Antes que cases.../II

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Uma noite, era em 1867, subia Alfredo pela Rua do Ouvidor. Eram oito horas; ia aborrecido, impaciente, com vontade de se distrair, mas sem vontade de falar a ninguém. A Rua do Ouvidor oferecia boa distração, mas era um perigo para quem não queria conversar. Alfredo reconheceu isto mesmo; e chegando à esquina da Rua da Quitanda parou. Seguiria pela Rua da Quitanda ou pela Rua do Ouvidor? That was the question.*

Depois de hesitar uns dez minutos, e de tomar ora por uma, ora por outra rua, Alfredo seguiu enfim pela da Quitanda na direção da de São José. Sua idéia era subir depois por esta, entrar na da Direita, onde iria tomar chá ao Carceller, depois do que se recolheria a casa estafado e com sono.

Foi neste ponto que interveio o personagem que o leitor pode chamar Dom Acaso ou madre Providência, como lhe aprouver. Nada mais fortuito que ir por uma rua em vez de ir por outra, sem nenhuma necessidade que obrigue a seguir por esta ou por aquela. Pois este ato assim fortuito é o ponto de partida da aventura de Alfredo Tavares.

Havia em frente de uma loja, que ficava adiante do extinto Correio Mercantil, um carro parado. Esta circunstância não chamou a atenção de Alfredo; ele ia cheio de seu próprio aborrecimento, de todo alheio ao mundo exterior. Mas uma mulher não é um carro, e a coisa de seis passos da loja, Alfredo via assomar à porta uma mulher, vestida de preto, e esperar que um criado lhe abrisse a portinhola.

Alfredo parou.

A necessidade de esperar que a senhora entrasse no carro, justificava este ato; mas a razão dele era pura e simplesmente a admiração, o pasmo, o êxtase em que ficou o nosso Alfredo ao contemplar, de perfil e à meia luz, um rosto idealmente belo, uma figura elegantíssima, gravemente envolvida em singelas roupas pretas, que lhe realçavam mais a alvura dos braços e do rosto. Eu diria que o rapaz ficara embasbacado, se o permitisse a nobreza dos seus sentimentos e o asseio do escrito.

A moça desceu a calçada, pôs um pé quase invisível no estribo do carro e entrou; fechou-se a portinhola, o criado subiu a almofada e o carro partiu. Alfredo só se moveu quando o carro começou a andar. A visão desaparecera, mas o rosto dela ficara-lhe na memória e no coração. O coração palpitava com força. Alfredo apressou o passo atrás do carro, mas muito antes de chegar à esquina da Rua da Assembléia, já o carro subia por esta acima. Quis a sua felicidade que um tílburi viesse atrás dele e vazio. Alfredo meteu-se no tílburi e mandou tocar atrás do carro.

A aventura sorria-lhe. O fortuito do encontro, a corrida de um veículo atrás de outro, ainda que não fossem coisas raras, davam-lhe sempre um ponto de partida para um romance. Sua imaginação estava já além deste primeiro capítulo. A moça devia ser uma Mata-cavalos, chamada hoje de Riachuelo.

O tílburi parou a alguns passos.

Não tardou que a moça saísse do carro e entrasse na casa, cuja aparência indicava certa abastança. O carro voltou depois pelo mesmo caminho, a passo lento, enquanto o tílburi, também a passo lento seguia para diante. Alfredo tomou nota da casa, e de novo mergulhou-se nas suas reflexões.

O cocheiro do tílburi que até então guardara um inexplicável silêncio, entendeu que devia oferecer os seus bons ofícios ao freguês.

— V. S. ficou entusiasmado por aquela moça, disse ele com ar sonso. É bem bonita!

— Parece que sim, respondeu Alfredo; vi-a de relance. Morará ali mesmo?

— Mora.

— Ah! o senhor já ali foi...

— Duas vezes.

— Foi naturalmente levar o marido.

— É viúva.

— Sabe disso?

— Sei, sim, senhor... Onde pus eu o meu charuto?...

— Tome um.

Alfredo ofereceu um charuto de Havana ao cocheiro, que o aceitou com muitos sinais de reconhecimento. Aceso o charuto, o cocheiro continuou.

— Aquela moça é viúva e luxa muito. Muito homem anda aí mordido por ela, mas parece que ela não quer casar.

— Como sabe disso?

— Eu moro ali na Rua do Resende. Não viu como o cavalo queria quebrar a esquina?

Alfredo esteve um instante calado.

— Mora só? perguntou ele.

— Mora com uma tia velha e uma irmã mais moça.

— Sozinhas?

— Há também um primo.

— Moço?

— Trinta e tantos anos.

— Solteiro?

— Viúvo.

Alfredo confessou a si mesmo que este primo era carta desnecessária no baralho. Palpitou-lhe que seria um obstáculo às suas venturas. Se fosse um pretendente? Era natural, se não estava morto para as paixões da terra. Uma prima tão bonita é uma Eva tentada e tentadora. Alfredo fantasiava já assim um inimigo e as forças dele, antes de conhecer a disposição da praça.

O cocheiro deu-lhe algumas informações mais. Havia umas partidas na casa da formosa dama, mas só de mês a mês, as quais eram freqüentadas por algumas poucas pessoas escolhidas. Ângela, que assim dizia ele chamar-se a moça, tinha alguns haveres, e viria a herdar da tia, que já estava muito velha.

Alfredo recolheu carinhosamente as informações todas do cocheiro, e o nome de Ângela para logo lhe ficou entranhado no coração. Inquiriu do número do tílburi, o lugar onde estacionava e o número da cocheira na Rua do Resende, e mandou voltar para baixo. Ao passar em frente à casa de Ângela, Alfredo deitou para lá os olhos. A sala estava alumiada, mas nenhum vulto de mulher ou de homem lhe apareceu. Alfredo recostou-se molemente e o tílburi partiu a todo o galope.