Ao Correr da Pena/I/XXIV
Rio, 25 de março
Hoje é o dia do aniversário da nossa constituição, e ontem o Teatro Lírico representou um baile intitulado o Remorso. Se foi uma simples coincidência, ou um epigrama, não sei; o tempo não está para graças, e por isso não se pode com facilidade aventurar conjeturas.
Já houve um tempo em que, de fato, o dia de hoje devia ter sido o dia do remorso para o governo, para as autoridades, para o menor empregado de polícia; todos haviam perjurado, todos, por sede de mando ou por um espírito exagerado de reforma e progresso, haviam desrespeitado a constituição.
Felizmente passou esta quadra de tristes conseqüências para o país, e chegamos a uma época de adormecimento das paixões políticas, de inércia dos partidos, de calma nos espíritos, que, bem dirigida, pode ser aproveitada em grandes melhoramentos de que o país necessita, em excelentes reformas da legislação e de muitos outros ramos de administração.
Mal dirigida, porém, a situação atual há de caminhar rapidamente para uma crise tanto mais forte, tanto mais violenta, quanto foi profundo o letargo dos espíritos e a prostração proveniente da exacerbação das paixões.
Há uma febre surda que começa por abater as forças dos homens e acaba pelo delírio. Talvez que os observadores, os homens experientes e amestrados nessas oscilações políticas e sociais já tenham pressentido os primeiros pródromos, os sintomas característicos de uma próxima crise.
Entretanto parece-me que se enganam. Ainda é tempo de arrepiar caminho; e a situação atual, que começou tão rica de esperança, tão cheia de futuro, ainda tem muitos elementos que não foram sacrificados, e que, bem desenvolvidos, podem servir de programa às circunstância atuais.
Reabilite-se esta bela idéia da conciliação dos espíritos, evite-se que seja substituída por uma conciliação de interesses individuais; aceitem-se todas as adesões, mas não se suplique nem uma; chamem-se todas as inteligências a concorrer para o bem do país, mas não se exija uma transigência imoral que não pode ser duradoura; respeitem-se todas as opiniões e deixe-se a oposição inteiramente livre, porque se for leal, auxiliará o governo, se for licenciosa, se desacreditará por si mesma.
Por hoje tenho feito os meus cumprimentos à constituição, dando-lhe os bons anos, e desejando-lhe muitos séculos de vida para gosto dos seus amigos e de toda a sua família; posso, portanto, dar uma vista de olhos pelo que me vai por casa.
Data veniam ! Permiti, mestre, que ainda uma vez profane o sagrado santuário da justiça, cuja guarda vos foi confiada. Estou convertido às custas; mas, como neófito ignorante, tenho algumas dúvidas a respeito.
Que fizeram as pobres irmandades e corporações de mão=morta para pagar ao juiz de capelas e resíduos um juro de 6% de um capital que não receberam? E isto sem terem demandas nem pleitos, e somente porque o Estado julgou conveniente inspecionar as suas contas.
Ai! perdão! não me lembrava que tinha sido erro de imprensa. Santa invenção de Gutemberg! Não há nada que te pague! Com que facilidade fazes do branco preto! A pena diz o que quer: a imprensa é quem paga as custas.
Depois da descoberta do erro de imprensa feita pelo P. do Jornal do Comércio, dezenove dias depois da publicação do regimento, está me parecendo melhor é abandonar a questão das custas, porque do contrário a nossa imprensa fica desacreditada para o estrangeiro
O meio por cento do porteiro? Erro de imprensa. Os seis por cento do juiz de capelas? Erro de imprensa . Os dez contos que há de lucrar o porteiro de órfãos? Erro de imprensa. A ridicularia de estabelecerem custas de 200 rs. Até para Presidente da Relação, em vez de uma gratificação anual? Erro de imprensa.
Já estou com medo que não descubram que o título do regimento e a referenda do ministro são erros de imprensa.
Que papel ficamos nós fazendo, Sr. Conselheiro Ferraz, tendo gasto o nosso tempo a atacar apenas uns tipos trocados, e umas letras sem sentido, sem idéias!
Mas, que coisa célebre! Parece que os três jornais da corte se apostaram para errar justamente no meio por cento! E o erro foi tão imperceptível (era de cerca de dez contos anuais) que só depois de um escrupuloso exame de dezenove dias é que se deu com ele!
O próprio Sr. P., no seu artigo de quinta-feira, defendeu o erro de imprensa, iludido como nós; e só ontem é que fez a importante descoberta. Maldita imprensa! Eis a razão por que se prefere uma compilação do direito civil manuscrito, tendo-se uma em letra redonda, cujo único defeito é estar pronta.
A propósito, tomo a liberdade de pedir ao Sr. P. que assista ao curso de leitura repentina do Sr. Castilho.
Como deve saber, o curso foi aberto quinta-feira por um discurso de uma extrema simplicidade, e que talvez por esta mesma razão satisfez o auditório. Estavam presentes o Sr. Ministro do Império, o Sr. Marquês de Monte Alegre, Visconde de Itaboraí e Sapucaí, o Conselho de Instrução Pública, e muitas pessoas de distinção.
O Sr. Ministro dos Estrangeiros chegou tarde, porque foi de gôndola, segundo observaram os mirones.
Se o método do Sr. Castilho produzir vantagens reais, como esperamos, não acontecerá ao Sr. P. a mesma coisa que na quinta-feira, em que com as pressas de responder, mostrou não ter lido o meu artigo de domingo.
Onde viu o correspondente que me queixei? Onde foi que lhe pedi tempo para expor as minhas opiniões? Quando viu que me calei e fugi da questão?
A isto só uma resposta. Se o Sr. P. tem o costume de estudar, de trabalhar e escrever para a imprensa, quando um motivo grave de aflição exige todos os seus cuidados e preocupa inteiramente o seu espírito, eu o respeito como um homem forte, que não dá peso às misérias da vida humana. Entretanto considero-me muito feliz por fazer-lhe o contraste.
Quem se queixa é o correspondente, que, depois de ter comungado com as defesas impróprias de certos campeões do regimento de custas, estranha que o motejo tenha substituído a argumentação, e pede não trilhemos a senda dos declamadores políticos.
Como nos responderam? Não quero reviver uma coisa de que felizmente parece-nos que os defensores do regimento estão arrependidos; e, já que o Sr. P. quer voltar à argumentação, pedimos-lhe que discuta, mas que não veja nas censuras feitas ao regimento uma contradição com o tempo que levou a elaborar-se. Isto pode ser uma circunstância agravante contra o regimento, e nunca uma contradição.
Com o artigo do correspondente, publicado no Jornal de ontem, lemos igualmente a notícia de ter professado um frade no Convento do Carmo desta corte.
Não sabemos quem autorizou semelhante ato, sobre o qual o nosso governo desde muito tempo guarda uma prudente reserva. Pretende-se acaso reabilitar as ordens monásticas, o claustro, e faze-lo concorrer para o bem público auxiliando a instrução pública, os estabelecimentos de caridade, a catequese, ou mesmo a vigilância das prisões, como se usa em Leão?
É tarde; os últimos restos de algumas ordens religiosas que tivemos não têm regra nem disciplina, nem instrução que outrora adquiriam; e apenas vegetam entre quatro paredes, esperando o dia de sua completa extinção, que não há de estar muito remoto.
A regeneração do claustro no nosso país é uma obra impossível; alguns homens ilustres que hoje existem, como Monte Alverne, o bispo de Crisópolis e outros, são representantes ainda daqueles tempos de prestígio e de ilustração, em que a solidão do claustro era iluminada pelo fogo do céu.
Presentemente, se um ou outro moço se distingue, o que é raro, nada à clausura, e sim à sua inteligência, ao seu estudo, aos seus esforços pessoais; o frade antigo ainda pode existir, como uma velha ruína: mas a ordem, o espírito de união, o vínculo sagrado, desapareceu, e com ele, a existência dos conventos.
Se a regeneração, pois, não é possível, que explicação tem esse ato de profissão? Não descubro nenhuma; não me ocorre um motivo que possa atualmente justificar a inabilitação de um homem para os cargos públicos; a condenação de uma atividade e de um elemento de trabalho a que o país tem direito.
Para mim o frade é um tipo história, que passou como o antigo sacerdote, como os filósofos, os escolásticos, os eremitas, os cavaleiros, os maçons, e que, tendo feito o seu tempo, pertencem às lendas e às crônicas.
Não sabem quanto me pesa ter de falar contra os frades justamente na quaresma; mas não há outro remédio; e, como eu não falo contra os homens, e sim contra o burel ou a estamenha os cobre, a consciência não me acusa de pecado.
Outra coisa seria, se me desse na cabeça subir o morro de Santa Teresa, ou mesmo ir até o recolhimento da Ajuda, onde talvez me revelassem bem lindos mistérios!
Se o Sr. Ministro da Justiça quer fazer uma obra meritória, é dar a estes estabelecimentos um fim caritativo e de beneficência pública. O que lucra o país com ter uma casa para algumas doceiras presentearem as pessoas de amizade?
Ao contrário, se estes estabelecimentos pudessem criar mulheres como as Irmãs de Caridade, é fácil prever as vantagens que deles nos resultariam.
Demos um salto; e suponhamos que é chegado o domingo de Ramos, tempo em que já se pode tratar de coisas profanas. O Cassino não nos pretende dar bailes este ano?
Num tempo de tantas graças, acho que esta é demais; porém, se tal é a sua tenção, avise-nos, porque, com a febre de companhias que há, num momento se organizará uma empresa para bailes.
Vai criar-se uma de seguro geral. Não há nada melhor. Muito sujeitinho pretende segurar-se contra o casamento: os maridos vão segurar a vida da mulher na esperança de perder. De um finório sei eu que, acendendo uma vela a Deus e outra a Satanás, se propõe a segurar a oposição e o ministério; a dúvida é quanto à primeira, se aparecerá seriamente; e quanto ao segundo, se a companhia o aceitar.
Eu, se fosse a companhia, aceitava com algumas cláusulas e reservas, como, por exemplo, repelindo todos os erros... mesmo os de imprensa.
Não sabeis qual o verdadeiro erro de imprensa? Foi o de censurar o tal regimento de custas; foi o de discutir uma obra tão augusta; foi o de se ter animado a defender-se de insultos pagos policialmente.
Basta! nem mais uma palavra. Só agora é que me recordo que o ministério tem estado de dor de cabeça. O Sr. Marquês de Paraná, desde segunda-feira, sofre de uma moléstia de fígado, da qual costuma ser atacado. Felizmente tivemos a satisfação de saber que S. Exª acha-se sensivelmente melhorado.
No meio de todos os contratempos que tendem a embaraçar a marcha regular da justiça no nosso país, apraz-me ver como os magistrados novos vão dando alguns exemplos de integridade e firmeza.
Não há muito tempo o Dr. José Caetano pronunciou um homem que se dizia ter fortes proteções. Agora o Sr. Dr. Izidro condena uma pessoa que ocupa uma posição distinta na sociedade pelos seus grandes haveres e pela sua influência.
Não entramos no mérito da sentença, nem podemos apreciar os seus fundamentos; mas o que não se pode negar é que o juiz que lavrou uma condenação desta ordem, deu uma prova incontestável de inteireza e de retidão. Quando mesmo a sentença não fosse justa, estamos certos que a intenção que a ditou foi da mais vigorosa eqüidade.
Agora, meu amável leitor, até 1º de abril.
Entendeis?