Angélica e Firmino/V

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Gabinete de Firmino

Cena I[editar]

FIRMINO

[FIRMINO] (Acabando de encaixotar os seus livros e pronto para mudar-se de casa. Olhando ternamente para os objetos) – Tudo está pronto, e amanhã este lugar de contemplação, este templo do estudo e da poesia será profanado pelas orgias, pelas gargalhadas satâ­nicas que o vício desatará entre o fumo e os licores. Está consuma­da a obra da hipocrisia, da covarde hipocrisia, da víbora que me envenenou e sumiu-se por entre os espinhos! Que injustiça, meu Deus, que quadro horrível! O coração humano é um globo de cristal, um monumento de vidro que estala e despedaça-se ao sopro de um menino. Se as mágoas, se a dor profunda que me punge o coração não encontrasse o poderio de minha alma, essa força celeste que me suspende no meio deste infernal precipício, já eu tinha su­cumbido... É muito, meu Deus, dai-me força, porque o ânimo me falece. O tempo, diz o velho Montaigne, é médico tardio, mas cura radicalmente todas as moléstias. Se estes incômodos domésticos, se estes quadros parciais não são proveitosos à humanidade, se não pertencem à moral eterna estas medonhas lições... o mundo é uma caverna escura de sonhos atropeladores, artefatos efêmeros, germinados pela vaidade, traçados por uma esperança horária, que surge para se enublar por entre trevas e rolar o homem no caos da desesperação! Para que serve uma reabilitação, depois que o ferro do carrasco separa o coração da mente? Do que serve a restituição dos bens quando a mortalha já envolveu seu dono e o alistou no mundo da morte? Do que serve o ouro ao moribundo?... Que importa à vítima, ao cadáver ou ao verme que habita o seu crânio, que se nutre de seu cérebro e se aviventa na sede, no sacrário onde outrora tantas harmonias a alma desprendia, onde a harpa celeste da poesia desferia esses concertos de pensamentos angélicos, esses hinos de adoração, esses êxtases, essas maravilhas que atestam a imortalidade?! Que importa à alma, que está nos céus, se uma mãe piedosa decepa os cardos, arranca o timbó venenoso que lhe encobria a campa e os substitui por flores e por louros e ciprestes?!... Acaso a boca do mundo, essa manivela que roda a esmo, que poda a virtude, que adorna o crime, que os alia, que os separa e, como um eco estulto, uma larva cega, caminha de rastros carcomendo as flores, envenenando a terra, poderá, em seus turbilhões desencontrados, em suas inconseqüências, reparar tantos danos, acrisolar sua memória, aliviar sua purificação no mundo da eternidade?!... Não, a voz do mundo é o grito da matéria, a celeuma de uma orgia continuada, onde a mão da verdade, à força de séculos, pode apenas imprimir algumas de suas máximas sagradas. A glória, a história e a posteridade são a tríplice aliança de fantasmas, de mentiras e de ingratidões. A espada que se converte em rasoura de povos, de cidades, e que marcha como um raio destruidor à frente de bandidos disciplinados; a ponta do manto que apaga da ardósia da humanidade o nome de milhões de homens, não merecem minha veneração. A mentira repetida, os fastos do crime, o desdenhoso silêncio da modéstia e da virtude, esse catálogo de infâmias, esse foro de parcialidades, é como um espelho quebrado que fraciona todos os objetos que reflete! E o que é a posteridade, esse gigante consolador das almas fracas e sonhadoras? Quais são as suas re­compensas? Uma pedra que o escultor mutila, um canhão de bronze, um instrumento de morte que se transforma em uma estátua muda, que avulta numa praça e causa a admiração dos passantes, enquanto os filhos e netos do herói, da vítima dos contemporâneos, cobertos de andrajos, fogem envergonhados desse simulacro que parece aumentar sua decadência e miséria. Deus está nos céus, Satanás está na terra! A civilização, essa ladra da liberdade, é obra do inferno, é um parto do egoísmo! O que seria este cárcere de angústias, esta tortura perpétua das almas inocentes, esta prisão dos corações expansivos, este círculo de ferro que prende a verdade em sua órbita sagrada se a palavra de Cristo não tivesse erguido o Capitólio da virtude e o prêmio da inocência?!!... Se a virgem que nascera no Calvário, de um suspiro exalado do alto da cruz, nos lábios desse Homem Deus, não viesse acobertar debaixo de seu manto sagrado tantos desgraçados, curar-lhes com seus gemidos o hino da esperança e recompensar seus trabalhos com esse triunfo de um descanso eterno?! Há vinte horas que a minha vida parecia um astro no meio dos céus, imperturbável numa órbita de harmonias, cheia de votos patrióticos, sem outros sonhos que não fosse a pátria... essa pátria muda.... Ah, que tenho dito?! Delirei! Perdoa-me, gigantesco Amazonas, perdoa-me, formosíssimo Guaíba, montanhas de diamantes, terra de ouro, tesouro de belezas, paraíso inapreciável, nos desvios de minha cólera, um momento de esquecimento, uma blasfêmia! (Abre as janelas, aparece o céu todo estrelado. Respira, passeia duas voltas na câmara, olha para o céu, pára e diz:) Por que razão não criou Deus o homem como os astros? Por que não fez este universo num éter de pureza e um espaço de luz? Por que nos deu ele tantas paixões e a triste mortalidade? O céu se mostra hoje a meus olhos mais puro e mais brilhante que ontem, e contudo minha alma não o aplaude, não o acaricia com hinos de saudação!... Os meus sonhos de ontem, os delírios da minha vida, se desvaneceram! Mas a obra de Deus tem o cunho da perfeição. A humanidade também é um astro que viverá eternamente. Ah, vós que rodais no grêmio do infinito, também sentis vossas comoções, vossas revoluções, e também desapareceis do mundo dos céus! O que tem a cólera, a vaidade, a ambição, o amor, a felicidade, a desgraça, as paixões todas, de diferente do vulcão, do cataclismo, do meteoro que passa, do astro que se abalroa e despedaça outro astro, das estações, esse círculo variado da existência universal e de todas essas revoluções que se agitam no espaço?! Umas se operam num corpo, que chamamos homem; as outras num corpo que chamamos astro. Eu e o planeta percorremos duas órbitas: a minha no infinito das idéias, a dele no infinito do espaço; a minha é curta, a dele é longa. Filhas das mesmas leis, param quando o dedo de Deus lhes acena do alto: “– Basta!”.

Cena II[editar]

ANGÉLICA e FIRMINO

ANGÉLICA – Para ambos se sumirem no caos da morte.

FIRMINO – Prima! Que vem fazer aqui neste lugar?!

ANGÉLICA – Agravar a moléstia, apressar meus dias... primo.

FIRMINO – E talvez dar o último toque a uma peripécia medonha que me causa horror, e que só de contemplar me estremeço. Uma suspeita, quando é agravada por provas tais, passa na boca do mundo por uma realidade.

ANGÉLICA – O tempo é médico tardio, mas cura radicalmente todas as moléstias.

FIRMINO – E os estragos da calúnia, as ruínas da vossa reputação?!

ANGÉLICA – A mão que escreveu um epitáfio pode apagá-lo e escrever outro. Seja eu inocente perante meus pais, o resto desprezo.

FIRMINO – Mas quando o tempo profunda as letras, são quase indeléveis.

ANGÉLICA – O mesmo tempo as consumirá de todo. Mais vale o esquecimento que o desdouro.

FIRMINO – A tradição é um líquido que se decanta de vaso em vaso por muitos séculos.

ANGÉLICA – Mas nessas transições recebe matérias que o alteram. Parte se evapora na passagem, parte fica sem valor, e tudo se some afinal.

FIRMINO – Angélica, Angélica, deixai-me pelo amor de Deus...

ANGÉLICA – Sim, eu vos obedeço. Não quero, apesar de mulher, apesar da fraqueza do meu sexo, descer à sepultura sem cortar o nó górdio que tecera o inferno. Vós me conheceis, Firmino, vós já decifrastes algumas frases do livro de minha alma, sabeis que sou inocente, que somos inocentes, que somos vítimas de... (Chora) Eu devo falar claro.

FIRMINO – Angélica, onde colheste esse sublime caráter? Quem vos dita tão celeste moral?

ANGÉLICA – O am... O meu coração. (Pausa. Olha para Firmino fixamente) E quem vos dá, senhor, essa frialdade de mármore?

FIRMINO – O amor.

ANGÉLICA – O amor?! O amor inflama.

FIRMINO – Depois que se toca o cimo da pirâmide, a marcha é descer.

ANGÉLICA – Não eu. Ficarei olhando para o sol até que seus raios me ceguem, até que perturbada me precipite de suas alturas. A morte estará na base para receber em seus braços esta vida angustiada, a terra cobrirá meu corpo e a minha memória, a minha imagem, se riscará da idéia de todos os vivos.

FIRMINO – Que injustiça ao coração humano! E dizeis-me isto em face?

ANGÉLICA – Ah, Firmino! Ou tua alma é como mármore, que tem formas e não sente, ou é um vulcão que dorme e cuja cratera aferrolha um cadeado invencível.

FIRMINO – Angélica, Angélica, retira-te por piedade, foge de mim... que eu não te posso ouvir mais...

ANGÉLICA – Eu vos obedeço. Mas, Firmino, um único favor... um único bem, uma última prova de vossa afeição. Apertai esta mão moribunda com o calor da amizade. Seja este sinal o símbolo secreto de um sonho, de uma esperança baldada... e vou morrer contente. (Firmino reveste-se de coragem, dá um passo firme e estende-lhe a mão. Angélica a aperta. Olham-se ambos, ficam mudos e está­ticos. Angélica quer largar a mão, quer ir-se. Firmino se agita pouco a pouco, começa a tremer, faltam-lhe as pernas e insensivelmente se ajoelha, beija a mão de Angélica com uma efusão expressiva. Ela treme a seu turno, quer fugir, ele a detém; separam-se, querem caminhar e ficam imóveis, olhando um para o outro) Adeus para sempre, Firmino. (Quer ir-se)

FIRMINO – Pára. Eu te amo, te idolatro como toda a natureza! (A garra na mão de Angélica) Angélica, meu anjo, eu te adoro como a saudade de minha mãe, como a lembrança de seu colo carinhoso. Todo eu sou Angélica!... A minha alma quer pensar, a minha boca quer falar... Ambos concordes, na fantasia a imagem, nos lábios o teu nome, me representam Angélica! Se no sono uma mão invisí­vel, a mão de um querubim me toca o coração, um eco interno, que parte dos seios d’alma, pronuncia Angélica... Angélica, sonho de minhas venturas, delícia inefável de minhas esperanças, astro de minha vida!... Não posso, não posso mais... Quebrou-se a cadeia que me prendia... e o amor vitorioso triunfa da minha força. (Abraça-a, ela o abraça, mas recua de horror empurrando-o)

ANGÉLICA – Ô meu Deus, que fiz eu? (Fica estática, olhando para o chão e sem poder mover-se)

FIRMINO—Angélica, Angélica, repete que me amas, ouça o mundo inteiro o decreto da minha glória, e suba aos astros o monumento de meu esplendor.

ANGÉLICA – Deixa-me. (Como em delírio) Oh! como a natureza e eloqüente, quando fala o coração!

FIRMINO – Quando amor fala. Angélica, tens força para resistir, e constância para esperar?

ANGÉLICA – Minha alma é como o universo, mas o meu corpo é como um junco abatido pelos tufões das tempestades. Tudo quando vês é o clarão extremo da lâmpada que expira! Sinto a morte passear em meus membros.

FIRMINO – Não; é a crise da esperança que luta entre os terrores do passado, é um dique de vida que se derrama em teu corpo com esse abalo medonho, é a febre da angústia que foge com suas asas de espinhos e ainda te fere a alma. Tu me pertences. Embora se sublevem mil nuvens, embora a mão do homem atravesse mil barreiras como braços de titãs, as leis são em nosso favor. Tu não serás vitima do tráfico, não serás a jóia de um tratado comercial, o algarismo de um cálculo, o penhor do egoísmo, a vítima da conveniência. (Apontando para o peito) Eis o teu sacrário; desdobra, meu anjo querido, as tuas asas diamantinas e transporta-me às regiões do céu; goteja, fonte de felicidade, o teu néctar de amor; dá-me a tua mão, a tua mão de esposa, e que este amplexo nos una para sempre e seja o laço eterno do nosso consórcio. (Abraçam-se)

Cena III[editar]

DONA CLARA, CÂNDIDA, FIRMINO e ANGÉLICA

DONA CLARA – Que vejo, meu Deus!

CÂNDIDA – Ingrata e falsa irmã, roubar-me o meu marido! (Firmino e Angélica se ajoelham aos pés de Dona Clara)

DONA CLARA – Firmino, não vos posso desculpar; sangra-me o coração o vosso proceder. Cuidei que éreis um homem de honra, mas vejo, meu Deus, que sois um desgraçado.

ANGÉLICA – Honrado como a virtude. Eu é que sou a criminosa, a desgraçada.

DONA CLARA – Não há tormentos no inferno para castigar tanta ingratidão. E tu também ousas, hipócrita, alçar a fronte em face de uma mãe que só te deu o exemplo da moral e do amor mais puro?

ANGÉLICA (Levantam-se os dois) – Minha mãe, respeite as virtudes e o amor puríssimo de meu esposo.

CÂNDIDA – De seu esposo? Que horror! E o que é ele meu?!

ANGÉLICA – Tu não nasceste para ele.

CÂNDIDA – Nem ele para ti.

ANGÉLICA – O céu decidiu em meu favor.

CÂNDIDA – Minha mãe, aceite o pedido do doutor Sandelico. Eu quero me casar com ele. Quero, nestes oito dias, e já e já, se é possível.

ANGÉLICA – Beijo-te as mãos; desligaste o voto, ele está livre... Céus, aplaudi tanta felicidade.

DONA CLARA – Goza, goza do teu delírio, futura esposa de Jesus Cristo.

FIRMINO – Para um convento?!

CÂNDIDA – Sim, meu senhor, para Santa Teresa.

DONA CLARA – Está decidido.

FIRMINO – Angélica, não temas; o farol da tolerância, o astro do progresso é precursor da geração que se eleva no Brasil. Esses cárceres do capricho paternal, esses sumidouros de tantas virgens, que poderiam ser mães e dar sábios ou heróis à pátria, serão destruídos pela mão da liberdade.

DONA CLARA – Que liberdade, senhor doutor, é essa que protege a ingratidão, que deixa na impunidade a sacrílega desobediência dos filhos, promove a desunião, a desonra das famílias, e lança na fronte veneranda dos pais o escarro da ignomínia?! Ainda que nos custe a camisa do corpo – não será preciso, ao certo – havemos de triunfar.

ANGÉLICA – Mas eu não professarei; prefiro a morte.

FIRMINO – Até certo ponto, minha tia. Angélica, constância e coragem.

CÂNDIDA – Que é muito preciso para o convento.

FIRMINO – Nunca, nunca. Deus é o protetor dos infelizes.

DONA CLARA – Eu sei em que se funda vossa arrogância. Essa e a recompensa que dais o vosso tio de vos fazer deputado. Mas antes que entreis para a câmara, Angélica será freira.

FIRMINO – Deputado, deputado, eu?! Estás salva, minha Angélica. Do alto da tribuna quebrarei os muros de ferro, a grade desses cárceres medonhos que sepultam tantas vítimas de um arrependi­mento eterno. Minha voz no parlamento será como as trombetas de Jericó: os alicerces do ergástulo da beleza, da virgem pudibunda cairão por terra com seus campanários e artesões gigantescos! No meio do estrondo das ruínas, dos gemidos do pavor, o meu braço te salvará! Não pronuncies o voto, evita um sacrilégio perante os céus e a terra, que serás minha. Não sepultes com um juramento tantos dotes, não roubes ao mundo o orgulho do teu sexo, nem risques da lista veneranda das matronas aquela que nasceu para dar filhos à pátria e educá-los nas máximas do heroísmo.

CÂNDIDA – Sim, senhor; mas ela não há de ir longe.

FIRMINO – Que importa! Seremos esposos. Angélica, se na vida, se nesta passagem de dores, os homens levantarem um oceano, eu nadarei; se cavarem um abismo, saltarei por cima; se edificarem um muro de ferro, eu o fundirei com o sopro da minha cólera; se abrirem um sepulcro, então toda a eternidade é nossa, e unidos no céu seremos mais felizes do que fomos na terra.

ANGÉLICA – Se amarrada como uma fera me conduzirem a essa casa de luto eterno, obedecerei, cederei às leis da força... Mas, ó momento de minha liberdade... Ferro, veneno, tudo emprega­rei; quero cerrar meus lábios com um acento de maldição. Imprecarei a justiça, a violência da barbaridade; do meu sangue se levantará um espectro horrível que perseguirá todos os traficantes de corações.

FIRMINO – Angélica, calma-te. As leis são em nosso favor; tua inocência te dará constância, e o teu amor, essa força sobrenatural do heroísmo. Cedo acabará o monopólio da hipocrisia, esse Valongo onde a amizade é substituída pelo interesse, o amor pelo egoísmo e a gratidão pela indiferença. Eu já vejo desmoro­nar-se esse pálido gigante da corrupção, e profundar-se nas catacumbas do passado.

DONA CLARA – Todas as vossas declamações são relâmpagos sem raio. Uma filha desobediente é um demônio doméstico; uma filha depravada é um remorso animado que persegue dia e noite seus pais; uma filha que os envergonha, que infama suas faces com o ferrete da ignomínia, deve ser lançada fora do mundo, viva ou morta, pouco importa. É um anjo numa cela, a paz na sepultura e nunca a nódoa das famílias.

ANGÉLICA – Delírio desrespeitoso, minha querida mãe! Vossas lições de moral estão intactas, vosso exemplo tenho imitado, tudo conservei até hoje. Minha mãe, minha querida mãe, não me abandone, por quem é! Eu sou inocente... Não destrua esse laço sagrado de vossa amizade e proteção, não quebre essa cadeia de amor celeste, de amor maternal; não converta o sangue numa quimera, a amizade num fantasma e o mundo num deserto! Então, desaparecerá a natureza.

FIRMINO – Orgulho do teu sexo, estrela das mulheres... Ah, tu não imprecarás teus filhos...

ANGÉLICA – Nunca abjurarei no altar da natureza. Oh! quão grata me será a primeira lágrima do fruto do meu amor, do meu filho...

DONA CLARA – Desgraçado do mundo, se os pais não pudessem enfrear os desatinos de seus filhos, se as leis não reprimissem os abusos da imoralidade, se a espada da justiça não perseguisse o abutre que se aninha no centro das famílias para devorar, à traição, a honra e a felicidade.

FIRMINO – Desgraçado do mundo se a suspeita e o capricho empunhassem o cetro das leis... Desgraçada sociedade seria aquela onde os sentimentos mais ternos estivessem sujeitos ao morgado da vontade individual, ao apanágio das conveniências! Angélica é um diamante lapidado pela Providência e encastoado pela mão dos anjos. Aqueles que o colocarem numa fronte impura, cometem um horrível sacrilégio e ofendem a justiça eterna.

CÂNDIDA – Angélica, obedece a minha mãe, não creias neste homem. Olha, o que ele me fez, logo te fará; eu não creio nestes seus discursos fingidos, nem creias no seu amor. Isto é capricho do momento!

ANGÉLICA – Ele nunca te amou, assim como Arnaud nunca me estimou. Pediu a minha mão no leito de morte, e eu cedi por piedade, e para consolá-lo. Ficou bom, viu meios de voltar, obrou como um indigno.

FIRMINO – Eu o descobrirei através do Oceano e lá irei pedir-lhe uma reparação na ponta de uma espada.

Cena IV[editar]

ANTÔNIO, FIRMINO, ANGÉLICA, DONA CLARA e CÂNDIDA

ANTÔNIO – Cumpri a minha palavra; estou no meu dever Senhor doutor Firmino, dentro de meia hora estará Vossa Senhoria nomeado representante da nação brasileira: teve a maioria no colégio da cidade e seus arrabaldes. A minha casa da rua Direita está pronta e mobiliada, pode e já e já transportar-se para ela. No mundo viveremos juntos e representaremos o papel dos esposos infelizes. No centro da família, eterna separação.

DONA CLARA – Senhor, o punhal da consternação dilacera o meu peito em extremo.

CÂNDIDA – A imprudência e o sarcasmo não podem ir mais longe. ANTÔNIO – Mas que é isto, senhora? Que mudança, que senti­mentos

tão nobres são os vossos?! Há pouco defendíeis ainda aqui o senhor!!

DONA CLARA – Preciso ver para crer. Por vossa honra, para nossa tranqüilidade, dai o castigo a quem merece.

ANTÔNIO – Eu não tenho maior castigo do que riscar da lista do coração dois ingratos.

ANGÉLICA – Meu pai, meu pai, por piedade...

FIRMINO – Tudo está pronto para eu sair; agradeço o aposento que me preparais. Eu vos esperava para vos dar um adeus, para vos agradecer tanta bondade. Meu tio, minha tia, nós somos inocentes; eu tenho dado provas de honra e de amizade.

ANTÔNIO – Senhor doutor, as nossas dívidas estão pagas. Estimarei muito que seja um adorno do parlamento e que a sua voz se levante sempre para proteger a moral e fazer prosperar o país. (Vai-se)

Cena V[editar]

FIRMINO, DONA CLARA, ANGÉLICA e CÂNDIDA

FIRMINO – Minha tia, tudo está pronto para deixar esta casa, esta habitação da grandeza e da magnanimidade. Mas antes que me retire da morada daqueles que tanto amo, e que perfumarão a minha vida com o aroma mais grato ao coração humano; antes que vossos lábios pronunciem um anátema injusto sobre aquele que foi sempre vosso filho adotivo, sobre o desgraçado Firmino, sabei que a última prova que me condena é a única do processo! O meu passado é um hino de gratidão e de amor; a minha alma era inocente, vagava nos espaços harmônicos, entre melodias, como esses pássaros das solidões dos bosques. Livre o coração, obediente à razão, ao dever, cristão na prática das máximas sagradas, vivia tranqüilo nos meus sonhos... Veio a mão de um anjo, veio uma voz misteriosa desviar-me da senda plácida e encantadora em que deslizava a vida... Lutei, lutei bastante, minha adorada tia; a alma devorei com mil angústias, e quando pensava que triunfante sairia deste horrível combate, fui vencido na última hora, e vós o vistes. Ah, minha tia, minha senhora! A natureza, por uma cadeia misteriosa, por uma força oculta, por uma linguagem silenciosa, preparou este drama, sem que nos meus lábios, nas minhas ações, quase mesmo que no meu pensamento, aparecessem outros sinais que não fossem os da estima e veneração.

DONA CLARA – E por que não recusastes a mão de Cândida? Sabeis perfeitamente que vossas vontades eram leis para nós, que noite e dia estudávamos os meios de realizar vossos pensamentos, de antecipar vossos desejos... Faltou-vos a franqueza de um homem de honra.

FIRMINO – Resisti, minha tia, resisti quanto me era possível.

CÂNDIDA – E por que não dissestes que amáveis Angélica? Seria muito melhor do que fazer-me representar este triste papel.

FIRMINO – Porque eu não sabia que a amava tanto. Obedeci a meu tio, prendi minha liberdade por gratidão, mas o meu coração se levantou como um leão desesperado, como um gigante atraiçoa­do, como Sansão, e desmoronou o monumento do passado, o trabalho de tantos anos, quando eu lhe dizia o último adeus. Estou inocente, (Ajoelha-se) Deus me ouve. Se o mundo me não perdoar, ele me perdoa. Minha tia, a sua mão, pela última vez, a sua mão. Não me recuse esta graça, se não (Tira o punhal de Gustavo) com este ferro acabarei meus dias.

TODOS – O punhal de Gustavo!!... (Grande pausa)

DONA CLARA – Firmino, aqui está a minha mão. (À parte) O punhal de meu filho!...

ANGÉLICA – Eu te ia pedir que mo desses depois, e que...

DONA CLARA – Insensata! Não me assassines com tais idéias.

FIRMINO – Vitória vou bradar, cingirei a minha fonte de louros de rosas; caminharei altivo por entre os homens. Sinto um fogo ce­leste que me abrasa!... Minha tia, esta vossa generosidade não caiu no sumidouro de um ingrato; saio de vossa casa com a vossa bênção e entrarei para ela com o vosso amor. Mas... meu tio! O meu adorado tio... Abraçado a seus pés abrandarei seu coração magnâ­nimo, com minhas lágrimas lavarei o lodo com que estou salpica­do... Minha tia, adeus; Cândida, perdoa-me; Angélica, um dia!... (Vai-se)

ANGÉLICA – Firmino, ah!... (Dá um grito estrondoso, cai numa cadeira e fica imóvel)

Cena VI[editar]

DONA CLARA, ANGÉLICA e CÂNDIDA

DONA CLARA – O que é isso, minha filha?!

CÂNDIDA – Minha mãe, olhe como ela está!

DONA CLARA – Angélica, Angélica, minha filha! Meu Deus, meu Deus! O que tem esta menina?

CÂNDIDA – Minha mãe, eu não sei o que hei de fazer...

DONA CLARA – Vai chamar teu pai, vai chamar Firmino...

Cena VII[editar]

DONA CLARA e ANGÉLICA

ANGÉLICA (Levanta-se como um espectro, com os olhos voltados para o chão, torvos e imóveis; dá um passo e recua tremendo; rola os olhos por toda a casa e não vê nada, mas parece-lhe encontrar um objeto, que fixa; passa a mão pela fronte para aclarar a vista, pestaneja fortemente, parece-lhe ver, ouvir, e diz:) Que lúgubre harmonia; que sons terríveis! É o hino da morte!

DONA CLARA – Angélica, minha filha, escuta tua mãe.

ANGÉLICA – Abre-se a sepultura! Como é funda, como é medonha! Como alvejam os ossos por entre a escuridão!

DONA CLARA – Minha filha, o que é isso? Tu estás ao pé de tua mãe!

ANGÉLICA – Uma mortalha se levanta e se abre no ar! Vem para mim, quer me cobrir!... Não, não, eu não quero morrer; sou tão moça!... Mas que véu é este? Quem é que mo lança sobre a cabeça, quem mo espalha sobre as espáduas?!

DONA CLARA – Cândida, Cândida, chama o Firmino, chama teu pai... Chama o teu pai... chama o Firmino.

ANGÉLICA – É Firmino, ouvi a sua voz; é ele... Oh! que luz é esta que se derrama com tanta suavidade? Que círios são estes? Sim, lá vejo... muito ao longe... lá está o altar, a coroa do himeneu, os votos do meu esposo, e Firmino como um anjo de felicidade, resplendente de luz, sorrindo-se, estendendo-me a sua mão querida... Eu vou, eu vou...

O destino voltou a negra página

No meu livro da vida! Mão celeste

As trevas rechaçou, que enegreciam

O ergástulo medonho de meus dias.

Oh! que voz, que suave melodia,

Expande o céu, perfuma de ambrosia

Tristes mochos nas ruínas

Já não ouço piar!

Sinto nova harmonia,

Novo hino entoar.

Rompe o limbo dos céus

Entre nuvens de aroma,

O meu anjo, Firmino,

Que me enastra na coma

Este límpido véu,

Do tecido mais fino;

Com rosas do céu,

De aroma divino,

A fronte me adorna;

Sorri-se mimoso,

E perlas, rubins,

No colo me entorna...

E venturoso

Aos querubins

Celeste epitalâmio ordena, e rompe:

É tudo melodia no universo!

Tangendo co’asas lúcidas

Fazem os astros rodar,

E no trono etéreo os astros

Hinos estão a vibrar.

As luzes fogem p’ra o céu

Dos círios que ornam o altar,

E vão a fronte c’roar

Do meu querido Firmino!

Mas eis que as vejo voltar!...

Ei-las, ei-las que passam, transformadas em estrelas sobre a cinta esmaltada do arco-íris!

DONA CLARA – Angélica, minha querida filha, tu deliras?!...

ANGÉLICA – Cada uma tem seu nome, oh! como é bela! Amor!... está inflamada em uma luz de sangue... parece um rubim, parece o sol no ocaso! Esta é mais branda, tem uma luz tão branca, e não muda de cor! Fidelidade, acompanhada por um anjo! Como ela voa, que sorriso de inocência reveste seu rosto! Prosperidade, prosperidade... é cor de ouro, também traz um anjo! Como em suas faces brilha o vigor, como a primavera da vida, a saúde resplende em seu semblante! Amizade! presa por uma cadeia tão longa de outras es­trelas!... Respeito, obediência!... que gravidade! (De joelhos olhando para Dona Clara) Eis o meu anjo salvador...

DONA CLARA – Sim, minha querida filha... a tua mãe, Angélica.

ANGÉLICA – Como é suave a sua voz! Como ele pronuncia o meu nome, sem ter habitado a Terra!!! Oh, como o céu é belo, que luz tão grande, que clarão que me cega! (Recua e levanta-se; tapa os olhos com as mãos, e destapando-os diz:) O meu anjo, o meu anjo! Onde está? Ali, ali... (Encaminha-se) ali alveja! Firmino! Um esque­leto! Ah! (Cai como morta)

DONA CLARA – Meu Deus, amparai uma mãe desgraçada.

Cena VIII[editar]

DONA CLARA, ANGÉLICA, ANTÔNIO, FIRMINO e CÂNDIDA

ANTÔNIO – O que é isto, senhora! Minha filha!... minha querida Angélica!... (Firmino chega-se à doente, examina-a, e com Antônio a deitam num sofá)

DONA CLARA – Doutor, doutor? A nossa Angélica...

FIRMINO – Vive, mas eu não tenho cabeça para nada. Já volto; desapertem-lhe os vestidos.

Cena IX[editar]

DONA CLARA, ANGÉLICA, ANTÔNIO e CÂNDIDA

DONA CLARA – Fria como a morte.

ANTÔNIO – Mas que teve ela?

DONA CLARA – Um delírio! Não sei como não morri de dor.

CÂNDIDA – Se lhe desse água-de-colônia a cheirar?

DONA CLARA – Sim, tens razão; vai buscar.

ANTÔNIO – Não, porque Firmino o teria feito. Esperemos.

DONA CLARA – Que horrível drama em nossa casa, senhor Antônio! Como sua alma não terá sofrido!

ANTÔNIO – Tudo está esclarecido. Firmino é um homem de honra, Arnaud um hipócrita e Gustavo um filho desgraçado.

DONA CLARA – Que diz, senhor Antônio?! Conte-me tudo, por­que eu morro...

ANTÔNIO – Aí vem Firmino.

Cena X[editar]

FIRMINO e um MÉDICO VELHO [e DONA CLARA, ANTÔNIO e CÂNDIDA]

FIRMINO – Aqui a tem, senhor doutor.

MÉDICO VELHO – Deus esteja nesta casa. (Vai para Angélica, examina-a; Firmino beija a mão de Antônio, e Dona Clara encosta-se ao leito) Não lhe sinto pulso, a face está decomposta, o frio da morte gira por todo o seu corpo.

DONA CLARA – Meu Deus, que ouço! (Abraça-se com Antônio) Já não temos a nossa filha, a nossa querida Angélica.

ANTÔNIO – Como o prazer se tornou a converter em dor! Firmino, em vez de apertar nos braços a sua esposa, encontra um cadáver. Não sei como não morro.

CÂNDIDA – Minha pobre irmã, eu te perdôo.

MÉDICO VELHO – Se tentássemos uma sangria?

FIRMINO – Não sou do seu voto, meu colega. Angélica não está morta; é impossível que um anjo morra. Uma criatura celeste, como poderia acabar assim repentinamente? Seria uma injustiça, e Deus é justíssimo.

MÉDICO VELHO – Então o que pensa? Não lhe ocorre alguma meio? Porque eu vejo o caso perdido.

FIRMINO – A desesperação me perturba.

DONA CLARA – Pois, meu Deus, a arte de curar é tão impotente, que não pode atalhar a morte?!

MÉDICO VELHO – Só Deus o pode; nós fazemos o que podemos. Colega, eu vou tentar-lhe a sangria.

FIRMINO – Oponho-me, meu colega, oponho-me; sinto uma voz interna, um pressentimento que me diz: “Tu inda abraçarás a tua esposa, a tua nobre Angélica.” Uma inspiração! É Deus quem me protege. (Vai a uma de suas malas, tira um estojo, abre-o, tira um vidro, entrega-o a dona Clara) Minha tia, já e já esfregue-lhe no lado do coração, e com esta escova faça-lhe uma fricção nos braços e no peito. É um específico maravilhoso.

DONA CLARA – Vós podereis... ajudar-me.

FIRMINO – Minha prima que o faça; não posso, não devo, não tenho forças nem cabeça. Dê-lho a cheirar primeiramente. Mas não; devo ser eu, devo ser o próprio, o primeiro a recolher o seu suspiro de vida, a espelhar-me nos seus olhos; a delirar no meu sorriso, a ouvir a sua primeira palavra. (Toma o vidro de d. Clara, vai ao sofá. Todos se chegam e Firmino encosta-lhe o vidro no nariz)

MÉDICO VELHO (À parte) – Está bem aviado. Tenho lido e relido Cullen, o Vademecum, o meu adorado Plenck; nunca encontrei remédio para a morte. Esse elixir da moda é das tais modernices que engodam os papalvos. Está morta e mais que morta, ou eu sou um grande...

FIRMINO – Respira!

DONA CLARA – Outra vez!

CÂNDIDA – Agora foi mais forte!

ANTÔNIO – Moveu os lábios!

MÉDICO VELHO – O que é isso, o que é isso lá?!

FIRMINO – Abriu os olhos! Retirem-se. (Firmino a sustenta, e ela assenta-se, olha para todos, que limpam as lágrimas de prazer)

MÉDICO VELHO (À parte) – Sabe fingir morte perfeitamente; é como se pode explicar este fenômeno. Já ouvi dizer que um coronel inglês fizera o mesmo, mas tanto fez, que se foi.

FIRMINO – Angélica!

DONA CLARA – Minha filha!

ANGÉLICA – Como estou aqui?! Pois eu não me assentei ali?! Pois Firmino não me disse adeus? Não se separou de mim? Não me disse “Angélica, um dia!”?

FIRMINO – Tudo é verdade, assim como o que estás vendo.

DONA CLARA – Senhor Antônio, eu vou dizer-lhe as vossas novas determinações.

FIRMINO – É cedo ainda.

MÉDICO VELHO (À parte) – Charlatanismo. Ela não tinha nada, isso eu logo vi apenas entrava pela sala. Meus senhores, boa-noite, eu já não sou preciso. Colega, não tinha a fortuna de o conhecer e admirar os seus talentos.

ANTÔNIO (Metendo-lhe um embrulho de dinheiro na mão) – Senhor doutor, mil vezes obrigado por tanto favor; esta casa está às suas ordens.

MÉDICO VELHO – Fui chamado por um colega...

ANTÔNIO – Eu é que sou o dono da casa; espero da sua delicadeza que não me desfeiteis.

MÉDICO VELHO – Fiat voluntas tua.

FIRMINO – Meu colega, muito obrigado pelo incômodo.

CÂNDIDA – De que museu viria este lagarto? (Vai-se o médico)

Cena XI[editar]

ADOLFO, GUSTAVO, FIRMINO, ANTÔNIO, DONA CLARA, ANGÉLICA e CÂNDIDA

ADOLFO – Aqui o trago apadrinhado. Todo eu sou um composto de boas novas, uma trombeta de alegria. Então, vencemos ou não? Mas que tem esta menina, teve algum incômodo grave?

DONA CLARA – Um ataque muito forte; mas passou, graças a Deus.

GUSTAVO (Ajoelhando-se aos pés do pai) – Perdoe-me, meu pai, eu sou culpado. Minha mãe, perdoe-me porque estou arrependido.

ADOLFO – Vamos aos outros, como prometeste; quero isto em pratos limpos.

GUSTAVO – Meu primo...

FIRMINO – Meu irmão. (Aperta-lhe a mão) ANGÉLICA – Seu irmão? Que ouço?


GUSTAVO – Angélica, não te caluniei, não, na minha carta; julguei que o primo havia divulgado o meu segredo... Cri Arnaud, é verdade, fui um desgraçado.

FIRMINO – E o que é feito desse monstro? Perdoa-me, Angélica.

ADOLFO – Tomou o nome de monsieur de Naudar, e fugiu em regra.

FIRMINO – Infame.

ANGÉLICA – Gustavo, meu irmão, não jogues mais; dá-me um abraço... Eu te quero tanto bem.

ANTÔNIO – Senhores, eu também ofendi Firmino; também fui acessível à intriga de um refinado hipócrita, de um homem que me soube enganar dia e noite por alguns anos, e devo uma reparação ao senhor doutor Firmino. Esta reparação é a sua união com Angé­lica, o título de meu filho e cem contos de réis para seus alfinetes. Gustavo, tenho cumprido um dever. Sabes tu o que é um jogador?

GUSTAVO—Meu pai...

ANTÔNIO – O jogador é a peste da sociedade, o cancro das famílias. A roleta e o punhal são os diplomas que elevam o homem ao cadafalso... filho desgraçado...

ANGÉLICA (Correndo e tapando a boca do pai com uma mão e abraçando-o com a outra) – Perdão, perdão, meu pai, ele se há de arrepender; perdão neste dia de júbilo, nesta hora de vida, neste momento de aliança eterna. Meu caro pai, minha querida mãe, meu tio, minha Cândida, entreguem-me a mão de Firmino, seja eu sua esposa um momento, pouco me importa a vida. (Firmino se chega, e dona Clara, segurando-lhe na mão, a põe sobre a de Angélica) Agora só me resta implorar um perdão, minha querida mãe, do que há pouco disse... Lembra-me que na minha desesperação... Ah! minha querida mãe... não se recorde mais disso e tu, Cândida, perdoa a tua irmã... Sim, perdoa-lhe... A boca excedeu muito além do coração.

FIRMINO – Esta hora é minha, e o inferno não ma pode arrancar. (Para Angélica) Tu que, envolta no manto da inocência, respiravas a fragrância do lírio da pureza, virgem donosa, meu anjo de candu­ra, aceita a minha mão... Ah! se eu tivesse uma alma tão grande como o universo, uma adoração tão santa, tão profunda como os justos perante o Criador... Se eu tivesse o gênio de Homero, a força de Sansão, o pincel de Rafael, a espada de Napoleão, a formosura de um anjo, então eu era digno de ti, que só és capaz de ser amada por um coração tão grande como o meu!

DONA CLARA – Deus escreve direito, mesmo por linhas tortas.

ANGÉLICA – Eu sinto aqui no peito uma coisa, sinto em minha alma um novo universo, vejo uma nova luz, que só poderia ser pro­ferida por uma nova linguagem. Firmino, tu és um grande homem.

ANTÔNIO – A verdade é o ponto que deve marcar o barômetro da vida em todas as ocasiões. Sinto um peso no coração, sinto um remorso que me embarga todo o prazer. Firmino, as vossas curtas palavras foram um raio do céu, que veio rasgar essa nuvem pejada de sugestões pérfidas, manobradas por um homem que sabe enredar, e cujo frio caráter, mansidão na voz, fingida modéstia, eram capazes de enganar um anjo! Esta carta que hoje recebi dele, e esta que Gustavo lhe escrevera em resposta de uma sua, e que ele – pérfido! – teve o cuidado de me enviar...

GUSTAVO – Meu pai, foi ele, foi Arnaud que me disse tudo isso; eu aqui tenho outra longa carta que ele me escreveu, aqui está ela...

ANTÔNIO – Aqui estão, Firmino... e... perdoa-me.

FIRMINO – Eis o seu uso. (Rasga-as) Se eu pudesse fazer o mesmo... Minha tia, perdoe-me aquelas palavras, aqueles discursos de um homem apaixonado; eu já pedi perdão a Deus de minhas blasfêmias, de me haver precipitado como um louco contra o asilo da virtude, contra o remanso da santidade. Cândida, perdoa-me...

DONA CLARA – Que barulho é este pela escada?!

FIRMINO – Ouço um grande tropel!

ANTÔNIO – Quem será?

Cena XII[editar]

FIRMINO, ANGÉLICA, ANTÔNIO, ADOLFO, DONA CLARA, GUSTAVO, CÂNDIDA e POMPEU

(Pompeu fica parado na porta, tendo uma salva de ouro com uma coroa de louros em cima; muitas pessoas vestidas decentemente o acompanham)

POMPEU – Augusto e digníssimo senhor Representante da Nação Brasileira, dá licença?

FIRMINO – Podem entrar, meus senhores.

POMPEU – Em nome dos nossos amigos, dos nossos aliados, do Partido Conservador, vos venho oferecer esta coroa. Seja a vossa missão edificar, seja a vossa carreira um manancial de prosperidade, e os vossos talentos os títulos de vossa glória. Aceitai estes louros como o prognóstico, como o símbolo de vossos futuros triunfos.

FIRMINO (Dando a coroa a Angélica) – A esposa do cavalheiro é a guarda de seus louros. Meus senhores, a minha missão será a de um idealista. Neste dia triunfal, de amor e de glória, começa uma nova vida, a estréia de um mundo que será repartido entre a pátria e a esposa. Não me falta entusiasmo, não me falta coragem. Trabalharei com aquele fanatismo patriótico que sinto abrasar-me, sem ter glória em ser senhor, sem ter honra em ser escravo. Realizarei minhas promessas, e assim o não fizer, seja eu indigno da pátria e indigno de Angélica.

POMPEU – Viva a prosperidade do império do Brasil!

TODOS – Viva, viva, viva!!!

(Toca o hino nacional, no fundo do Teatro, e todos se abraçam de contentes) Fim do quinto e último ato