Antes que cases.../VIII

Wikisource, a biblioteca livre

Epaminondas ouviu atentamente as queixas do primo. Achou-as exageradas, e foi o menos que lhe podia dizer, porque no seu entender eram verdadeiros despropósitos.

— O que você quer é realmente impossível.

— Impossível?

— Decerto. A prima está moça, quer naturalmente divertir-se. Por que razão há de viver como freira?

— Mas eu não peço que viva como freira. Quisera vê-la mais em casa, menos aborrecida quando está só comigo. Lembra-se da nossa briga do domingo?

— Lembro-me. Você queria ler-lhe uns versos e ela respondeu que não a aborrecesse.

— Que tal?...

Epaminondas recolheu-se a um eloqüente silêncio.

Alfredo esteve também algum tempo calado. Enfim:

— Estou resolvido a usar da minha autoridade de marido.

— Não caia nessa.

— Mas então devo viver eternamente nisto?

— Eternamente já vê que é impossível, disse Epaminondas sorrindo. Mas veja bem o risco que corre. Eu tive uma prima que se vingou do marido por uma dessas. Parece incrível! Cortou a si mesma o dedo mínimo do pé esquerdo e deu-lhe a comer com batatas.

— Está brincando...

— Estou falando sério. Chamava-se Lúcia. Quando ele reconheceu que efetivamente tinha devorado a carne da sua carne, teve um ataque.

— Imagino.

— Dois dias depois expirou de remorsos. Não faça tal; não irrite uma mulher. Dê tempo ao tempo. A velhice há de curá-la e trazê-la a costumes pacíficos.

Alfredo fez um gesto de desespero.

— Sossegue. Também eu fui assim. Minha finada mulher...

— Era do mesmo gosto?

— Do mesmíssimo. Quis contrariá-la. Ia-me custando a vida.

— Sim?

— Tenho aqui entre duas costelas uma cicatriz larga; foi uma canivetada que Margarida me deu estando eu a dormir muito tranqüilamente.

— Que me diz?

— A verdade. Mal tive tempo de lhe segurar no pulso e arrojá-la para longe de mim. A porta do quarto estava fechada com o trinco mas foi tal a força com que a empurrei que a porta se abriu e ela foi parar ao fim da sala.

— Ah!

Alfredo lembrou-se a tempo do sestro do primo e deixou-o falar a gosto. Epaminondas engendrou logo ali um ou dois capítulos de romance sombrio e ensangüentado. Alfredo, aborrecido, deixou-o só.

Tibúrcio encontrou-o algumas vezes cabisbaixo e melancólico. Quis saber da causa, mas Alfredo conservou prudente reserva.

A esposa deu ampla liberdade aos seus caprichos. Fazia recepções todas as semanas, apesar dos protestos do marido que, no meio da sua mágoa, exclamava:

— Mas então eu não tenho mulher! tenho uma locomotiva!

Exclamação que Ângela ouvia sorrindo sem lhe dar a mínima resposta.

Os cabedais da moça eram poucos; as despesas muitas. Com as mil coisas em que se gastava o dinheiro não era possível que ele durasse toda a vida. Ao cabo de cinco anos, Alfredo reconheceu que tudo estava perdido.

A mulher sentiu dolorosamente o que ele lhe contou.

— Sinto isto deveras, acrescentou Alfredo; mas a minha consciência está tranqüila. Sempre me opus a despesas loucas...

— Sempre?

— Nem sempre, porque te amava e amo, e doía-me ver que ficavas triste; mas a maior parte delas opus-me com todas as forças.

— E agora?

— Agora precisamos ser econômicos; viver como pobres.

Ângela curvou a cabeça.

Seguiu-se um grande silêncio.

O primeiro que o rompeu foi ela.

— É impossível!

— Impossível o quê?

— A pobreza.

— Impossível, mas necessária, disse Alfredo com filosófica tristeza.

— Não é necessária; eu hei de fazer alguma coisa; tenho pessoas de amizade.

— Ou um Potosí...

Ângela não se explicou mais; Alfredo foi para a casa de negócio que estabelecera, não descontente com a situação.

— Não estou bem, pensava ele; mas ao menos terei mudado a minha situação conjugal.

Os quatro dias seguintes passaram sem novidade.

Houve sempre uma novidade.

Ângela está muito mais carinhosa com o marido do que até então. Alfredo atribuía esta mudança às circunstâncias atuais e agradeceu à boa estrela que tão venturoso o tornara.

No quinto dia Epaminondas foi falar a Alfredo propondo-lhe ir pedir ao governo uma concessão e privilégio de minas em Mato Grosso.

— Mas eu não me meto em explorador de minas.

— Perdão; vendemos o privilégio.

— Está certo disso? perguntou Alfredo tentado.

— Certíssimo.

E logo:

— Temos além disso outra empresa: uma estrada de ferro no Piauí. Vende-se a empresa do mesmo modo.

— Tem elementos para ambas as coisas?

— Tenho.

Alfredo refletiu.

— Aceito.

Epaminondas declarou que alcançaria tudo do ministro. Tantas coisas disse que o primo, sabedor dos carapetões que ele pregava, começou a desconfiar.

Errava desta vez.

Pela primeira vez Epaminondas falava verdade; tinha elementos para alcançar as duas empresas.

Ângela não perguntou ao marido a causa da preocupação com que ele nesse dia entrou em casa. A idéia de Alfredo era tudo ocultar à mulher, pelo menos enquanto pudesse. Confiava no resultado dos seus esforços para trazê-la a melhor caminho.

Os papéis andaram com uma prontidão rara em coisas análogas. Parece que uma fada benfazeja se encarregava de adiantar o negócio.

Alfredo conhecia o ministro. Duas vezes fora convidado para lá tomar chá e tivera além disso a honra de o receber em casa algumas vezes. Nem por isso julgava ter direito à pronta solução do negócio. O negócio, porém, corria mais veloz que uma locomotiva.

Não se haviam passado dois meses depois da apresentação do memorial quando Alfredo, ao entrar em casa, foi surpreendido por muitos abraços e beijos da mulher.

— Que temos? disse ele todo risonho.

— Vou dar-te um presente.

— Um presente?

— Que dia é hoje?

— Vinte e cinco de março.

— Fazes anos.

— Nem me lembrava.

— Aqui está o meu presente.

Era um papel.

Alfredo abriu o papel.

Era o decreto de privilégio das minas.

Alfredo ficou literalmente embasbacado.

— Mas como veio isto?...

— Quis causar-te esta surpresa. O outro decreto há de vir de aqui a oito dias.

— Mas então sabia que eu...?

— Sabia tudo.

Quem te disse?...

Ângela titubeou.

— Foi... foi o primo Epaminondas.

A explicação satisfez Alfredo durante três dias.

No fim desse tempo abriu um jornal e leu com pasmo esta mofina:

Mina de caroço,

Com que então os cofres públicos já servem para nutrir o fogo no coração dos ministros?

Quem pergunta quer saber.

Alfredo rasgou o jornal no primeiro ímpeto.

Depois...