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Arras por Foro de Espanha/VII

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Passára mais de um anno depois do casamento d’elrei. Este casamento, que explicava o repudio da infanta de Castella, não bastára em verdade para accender a guerra entre D. Henrique e D. Fernando, estando já de algum modo previsto nos capitulos addicionaes do tractado de Alcoutim. Mas, como se o desgosto que semelhante offensa devia gerar no animo do rei castelhano não fosse assás forte para servir de fermento a futuras guerras, D. Fernando suscitára novos motivos de sérias desavenças, que não particularisaremos aqui, por não virem a nosso intento. Baste saber que, depois de inuteis mensagens e queixas, D. Henrique de Castella, entrando subitamente em Portugal e tomando muitas terras fortificadas, atravessára rapidamente a Beira, passára juncto aos muros de Coimbra, onde se achava D. Leonor Telles, e vindo offerecer batalha a elrei D. Fernando, que estava em Santarem, e que não acceitou o combate, se encaminhára para Lisboa, cujos habitantes desapercebidos apenas tiveram tempo de se acolherem aos antigos muros do tempo de Affonso III, de cujas torres e adaves viram os castelhanos saquearem e queimarem o bairro mais povoado e rico da cidade, o arrabalde, sem lhes poderem pôr obstaculo. No meio deste apertado cêrco, desamparados d’el-rei, que apenas lhes enviára alguns de seus cavalleiros, os moradores de Lisboa não tinham desanimado. Com varia fortuna haviam resistido aos commettimentos dos castelhanos, e o que mais duro era de soffrer, á fome, á sede, e até ao receio de traições de seus naturaes. Finalmente D. Fernando fizera uma paz vergonhosa, depois de ter suscitado uma injusta guerra, e Lisboa viu affastar dos seus muros o exercito d’elrei de Castella, que a tivera sitiada durante quasi dous mezes.

Era nos fins de maio de 1373, pela volta da tarde de um formoso dia de primavera. O ar eslava tepido e o céu limpo. Pelos campos e valles via-se verdejar a relva; a madresilva, e as rosas bravias, enredadas pelos vallados, embalsamavam a atmosphera. Mas estes eram os unicos signaes que nos arredores de Lisboa revelavam aquella estação suave no seu clima suavissimo. Tudo o mais contrastava horrivelmente com elles. Os extensos e bastos olivedos, que nessas eras a rodeavam, jaziam decepados em terra, como se por alli tivesse passado fouce gigante meneada por braço de ferro. Pelos outeirinhos, coroados pouco havia de vinhas frondosas, viam-se espalhadas as videiras cobertas de folhas resecadas antes de tempo, ou ennegrecidas pelo fogo, assimilhando-se a gandra coberta de urzes, que foi desbravada por fins d’outono. As vastas hortas, que se derramavam por Valverde, trilhadas pelos pés dos cavallos, estavam incultas e abandonadas. Mas sobre este mal assombrado e triste chão do painel, mais melancholica e afflictiva avultava ainda a figura principal, a cidade.

O populoso bairro chamado o arrabalde, onde d’antes era contínuo o ruído discorde de tracto immeriso, achava-se convertido em um montão de ruinas. Para o lado do sul e poente não se viam desde os antigos muros (cujo perimetro pouco mais cercava do que o castello e o bairro a que hoje damos geralmente o nome d’Alfama) senão edificios queimados, ruas entulhadas, praças desfeitas, vestigios do sangue, peças de armadura aboladas ou falsadas, hastilhas e ferros partidos de virotes, de lanças e de espadas, e aqui e acolá cadáveres fétidos, não só de cavallos, mas também de homens, cujas carnes, meias devoradas pelos cães ou pelo tempo, lhes deixavam branquejar as ossadas. Sobre os entulhos appareciam como phantasmas os servos mouros, revolvendo as pedras derrocadas em busca de alguma preciosidade que tivesse escapado ás chammas e ao inimigo; e juncto ás paredes negras da sinagoga os mercadores judeus, olhando para o seu bairro assolado, depennavam as barbas â roda dos rahbis, que recitavam em tom de pranto os versiculos hebraicos dos Threnos.

Por meio deste vasto quadro de assolação rompia uma numerosa companhia de cavalleiros e damas, de donas e escudeiros, de donzellas e pagens, brilhante cavalgada que descia da banda de Santo Antão para S. Domingos, e tomava pela corredoura para a porta do ferro. A formosura e o luxo das mulheres, as figuras athleticas e os rostos varonis dos cavalleiros, o brunido das armas, o loução dos trajos, o rico dos arreios, tudo emfim dava clara mostra de que naquella cavalgada vinha a mais nobre gente de Portugal. Os risos das damas, os dictos galantes o agudos dos fidalgos, o rinchar alegre dos corcéis briosos e dos delicados palafrens, as doudices dos donzeis, que ora correndo á rédea solta, ora soffreando os cavallos ao perpassar pelas mulas pacificas dos cortezãos letrados, os faziam vacillar e debruçar sobre os arções, o bater das asas dos nebris e girifaltes empoleirados nos punhos dos falcoeiros, o latir dos galgos e allãos, que atrellados forcejavam por se atirarem acima daquelles centenares de habitações derrocadas, d’onde saía de vez em quando uma exhalacâo de carniça: este rir, este folgar, este ruído do contentamento, este matiz de reflexos metallicos, de côres variegadas, passando como um turbilhão através daquelle silencio sepulchral, parecia rasgar o veu de tristeza que cobria a vasta área da cidade destruida, e revoca-la a uma nova existencia.

Mas o povo, apesar d’isso, continuava a estar triste.

A cavalgada chegou ao terreiro da sé. Um engenho de arremessar pedras estava assentado no meio delle, e os grossos madeiros de que era construído viam-se ainda manchados de rastos de sangue. Uma dama, que vinha na frente da comitiva, parou: um cavalleiro de boa idade e gentil-homem, que caminhava a seu lado, parou tambem. A dama apontou para o engenho, disse algumas palavras ao cavalleiro, e depois desatou a rir.

Era ella a mui nobre e virtuosa minha D. Leonor: elle o mui excellente e esclarecido rei D. Fernando de Portugal.

D. Leonor Telles tinha razão para rir.

Durante o cêrco de Lisboa uma voz, verdadeira ou falsa, se espalhára de que vários moradores da cidade estavam preitejados com elrei de Castella para lhe abrirem uma das portas. Dava força a taes suspeitas o acharem-se no campo castelhano Diogo Lopes Pacheco e D. Diniz, que com elle se haviam ajunctado na sua entrada em Portugal, e as desconfianças recahiam naturalmente sobre aquelles que dous annos antes tinham seguido o partido contrario a D. Leonor, de que o infante e o velho privado de D. Affonso IV eram cabeças. Assim a popularidade dos parciaes de D. Diniz tinha diminuido consideravelmente, porque o povo, em vez de attribuir a sua ruina ás causas remotas, ás paixões insensatas de D. Leonor e á imprudencia d’elrei, só nas suggestòes de Diogo Lopes e do infante via agora a origem de todos os males presentes, e o odio que contra os dous havia concebido se estendêra a todos os que cria serem-lhes affeiçoados.

Apenas, portanto, se divulgou a noticia da intentada traição, o povo furioso correu ás moradas daquelles, que, como fica dicto, lhe eram mais suspeitos. Seguiu-se uma festa de cannibaes, festa de vulgacho em qualquer tempo e logar que elle reine. Aquelles que não poderam provar de modo innegavel a sua innocencia, foram mettidos aos mais crueis tormentos, onde nenhum se confessou culpado. Um desgraçado, contra o qual eram mais vehementes as desconfianças, foi arrastado pelas ruas e feito depois em pedaços: “outro—­diz o chronísta [1] —­tomarom e pozerom-no na fumda d’huum engenho, que estava armado ante a porta da see; e quando desfechou lançono em cima dessa egreja antre duas torres dos sinos que hi ha, e quando cahio acharomno vivo; e tomaromno outra vez e pozeromno na fumda do engenho, e deitouho contra o mar, omde elles desejavom, e assi acabou sua vida.”

Era por isso que D. Leonor olhára para o engenho, e se ríra. O próprio povo tinha pagado uma parte das arrhas do seu casamento.

A noite descêra entretanto. A cavalgada parou no terreiro de S. Martinho, e á luz de muitas tochas parte daquella multidão escoou-se pouco a pouco por diversas ruas, emquanto outra parte subia á sala principal, ou se derramava pelos aposentos dos paços, cujo silencio de quasi dous annos, depois du fuga d’elrei com D. Leonor Telles, era a primera vez interrompido pelo ruido de uma côrte numerosa, mas bem differente da antiga. A rainha havia quasi exclusivamente chamado a ella os seus parentes, ou aquelles fidalgos que lhe tinham dado provas não equivocas de sincero affeiçcão e substituíra á severidade antiga do paço todo brilho de um luxo insensato, e o que mais era, a dissoluçao dos costumes, que quasi sempre acompanha esse luxo. Depois de uma ceia esplendida, como o devia ser nesta côrte voluptuaria, apenas ficára na camara real D. Fernando e sua mulher, o conde de Barcellos D. Joâo, D. Gonçalo Telles, irmão de D. Leonor e um donzel da rainha, filho bastardo de outro bastardo, do prior do Hospital Alvaro Gonçalves Pereira, e que ella mais que nenhum estimava. Estas personagens achavam-se reunidas no mesmo aposento onde dous annos antes o beguino Fr. Roy viera revelar á então amante de D. Fernando os intentos de seus inimigos. Era deste aposento que ella saíra fugitiva e amaldicçoada do povo. Mas era ahi também que ella vinha depois de tantos sustos, de tantas difficuldades vencidas, de tanto sangue derramado por sua causa, repousar triumphadora, segura já na fronte a corôa real. Tudo estava do mesmo modo, salvo as personagens, que em parte eram diversas e em diversa situação.

Elrei, habitualmente alegre, se assentára triste na cadeira de espaldas, unico movel do aposento, e encostára a cabeça sobre o punho cerrado: D. Leonor, posto que naturalmente loquaz, [2] assentada no estrado defronte de D. Fernando, conservava-se tambem em silencio: em pé, um pouco atraz da cadeira d’elrei, o donzel querido de D. Leonor, com os olhos fitos nella, esperava attento as determinações de sua senhora: ao longo da sala o conde de Barcellos e D. Gonçalo Telles passeavam lentamente, conversando em voz submissa e pausada.

Mas a taciturnidade de cada uma das duas personagens principaes tinha bem differentes motivos.

A imagem da sua capital destruida havia-se embebido na alma d’elrei como um remorso cruel. Pelas suggestões de seu tio adoptivo consentíra que D. Henrique viesse livremente destruir a opulenta Lisboa. Elle, neto de Affonso IV, rejeitára os soccorros de seus valorosos vassallos, que de toda a parte haviam corrido, lança em punho, para combaterem debaixo da signa real, ao esvoaçar dos pendões inimigos: elle, cavalleiro, fôra vil instrumento de vingança covarde: elle, rei de Portugal, fôra o destruidor do seu povo; elle, portuguez, recebêra o nome de fraco de um castelhano, sem que ousasse desmentir a affronta! [3] Estas idéas, que o tinham assaltado ao atravessar as ruinas dos arrabaldes, tomavam maior vulto e força na solidão e no silencio. O pobre monarcha, bom, mas excessivamente brando e irresoluto, tinha sobeja razão de estar triste. A lua, que começava a subir, dava de chapa, através da janella oriental do aposento, no rosto de D. Fernando, como dous annos antes, quasi a essa hora, lhe allumiára tambem as faces demudadas de afflicção. Este logar, esta luz, e esta hora eram para elle fataes!

Nesse momento passos mais rapidos e mais pesados que os dos dous fidalgos começaram a soar na sala contigua: quem quer que era passeava também.

Dos olhos de D. Fernando saíam dous tenues reflexos; eram os raios da lua que se espelhavam em duas lagrymas.

A raínha, alevantando-se então, disse ao donzel:

“Nunalvares Pereira, vêde quem está nessa sala.”

Nunalvares abriu a porta, e alongando a cabeça voltou-se immediatamente, e disse:

“O corregedor da côrte.”

Os dous fidalgos pararam na extremidade do aposento, calaram-se, e conservaram-se immoveis.

A rainha fez signal com a mão a Nunalvares para que esperasse: o donzel ficou á porta sem pestanejar.

D. Leonor encaminhou-se então para elrei, que, embebido no seu profundo scismar, não víra nem ouvíra o que se fazia ou dizia. Curvando-se, e firmando o cotovello no braço da cadeira d’elrei encostou a cabeça sobre o hombro delle, com a face unida á sua.

“Que tens tu, Fernando?—­perguntou ella com essa inflexão de voz meiga, que só sabem labios de esposa que muito ama, mas com que tambem soubera atinar esta mulher sublime de hypocrisia.

“Nada! oh ... nada!”—­respondeu elrei, lançandolhe o braço ao redor do pescoço, e apertando a face incendiada aquelle rosto de anjo, que dissimulava um coração de demonio.

Os dous tenues reflexos da lua tinham esmorecido nos olhos de D. Fernando: o halito de Leonor Telles queimára as lagrymas da compaixão e do remorso.

“Enganas-me, ou enganas-te a ti proprio, Fernando!—­replicou a rainha.—­Tu és infeliz, e eu sei porque o és. Aborreces já a pobre Leonor Telles.”

O tom com que estas palavras foram proferidas era capaz de partir um coração de marmore.

“Enlouqueceste, Leonor?—­exclamou el-rei.—­Aborrecer-te? Sem ti este mundo fôra para mim um ermo, a corôa martyrio, a vida maldicção de Deus. Como nos primeiros dias dos nossos amores, no leito da morte amar-te-hei ainda. Gloria, riqueza, poderio, tudo te sacrifiquei: não me pêsa. Mil vezes que tu o queiras t’o sacrificarei de novo.”

“Oh, prouvera a Deus que o teu amor fosse metade do que dizes: fosse metade do meu!”

“Busca, inventa, aponta-me algum modo de te provar o que digo, e verás se as minhas palavras são sinceras!”

“Ha um, rei de Portugal!”—­replicou Leonor Telles, em cujos olhos scintillava o contentamento.

Dizendo isto ella se affastára d’elrei. O seu aspecto tomou subitamente a expressão grave e severa de uma rainha. A um gesto que fez, Nunalvares ergueu o reposteiro, e o corregedor da côrte entrou. Trazia na mão um pergaminho aberto. Chegou ao pé de Leonor Telles, ajoelhou e entregou-lh’o.

A rainha pegou nelle, e apresentou-o a el-rei: o donzel trouxe uma das tochas que estavam nos angulos do aposento, e collocou-se á esquerda da cadeira de D. Fernando.

“A prova do que dissestes, rei de Portugal, está em estampardes no fim desse pergaminho o vosso sello de puridade.” [4]

D. Fernando recebeu o pergaminho e começou a ler: a cada uma das extensas linhas que o obrigavam a descrever um semi-circulo com o raio visual, o tremor das suas mãos se tornava mais violento, as contracções do seu rosto mais profundas. Antes de acabar de ler atirou o pergaminho ao chão, e com voz terrível exclamou, cravando os olhos reluzentes em Leonor Telles:

“Mulher, que me pedes tu?”

“Justiça, e as minhas arrhas.”

Era a primeira vez que elrei ousava resistir á vontade de Leonor Telles. Ella ainda não o cria. Habituada a ser obedecida pelo pobre monarcha, estas ultimas palavras foram proferidas com a insolencia de uma resolução incontrastavel.

“Justiça? Contra quem a pedes? Contra cadaveres e moribundos. As tuas arrhas? Tiveste em dote as mais formosas villas de meus senhorios: tiveste o que mais desejavas, as arrhas de sangue e ruinas. Para te contentar, deixei Lisboa entregue ao furor d’inimigos: para te contentar, fui vil e fraco: para te contentar, dos patibulos já têm pendido sobejos cadaveres. [5] E ainda não satisfeita, pretendes que antes de dormir uma unica noite na minha capital assolada, confirme uma sentença de morte? Leonor! tu eras digna de ser filha de meu implacavel pae!”

D. Leonor repellíra o olhar, entre colerico e timido, de Fernando, que mal acreditava a própria audacia, com um olhar em que se misturava a indignação e o despreso. Ella ouvira as suas palavras sem mudar de aspecto, mas apenas elrei acabou, encaminhou-se para a janella d’onde batia o luar, e estendeu a mão para o céu:

“Ha dous annos, senhor rei, que neste aposento, a estas mesmas horas, um cavalleiro jurava a uma dama, de quem pretendia quanto mulher póde ceder a desejos de homem, que a amaria sempre; jurava-o pelo céu, pelos ossos de seus avós, pela sua fé de cavalleiro—­e o cavalleiro mentiu. As bôcas de homens vis vomitavam contra essa mulher, e a essa mesma hora, os nomes de adultera, de barregan, de prostituta, e pediam a sua morte. O cavalleiro sabia que taes affrontas escrevem-se para sempre na fronte de quem as recebe, se o sangue de quem as proferiu não as lava um dia. O cavalleiro ofereceu a sua alma aos demonios se não as lavasse com sangue—­e esse cavalleiro blasphemou e mentiu. Senhor rei, diante do céu que elle invocou, perto dos ossos de seus avós, pelos quaes jurou, á luz da lua que o allumiava, dir-vos-hei: aquelle cavalleiro foi perjuro, blasphemo, desleal e covarde, e eu a sua victima. É contra elle que ora vos peço justiça. Rei do Portugal, justiça!”

Esta ultima palavra restrugiu horrivelmente pelo aposento. Elrei, que durante o discurso de D. Leonor se erguêra pouco a pouco, fascinado pelo seu gesto diabolico e pelo seu olhar fulminante, cahiu outra vez, arquejando, sobre a cadeira. O desgraçado cobriu a cara com ambas as mãos, e depois de um momento de silencio murmurou:

“Mas como punir aquelles que talvez são cadaveres? A guerra e a furia popular os puniram!”

D. Leonor trinmphára.

“Nem todos:—­proseguíu a astuta e sanguinária panthera, accommettendo o ultimo entrincheiramento, em que D. Fernando já debalde procurava defender-se.—­Os seus mais vis inimigos ainda respiram, e porventura, ainda sonham vingança. Corregedor da côrte, lêde os nomes escriptos em vossa sentença.”

O corregedor da côrte levantou o pergaminho, affastando-o dos olhos, e interpondo a mão aberta entre estes e a tocha que Nunalvares segurava: tossiu duas vezes, inclinou para traz a cabeça, e com o tom cheio e solemne de um mestre em degredos, leu:

“Item: Fernào Vaasques, peom, alfayate, cabeça e propoedor dos ssusodictos rreveis.”—­Aqui abriu o peitilho da garnacha, tirou a sua ementa particular, e leu a seguinte cota:

“Vivo; muy malferido dhuùa ffrechada com hera [6] no ffecto do meirinho-moor, quando hos da cidade llevarom os castellãos de vencida atá mêa rrua nova.”

Lida esta observação, o corregedor continuou a ler successivamente os nomes dos réus e as respectivas cotas.

“Item: Stevom Martins Bexigosso, mercador, pcom, capitão dhuù corpo dos ssusodictos rreveis.”—­Dizia a ementa:—­“Morto de ssua door naturall.

“Item: Bertolameu Martijs, ourivez, peom, dizidor de pallavras de desacatamento contra ssua rreal ssenhoria, e de grão ssamdice e desavergonhamento.”—­Dizia a ementa:—­“Morto dhuùa pedrada dhuù emgenho dos imiguos.”

“Item: Joham Lobeira, escudeiro, homem darmas, acostado do allcayde moor que ffoy do caslello desta lyal cidade, capitão dos beesteiros que fforom a Ssam domingos.”—­Dizia a cota:—­“Foy cativo dhos castellãos: dado em rrendiçom, e a boõrrequado na pryssom Dalcaçova.”

“Item: Bertolameu Chambão, peom, tanoeiro, cabeça da beestaria do concelho, deputado, pera ffazer vilto e affronta a ssua rreal ssenhoria ha muy excellente e muy vertuosa de gramdes vertudes, rrainha dona llyanor.”—­Resava a ementa:—­“Morto dhuùa lamçada aa porta dho fferro.”

“Item: Ayras Gil, petintal, capitão dos rreveis, gualiotes, arraizes, e pesquadores Dalfama.”—­Dizia a cota:—­“Ffogido com os castellaõs.”

“Item: Fr. Roy, dalcunha Zambrana, biguino, ffolliom, jograll de sseu officio, bevedo, assoalhador de palavras e dictos devedados, e scuita dhos reveis.”—­Notava a ementa:—­“Enssandeçeu na pryssom ao lleer da ssemtemça.”

Pobre Fr. Roy! Vendo-se condemnado á morte, desesperado, revelára o que tinha sido na revolta—­um espia de Leonor Telles. A cota da ementa fôra tudo o que tirára das suas revelações: o corregedor, homem agudo como o melhor mestre em leis ou degredos, deduzira das suas palavras que o beguino endoudecêra. Trocava as idéas. Tinha sido espia, mas dos revoltosos.

Alevantado o cêrco da Lisboa, o corregedor da côrte fôra o primeiro presente que a nova rainha enviára á cidade. Áquelle perspicaz e diligente magistrado poucos dias haviam bastado para preparar um sarau digno della, uma sentença de morte. A prova da sua perspicacia e diligencia estava em ter já no caminho da forca os desgraçados, cuja sentença vinha trazer confirmação real. N’uma execução nocturna não havia a receiar tumultos populares, e a brevidade que a rainha lhe recommendára neste negocio, lhe fazia crer que não seria desagradavel a sua real senhoria a immediata execução dos réus.

Quando acabou a leitura, elrei tirou da bolça que trazia ao cindo o sêllo de camafeu, e sem dizer palavra entregou-o ao corregedor. Este pegou na tocha de Nunalvares, deixou cahir alguns pingos de cera no fundo do pergaminho, assentou-lhe em cima um fragmento de papel que tirára da ementa, e cravou neste o sêllo. As armas d’elrei ficaram ahi estampadas. O corregedor fizera isto com a promptidào e aceio com que o mais habil algoz enforcaria o seu proximo.

Depois o honesto magistrado entregou o sêllo a elrei, cujo tremor nervoso se renovára durante a fatal ceremonia. Ao pegar-lhe, o pobre monarcha deixou-o cahir no chão. O sêllo foi rolando e parou aos pés de D. Leonor Telles. Ella empallideceu. Porquê? Talvez se lhe figurou uma cabeça humana, que rolava diante delia.

O corregedor fez uma profunda venia, e perguntou em voz sumida á rainha:

“Quando, senhora?”

No mesmo tom D. Leonor respondeu:

“Já.”

O destro e activo corregedor tinha dado no vinte. O já da seria mais já do que ella propria pensava.

O corregedor saíu.

A um aceno de D. Leonor, o donzel metteu a tocha no annel de ferro embebido na parede, d’onde a tinha tirado, e encaminhou-se para juncto da porta, onde ficou com os braços cruzados, olhos no chão, e immovel como uma estatua. Desde este dia o formoso donzel odiou do fundo da alma a sua mui nobre senhora, aquella que lhe cingira a espada. O generoso Nunalvares conhecêra que debaixo desse rosto suave se escondia um instincto de besta-fera.

Os dous fidalgos continuaram a passeiar de um para outro lado, conversando em voz baixa e como alheios á scena que alli se passava.

Elrei tomára a primeira postura em que estava, com o cotovelo firmado no braço da cadeira, e a cabeça encostada no punho; mas os seus olhos, revolvendo-se-lhe nas orbitas, incertos e espantados, exprimiam a dolorosa alienação daquella alma timida, atormentada por mil affectos oppostos.

Ouvia-se apenas o cicío dos dous que conversavam. E por largo espaço aquetle murmurio, e o respirar alto e convulso de D. Fernando foram o unico ruído que interrompeu o silencio do vasto aposento.

Elrei, com a mão esquerda pendente sobre os joelhos, deixava-se ir ao som das idéas tenebrosas que lhe offuscavam o espirito, e que protrahidas o levariam bem proximo das raias de completa loucura. A imagem de Leonor Telles apparecia-lhe como composto monstruoso de vulto d’anjo e de olhar de demonio. Um amor infinito arrastava-o para essa imagem; o horror affastava-o della. Via-a como um simulachro das virgens, que, na infancia, imaginava ao ouvir ler ao bom de seu aio Ayras Gomes as lendas das martyres; mas logo cuidava ouvi-la dar risada, infernal passando por cima das ruinas de cidade deserta. O patibulo e os delirios amorosos; o cheiro do sangue e o halito dos banquetes misturavam-se-lhe no senso intimo: e o pobre monarcha, nos seus desvarios, perdêra a consciencia do logar, da hora e da situação em que se achava naquelle terrivel momento.

Mas um beijo ardente, dado nessa mão que tinha estendida, e lagrymas ainda mais ardentes que a regavam foram como faisca electrica revocando-o á razão e á realidade da vida.

A commoçào indizivel e mysteriosa que sentira fez-lhe abaixar os olhos: a rainha estava a seus pés: era ella quem lhe cobria a mão de beijos e lh’a regava de lagrymas.

D. Fernando affastou-a suavemente de si: ella alevantou o rosto celeste orvalhado de pranto; era de feito a imagem de uma das martyres que elle via no seu imaginar da infância. D. Leonor ergueu as mãos supplicantes com um gesto de profunda angustia: então era mais formosa que ellas.

“Ah!”—­murmurou elrei:—­“porque é o teu coração implacavel, ou porque te amei eu tanto?!”

“Desgraçada de mim!—­acudiu D. Leonor entre soluços.—­O teu amor era como o iris do céu: era a minha paz, a minha alegria, a minha esperança; mas desvaneceu-se e passou: a vida de Leonor Telles desvanecer-se-ha e passará com elle!”

“É porque sabes que esse amor não póde perecer; que esse amor como um fado escripto lá em cima—­interrompeu D. Fernando—­que tu me fazes tingir as mãos de sangue, para satisfazer tuas crueis vinganças: é porque sabes que eu esgóto sempre o calix das ignominias quando as tuas mãos m’o apresentam, que tu me sacias de deshonra. Terás acaso algum dia piedade daquelle que fizeste teu servo, e que não póde esquivar-se a ser tua victima?”

“Oh quanto és injusto, Fernando, e quão mal me conheces!—­exclamou Leonor Telles limpando as lagrymas.—­Foi a tua dignidade real, a tua justiça, o teu nome que eu quiz salvar da tua propria brandura. Aos mesquinhos que me offenderam perdoei de todo o coração; mas tu, que eras rei e juiz, nào o podias fazer. Se o nome de teu virtuoso pae ainda hoje lembra a todos com veneração e amor, é porque teu pae foi implacavel contra os criminosos, e aquillo em que pões a deshonra e a ignominia, é a coroa de gloria immortal que cérca o seu nome. Se as minhas palavras te constrangeram a escolher entre a confirmação dessa fatal sentença e a deslealdade e blasphemia, que não cabem em coração e labios de cavalleiro, foi por te salvar de ti mesmo. Se crês que nisto fui culpada, dize-me só—­Leonor, já não te amo!—­e eu ficarei punida; porque nessas palavras estará escripta a minha sentença de morte! Possas tu depois perdoar-me, e proferir sobre a campa da pobre Leonor uma expressão de piedade!”

As lagrymas e os soluços parecia não a deixarem proseguir. Reclinou a cabeça sobre os joelhos d’elrei, apertando-lhe a mão entre as suas com um movimento convulso.

Formosa, querida, humilhada a seus pés, como resistiria o pobre monarcha? Unindo a face áquella fronte divina, só lhe disse:—­oh Leonor, Leonor!—­e as suas lagrymas misturavam-se com as della.

Durante esta lucta da dor e da hypocrisia, em que, como sempre acontece, a ultima triumphava, o conde de Barcellos e D. Gonçalo Telles tinham-se encostado á janella fatal que dava para o rio, e que tambem dominava grande porção do arrabalde occidental da cidade. O espectaculo da noite era de melancholica magnificencia.

A lua caminhava nos céus limpos do nuvens, e pela face da terra nem suspirava uma aragem. A claridade do luar refrangia-se nas aguas, mas esmorecia batendo na povoação, na qual não achava, além dos antigos muros, uma parede branqueada, uma pedra alva onde espelhar-se, ou um sussurro do lesta acorde com as suas harmonias. O incendio e o ferro tinham passado por lá, e Lisboa era um cahos de ruinas, um cemiterio sem lapides. Apenas no extremo do seu, d’antes, mais rico e povoado arrabalde amarelejava pulido pelo tempo o gothico mosteiro de S. Francisco juncto de sua irman mais velha a igreja dos Martyres. No valle que ficava em meio a luz do cima embebia-se inutilmente na povoação que jazia extincta. A bella lua de maio, tão fagueira para esta cidade querida, assemelhava-se á leôa, que voltando ao antro acha o seu cachorrinho morto. A pobre fera ameiga-o como se fosse vivo, e vendo-o quedo, indifferente, e frio, não o crê, e vae, e volta muitas vezes renovando seus inuteis affagos. Lisboa era um cadaver, e a lua passava e sorria-lhe ainda!

Mas no meio daquelle; chão irregular, negro, callado, viam-se aqui e acolá luzinhas que se meneavam de um para outro lado, ao que parecia, sem rumo certo. Era que os frades de S. Francisco e de S. Domingos faziam procurar por entre os entulhos as reliquias dos mortos, para lhes darem sepultura christan. Neste piedoso trabalho, que seguiam sem descontinuar havia muito tempo, eram acompanhados por alguns do povo, que para se esforçarem cantavam uma cantiga pia, cujas coplas, bem que interrompidas, vinham com triste som bater de vez em quando nos ouvidos dos dous cavalleiros. Resavam as coplas:


D’amigos e imigos,
Que ahi são deitados,
Levemos os ossos
Ao chão dos finados.
      Ave Maria!
      Sancta Maria!

Madre gloriosa,
Dess’alta ventura
Demovei os olhos
Á nossa tristura.
      Ave Maria!
      Sancta Maria!

Ao bento Jesus,
E ao padre eternal
Pedi que perdoe
A quem morreu mal.
      Ave Maria!
      Sancta Maria!

Esta longinqua toada perdeu-se no som de outra bem diversa, que se alevantou mais perto dos dous cavalleiros. Uma voz esganiçada dava o seguinte pregão:

“....Justiça que manda fazer elrei em Fernão Vasques, João Lobeira e Fr. Roy: que morram na forca, sendo ao primeiro as mãos decepadas em vida.”

Os cavalleiros abaixaram os olhos para o logar d’onde subíra a voz: era no terreiro proximo: os três padecentes e o algoz, cercados de alguns bésteiros, aproximavam-se do cadafalso: varios vultos negros fechavam o prestito: daquella pinha partira a voz do pregoeiro.

Este pregão, dado a horas mortas e n’uma praça deserta, parecia um escarneo. Mas o corregedor da côrte era affamado jurisconsulto e nós temos ouvido a alguns que na execução das leis as fórmas são tudo. Assim piamente o cremos.

Duas se tinham, porém, esquecido: os desgraçados morriam, como aquelles que o salteador assassina na estrada, pela alta noite, e sem um sacerdote que os consolasse na extrema agonia.

O algoz empurrou brutalmente um dos padecentes para uma especie de marco escuro que estava ao pé do patibulo. D’ahi a nada os cavalleiros viram reluzir duas vezes um ferro: ouviram successivamente dois golpes dados como em vão, seguindo-se a cada um delles um grito de terrivel angustia.

O conde de Barcellos quiz rir-se, mas a risada gelou-se-lhe na garganta, e, como Gonçalo Telles, recuou involuntariamente.

O grilo que restrugira, chegára aos ouvidos d’elrei.

“Que bradar de homem que matam é este?—­perguntou elle.

“A justiça de sua senhoria que se executa—­respondeu o conde, que neste momento retrocedia da janella.

“Oh desgraçados! tão breve!—­disse elrei, passando a mão pela fronte, d’onde manava o suor da afflicção e do terror. Olhando então para Leonor Telles accrescentou:

“Até a derradeira mealha estão pagas vossas arrhas, rainha de Portugal! Que mais pretendeis de mim?”

E deixou pender a cabeça sobre o peito.

D. Leonor não respondeu.

D. Gonçalo Telles aproximou-se então da cadeira de D. Fernando, e curvou um joelho em terra.

Elrei alevantou os olhos e perguntou-lhe:—­Que me quereis?”

“Senhor—­respondeu o honrado e nobre cavalleiro—­se vossa senhoria consentisse neste momento em ouvir a supplica de um dos seus mais leaes vassallos!...”

“Falae:—­replicou D. Fernando.

“João de Lobeira acaba de receber o premio de sua traição:—­proseguiu D. Gonçalo.—­O desleal escudeiro possuia avultados bens, que ficam pertencendo á corôa real. Por vossa muita piedade podeis fazer mercê delles a seu filho Vasco de Lobeira; mas o pobre moço ensandeceu ha tempos! Tresleu com livros de cavallarias, e tão varrido está que não fala em al, senão em um que anda imaginando, e a que poz o nome Amadis. Para um mesquinho parvo e sandeu pouco basta, e vossa real senhoria bem sabe que a minha escassa quantia mal chega ...”

“Calae-vos, calae-vos; que isso é negro e vil;—­bradou elrei, redobrando-lbo o horror que tinha pintado no rosto.—­Deixae ao menos que a sua alma chegue perante o throno de Deus!”

“Apenas cincoenta maravedis!”—­murmurou D. Gonçalo, erguendo-se, e abaixando os olhos, afflicto com a lembrança de sua extremada pobreza.

A seis de junho da era de Cesar de 1411 (1373) em um dos andares da torre do castello, o veador da chancellaria, Alvaro Pires, passeando de um para outro lado, dictava a um mancebo vestido de garnacha preta, e que tinha diante de si tinteiro, pennas, e folhas avulsas de pergaminho, a seguinte nota:

“Item. Pera se spreuer a fl’olhas cento e vinte-oyto do llivro prymeyro da Chancelaria Delrrey noso senhor:—­Doaçom dos bees de rraiz e moviis de Joham Lobeira, confisquado e morto por treedor contra ho serviço de ssua rreal senhoria, ao muy nobre D. Gonçaalo Tellez, per ho muyito divedo que cõ elrrey ha, e polos muytos sserviços que del teè rreçebido e ao deante espera de rreçeber.” [7]

E o povo?... Oh, este sim! Mostrava-se agradecido e bom, no meio de tantas infamias e crimes.

Os populares, que, na manhan immediata áquella horrivel noite dos fins de maio, passavam pello terreiro maldict, onde pendiam da forca os tres cadaveres, meneavam a cabeça, e seguindo ávante diziam:

“Boa e prestes foi a justiça d’elrei nos traidores. Alcacer por sua senhoria!”


  1. Fernão Lopes, Chr. de D. Fern. cap. 75.
  2. A rainha... como era ousada e muito faladora: Fernão Lopes, Chr. de D. Fern. cap. 126.
  3. Ibid. Cap. 72.
  4. O selo de puridade ou do camafeu era aquelle que se estampava no proprio pergaminho, e que servia ordinariamente para o rei expedir documentos de menos importancia, na falta do chanceller-mór, que tinha o sêllo grande, curial, ou do cavallo. Veja-se a Dissertação 3ª de J. P. Ribeiro.
  5. Os tumultos contra o casamento de D. Fernando não se tinham limitado a Lisboa. Pelas doações dos bens dos treedores mortos ou decepados se conhece que houve assoadas e depois vinganças em Satarem, Leiria, Abrantes e outras partes.
  6. Neste século ainda barbaro o uso de hervarou envenenar as armas de tiro ou arremesso era vulgarissímo nos combates.
  7. a nota é imaginaria, mas esta mercê acha-se com effeito registada a f. 128 do L.º 1.º da chancellaria de D. Fernando; cumpre todavia advertir que dessa chancellaria apenas existe original o 3.º livro: o 1.º é dos reformados ou estragados por Gomes Eannes de Azurara.