Ao Correr da Pena/I/V
Rio, 15 de outubro
Encontram-se às vezes na história da humanidade certas coincidências tão notáveis, que parecem revelar uma lei fatal e misteriosa, um elo invisível que através dos anos e dos séculos prende entre si os grandes acontecimentos.
O tempo, dizia Píndaro, é o oceano imenso sobre o qual navega a humanidade. Quem sabe se, como o marinheiro lançado sobre a amplidão dos mares, batido pelos ventos e pelas tempestades, o gênero humano não percorre os caminhos já trilhados, e não atravessa as idades revendo na sua torna-viagem as mesmas plagas, os mesmos climas?
O espírito se confunde desde que intenta perscrutar tão altos arcanos, e se perde numa série de pensamentos elevados, como os que me assaltaram quando me pus a refletir sobre os destinos do dia 12 de outubro, que marca época nos anais do mundo, da América e do Brasil.
Quando se desdobra esta página do calendário, e se volve os olhos para o passado, vê-se surgir entre as sombras das gerações que morreram dois grandes vultos de heróis, que separados por mais de três séculos, parecem estender-se a mão por sobre o espaço, como para consolidar a sua obra.
No mesmo dia um descobriu um novo mundo, o outro fundou um grande império. Um chamava-se Colombo, o outro era Pedro I. Dois nomes que por si só valem uma história.
Entretanto a América e o Brasil deixaram-nos escritos apenas nos livros, como uma simples recordação; e, tomando um nome de empréstimo, nem ao menos copiaram no mármore ou no bronze aquela página de tantas glórias.
O viajante do velho mundo, que contemplou as pirâmides do Egito, as ruínas do Partenon, as abóbadas do Coliseu, os obeliscos e os arcos de triunfo, monumentos de um século, de um povo, ou de um rei somente, não encontra nas plagas americanas nem sequer o nome desse semideus que criou um mundo!
Apenas a espaços, uma palavra perdida, uma exprobração amarga, e mesmo alguns esforços infrutíferos para levar a efeito a idéia de um monumento a Colombo e de uma estátua a D. Pedro.
Tudo isto, porém, passa no turbilhão das idéias que servem de pasto a uma agitação momentânea, e nada resiste a esse esquecimento fatal e prematuro. Dir-se-ia que o presente, temendo ser ofuscado por tão grandes feitos do passado, como que receia transmiti-los às gerações futuras.
Mas o eco das idades, esse brilho que ilumina os séculos, e a que o mundo chama a glória, não há forças que o abafem. Através do tempo ouve-se ainda e sempre esse sublime diálogo que formam, como diz L'Hermenier, as relações do gênio com a humanidade.
Assim, aqueles dois grandes vultos, que parecem perdidos nas sombras do passado, se refletirão com todo o seu brilho na posteridade, principalmente quando o primeiro tem para desenha-lo a pena de um homem como Lamartine, e o outro a história de uma nação como o Brasil.
Talvez que então, quando a marcha dos tempos tiver desvendado altos mistérios do destino, a humanidade possa compreender esse elo invisível que prende dois acontecimentos tão remotos, essa relação inexplicável entre dois homens, essa coincidência providencial de duas revoluções que em épocas diferentes se realizaram no mesmo dia.
Quem sabe se o fato que veio depois de três séculos não era o complemento e o remate do primeiro? Quem sabe se D. Pedro I não foi o continuador de Colombo? Quem sabe se a fundação do Império do Brasil não devia ser uma condição essencial nos futuros destinos da América?
Estes pensamentos nos levariam muito longe, muito além do presente, e nos fariam esquecer que nestas páginas somos o homem do passado, o simples cronista dos acontecimentos de uma semana. Deixemos, portanto, as altas elocubrações, e voltemos aos fatos da atualidade.
Falávamos de gênio, de talento, de glórias passadas e destinos futuros. O presente não é menos fértil em qualquer destas coisas, sobretudo em talento.
O talento! Divinae particulam aurae! Não há nada como o talento. Riquezas, honras, nascimento, nobreza, nada disso vale uma pequena dose daquela inspiração divina. Só ela tem o privilégio da divindade, o dom de criar e inventar.
Se duvidam do que estou dizendo, tomem qualquer jornal da semana, e corram-lhe os olhos, que terão a prova desta minha asserção.
O cólera-morbo andava muito sossegado lá pela Europa e nem sequer ainda se tinha lembrado de escrever o Brasil no seu itinerário ou jornal de viagem, quando um homem de talento necessariamente, teve a feliz idéia de afirmar que a moléstia já estava em caminho e não tardaria a chegar.
Imediatamente fez-se uma revolução, e tivemos uma verdadeira epidemia de cólera-morbo in nomine. Não se falava em outra coisa; não se escrevia sobre outro assunto. Os médicos dissertavam largamente, os profanos gracejavam ou discutiam, a Câmara Municipal trabalhava, e a Academia de Medicina fazia sessões públicas.
Ouvi queixar-se muita gente que de todas essas luminosas discussões nada se concluía; creio porém, que estão mal informados. Se fossem ao escritório de qualquer das folhas diárias desta corte, haviam de ver entrar para a caixa a conseqüência lógica e verdadeira de toda esta argumentação - a paga das correspondências e publicações a pedido.
A epidemia foi tal, que até foram bulir com a pobre gramática, que estava bem sossegada, e chamaram-na a campo para decidir se o cólera-morbo era masculino ou feminino.
Não me devo meter em semelhante questão; mas, a falar a verdade, prescindindo da gramática, creio que aqueles que dão ao cólera o gênero feminino têm alguma razão, por isso que os maiores flagelos deste mundo, a guerra, a morte, a fome, a peste, a miséria, a doença, etc., são representadas por mulheres.
E o que torna-se mais notável ainda é que os gregos, gente sempre tida em conta de sábia, quando inventaram os seus deuses, fizeram homens Apolo e Cupido, e para mulheres escolheram as Parcas, as Fúrias e as Harpias.
Se as minhas amáveis leitoras não gostaram desta razão, que acho muito natural, chamem a contas os pintores e os poetas, que são os autores de tudo isto. Quanto a mim, não tenho culpa nenhuma das extravagâncias dos outros, e até estou pronto a admitir a opinião do meu colega A. Karr, que explica aquele fato pela razão de que as senhoras são extremos em tudo, tanto que as mais belas coisas deste mundo são também significadas por mulheres, assim como a beleza, a glória, a justiça, a caridade, a virtude e muitas outras que, como estas, não se encontram comumente pelo mundo, mas que existem no dicionário.
Ora, à vista da razão que apresentei, parecia que não devia haver mais dúvida sobre o gênero do cólera; porém o argumento do -h-, que ainda não tinha lembrado aos gramáticos antigos e modernos, veio mudar a face da questão. Homem, que é o símbolo do gênero masculino, começa por -h-; logo, desde que o cólera for escrito com -h- é masculino. A isto não há que responder; e por conseguinte, à vista de um tal argumento, persisto na minha antiga opinião.
Apesar de todas estas discussões interessantes com que se procura entreter o ânimo público, à noite os dilettanti não deixam de se encaminhar para o Teatro Lírico, embora tenham muitas vezes o desgosto de esbarrarem com o nariz na porta fechada, como sucedeu segunda-feira.
Disseram que a Charton estava um pouco incomodada, o que bem traduzindo quer dizer que não tinha nada absolutamente.
Ora, admitindo mesmo o caso do incômodo, desejava sinceramente que os espíritos dados às altas e importantes questões de utilidade pública, como sejam as do gênero do cólera, do contágio da moléstia, da sua antiguidade, etc., me elucidassem, por meio de uma discussão esclarecida, um ponto muito duvidoso para mim: e é se as primas-donas têm o direito de adoecerem em dia de representação, e deixarem-nos desapontados sem sabermos o que fazer da noite.
Na minha opinião entendo que uma prima-dona, quando muito, tem unicamente o direito de adoecer na véspera, a tempo de se publicar o anúncio da transferência do espetáculo; e, quando quiser adoecer no mesmo dia, então deve adivinhar de véspera que na noite seguinte estará incomodada, a fim de se prevenir o público, e evitar-lhe uma desagradável surpresa.
Felizmente o incômodo da Charton foi passageiro, e as soirées Líricas continuaram sem mais transferências até sexta-feira, em que nos deram a Semiramide, em benefício da Casaloni. A noite foi ruidosa: aplausos, rumor, flores, versos, brilhantes, houve de tudo, até mesmo uma pateada solene. Foi por conseguinte uma festa completa.
Para fazer diversão à música italiana, ofereceram-nos, sábado da semana passada, no Teatro de São Pedro, um outro benefício de música alemã clássica, no qual os entendedores tiveram ocasião de apreciar coros magníficos a três e quatro vozes, e de gozar belas recordações dos antigos maestros, hoje tão esquecidos por causa das melodias de Rossini e Donizetti e das sublimes e originais inspirações de Verdi e Meyerbeer.