavo acompanhá-la.

ANTÔNIO – E o que faz esse rapaz, que ainda hoje o não vi? Anda pelos tais deboches de bom-tom? Bailes, passeios, ócio, despesas, como poderá ser ele um homem? Estou já cansado e já fiz um plano. Tomara que o tempo chegue, porque hei de dar um exemplo às famílias e mostrar que, se meu filho é mau, é porque Deus o quer. Não compreendo um moço que vive a podar as barbas como se fosse uma parreira, nem que uma casa prospere quando o dono só pensa em modas, gavotas e minuetes modernos. Fui rapaz, meu pai era bastante severo, mandou-me ensinar a dançar, um pouco de música, duas línguas para o comércio, mas nunca fiz vida de morcego. Nada, hei de cortar isto de repente.

FIRMINO – Com prudência, meu tio. O tempo é ouro e não deve­mos desprezá-lo. Minha tia, apronte tudo para a viagem, porque eu prevenirei pela minha parte o que devo. Na fazenda está o doutor Anselmo, a quem escreverei uma longa carta, marcando-lhe o tra­tamento que sigo, e ele o continuará durante o tempo da minha viagem. Fomos colegas.

DONA CLARA – Essa é de um dia.

FIRMINO – É outra. Quero ir a Santa Catarina por este primeiro vapor. Tenho que acabar um tratado sobre várias plantas, quero ver as minas de carvão e...

DONA CLARA – E o vosso casamento?!

FIRMINO – Logo que me case com a... sua filha... perco uma grande parte da minha liberdade, e tinha dado palavra de acabar a obra antes de me casar. Demais, a saúde de Angélica carece de tempo e ainda temos que esperar.

ANTÔNIO – Bravíssimo, disseste como um nobre negociante. A tua palavra é tudo. Quero dois felizes no mesmo dia, isto é, quero três, porque hei de remoçar vinte anos.

DONA CLARA – E eu nada sou neste mundo, nem suas filhas?

ANTÔNIO – Pelos homens respondo eu, pelas senhoras responda a minha bela e incomparável esposa.

DONA CLARA – Não se ponha com essas graças.

ANTÔNIO – Disseste bem, o tempo é ouro. Apronta-te para as viagens, vê o dinheiro [de] que precisas, pede-o a Arnaud. Eu contigo não tenho contas nem cerimônias. As tuas encomendas de ferros e livros já foram para a Europa, e espero não me recuses uma carta de ordens para Santa Catarina. É sempre bom.

FIRMINO – Obrigadíssimo. Como médico, sempre ganho para as despesas da viagem.

ANTÔNIO – Bravíssimo. Aproveitar as circunstâncias, tirar um partido honroso delas. Enquanto à eleição, tudo vai bem. Assim fosse o país inteiro. Vejo tudo muito sombrio e carregado.

DONA CLARA – Pois ainda mais livros e ferros?

FIRMINO – Os ferros gastam-se e quebram-se no exercício, e uma biblioteca nunca se farta de livros.

ANTÔNIO – Firmino tem que fazer. Vamos, senhora.

Cena XIII[editar]

FIRMINO

[FIRMINO] – Bom homem, tipo da integridade. Algarismos no seu comércio e coração no centro de seus amigos. Assim era meu pai... meu bom pai. Um dia o tornarei a ver. (Vai para a biblioteca) Humboldt, sim; Cuvier e Richard também; não me esqueça Berzelius e Raspail. O menos possível, para não aumentar a carga. A minha caixa de reagentes com seus instrumentos... venham também o pai da mineralogia, e já agora mais este tratado de geologia. Vamos ler algumas páginas vivas da epopéia da criação. Que horrível situação a minha! Não, este passo não é uma ingratidão, é um mal menor que outro mal. (Ouve dentro preludiar uma harpa e cantar as quadrinhas que Angélica escrevera) Aquela voz é a de Angélica?! Ainda desconhecia mais este novo suplício! Valladolid e Goa não o desprezariam, se o conhecessem como eu. (Pega no chapéu)

Cena XIV[editar]

FIRMINO e GUSTAVO

GUSTAVO (Sem ver Firmino) – É o demônio que me persegue; tudo perdi e não...é o demônio que me tenta...

FIRMINO (Olhando para Gustavo) – Este ao menos cava a sua ruína. Eis a imagem do remorso, eis o estriamento do criminoso público.

GUSTAVO – Viva, meu primo. Como lhe vai de eleições?

FIRMINO – Otimamente.

GUSTAVO – Já trabalhei como um escravo de mouro, e agradeça-me, que tenho tudo em ordem.

FIRMINO – Obrigadíssimo.

GUSTAVO – Eu quero ir com o senhor para Santa Catarina. É terra de belas moças, que têm um feitiço fisionômico, uns olhos de gancho, capazes de devorar um homem. Eu ouvi toda a sua conversa.

FIRMINO – Não precisa ir fora daqui para encontrar isso. Olhos, mãos e pés não se encontram mais belos que os das brasileiras.

GUSTAVO – Pode ser, mas o senhor não é dos melhores juízes. Primo, leve-me em sua companhia.

FIRMINO – Eu vou andar pelos sertões e curtir fomes e frios.

GUSTAVO – Eu levarei pólvora para caçar no mato.

FIRMINO – Olhe que eu não vou dançar, percebe? E veja lá se tem coragem para abandonar as delícias da corte.

GUSTAVO – Tenho toda, isto é uma resolução imutável. Tenho razões sagradas, quero mudar de vida, quero abandonar o meu círculo de amigos por algum tempo e tornar-me independente.

FIRMINO – E o seu intento diplomático?

GUSTAVO – Para Paris é impossível. São trinta cães a um osso e, demais, dizem-me que há muito trabalho na legação.

FIRMINO – Foi o vosso protetor que vos deu essa nova?

GUSTAVO – Foi o Guilherme do armarinho, e aquele velho Tibúrcio, que mora naquela espelunca da rua do Carmo. Sabem de tudo quanto se passa dentro e fora do império.

FIRMINO – Anda a nossa diplomacia e os negócios do mundo por linhas e teias de aranhas?! Bom, e quem me afiança o seu bom comportamento? Quem me assegura que não hei de ter grandes desgostos?

GUSTAVO – Eu. Tenho olhado para os vossos conselhos como para os de um pai. Tenho seguido à risca as máximas de vossa moral, e...

FIRMINO – As máximas da minha moral?!

GUSTAVO – Sim, senhor, e o que tem a dizer contra? O que tem a exprobrar-me?

FIRMINO – Olhe que por lá não há certas casas, nem as árvores destilam o suco de certas garrafas.

GUSTAVO – Bem sei, mas eu quero emendar o passado, quero mudar de vida. Estou muito cansado.

FIRMINO – Isso é obra do momento.

GUSTAVO – Quero fugir de uma paixão que me mata, de um cancro que me devora. Vou pedir dinheiro a meu pai e quero ir em sua companhia.

FIRMINO – Não precisa, ele dá-me uma carta de ordens. Demais, a minha bolsa não tem sido sempre vossa?

GUSTAVO – É verdade, mas nesta ocasião preciso de dinheiro. Uma viagem não é um passeio. Não sabe, primo? O sapateiro negou-me o botão de brilhantes. Ameacei-o de chamá-lo ao juiz de paz, e ele teima em negar, de maneira que nada disse a minha mãe, porque ela há de ficar muito zangada. Deu-mo no dia de seus anos, e tinha a minha firma.

FIRMINO – A vossa viagem é tão verdade como a história do botão. GUSTAVO – Juro-lhe por nossa amizade e sangue que o botão...

FIRMINO – Aqui o tem. (Tira da algibeira o botão)

GUSTAVO (Disfarçando) – Dê cá, dê cá, é ele mesmo. O maldito já o tinha vendido ou empenhado por aí?

FIRMINO – Empenhado estava.

GUSTAVO (Gritando) – Hei de lhe quebrar as ventas.

FIRMINO (Olhando para Gustavo fixamente) – Vós dissestes que uma paixão vos mata e que um cancro vos devora?

GUSTAVO – Falo de uma grande paixão...

FIRMINO – Da paixão do jogo, do cancro das orgias!

GUSTAVO – O senhor me insulta em minha casa?

FIRMINO – Basta de hipocrisia... Sabeis vós o que é o jogo, o que são as orgias? A porta do calabouço que mostra o caminho do ca­dafalso.

GUSTAVO – Eu nunca joguei, não seja caluniador.

FIRMINO – Lembra-se daquele desgraçado que se suicidou? Pois eu fui chamado para vê-lo e, passando pela segunda sala, vos vi parando numa roleta... essa roleta onde se evaporam as esmolas das viúvas e das órfãs.

GUSTAVO – Isso é mentira.

FIRMINO – Mentira e calúnia, desgraçado?! Aqui está o recibo de oitenta mil-réis, valor por que foi empenhado esse alfinete ao dono da casa do jogo! Vosmecê conhece muito a letra dele...

GUSTAVO – Dê cá esse papel.

FIRMINO – Não dou.

GUSTAVO – Pois há de dar por força. (Tira um punhal) Dê cá esse papel, se não...

FIRMINO – Se não o quê? Ingrato, doido... (Gustavo fica tremendo, avança para Firmino, quer feri-lo com uma mão e tirar-lhe o recibo com a outra. Firmino segura-lhe no braço, lutam e arranca-lhe o punhal, atirando com ele de encontro a uma banca, que cai e faz um grande estrondo) Envergonha-te, louco, fraco, covarde. (Gustavo foge)

Cena XV[editar]

FIRMINO, GUSTAVO, DONA CLARA, ANGÉLICA e CÂNDIDA

DONA CLARA – O que é isto, meu Deus? Que barulho é este? O que fez aqui aquele doido?

FIRMINO – Não foi nada, minha tia.

ANGÉLICA – Um punhal no chão?!

DONA CLARA – O que é isto, Firmino?

CÂNDIDA – O primo está ferido!

ANGÉLICA – Que horror, meu Deus!!!... Gustavo...

DONA CLARA – Que vejo?!... Ó mãe desgraçada!!! Fim do terceiro ato