Artigo de Euclides da Cunha de 23 de agosto de 1897
Há quinze anos, em 1882, o tenente-coronel Durval Vieira de Aguiar foi incumbido pelo governo provincial da inspeção de todos os destacamentos policiais da Bahia.
Enérgico e resoluto o digno funcionário atravessou de extremo a extremo as paragens perigosas do sertão, revelando-se observador perspicaz e inteligentíssimo.
E fez um livro no qual se condensam dados estatísticos valiosos sobre as povoações visitadas e interessantes notas acerca da existencia primitiva das mais afastadas povoações — emoldurados por um estilo fluente e claro.
Extrato, respeitando todos os grifos, da página 79 daquele livro — Descrições práticas da província da Bahia — um longo trecho cuja significação é hoje maior do que na época em que foi escrito.
O autor refere-se à sua passagem por Monte Santo:
- "Quando por ali passamos achava-se na povoação um célebre Conselheiro, sujeito baixo, moreno acaboclado, de barbas e cabellos pretos e crescidos, vestido de camisolão azul, morando sozinho em uma desmobiliada casa, onde se apinhavam as beatas e afluiam os presentes, com os quais se alimentava. Este sujeito é mais um fanático do que um anacoreta e a sua ocupação consiste em pregar uma incompleta moral, ensinar rezas, fazer prédicas banais, rezar terços e ladainhas com o povo; servindo-se para isto das igrejas, onde, diante do viajante civilisado, se dá a um irrisório espectáculo, especialmente quando recita um latinório que nem ele nem os ouvintes entendem.O povo costuma afluir em massa aos atos religiosos do Conselheiro, a cujo aceno cegamente obedece e resistirá ainda mesmo a qualquer ordem legal, por cuja razão os vigários o deixam impunemente passar por santo, tanto mais quanto ele nada ganha e ao contrário promove, os batisados, casamentos, desobrigas, festas, novenas e tudo mais em que consistem os rendimentos da igreja. Nessa ocasião havia o Conselheiro concluido a edificação de uma elegante igreja no Mucambo e estava construindo uma excelente igreja no Cumbe, onde a par do movimento do povo, mantinha ele admirável paz. "
Há quinze anos...
Á medida que nos avantajamos no passado aparecem de um modo altamente expressivo as diversas fases da existência desse homem extraordinário — fases diversas, mas crescentes e sempre numa successão harmônica, lógicas nas suas mais bizarras manifestações, como períodos sucessivos da evolução espantosa de um monstro.
Diante de tudo isto, é singular a teimosia dos que de algum modo o querem nobilitar, alterando-o o nivel de simples mediocridade agitada ou maníaco imbecil, quase inofensivo, — arrancando-o, erguendo-o da profunda depressão em que jaz como homem fatal, tendo, diametralmente invertidos, todos os atributos que caracterisam os verdadeiros grandes homens.
Tudo é relativo; considerá-lo um fanático vulgar é de algum modo enobrecê-lo.
A matemática oferece-nos neste sentido uma apreciação perfeita: Antonio Conselheiro não é um nulo, é ainda menos, tem um valor negativo que aumenta segundo o valor absoluto da sua insânia formidável.
Chamei-lhe por isto, em artigo anterior, — grande homem pelo avesso.
Gravita para o minimum de uma curva por onde passaram todos os grandes aleijões de todas as sociedades. Mas está em evidência; não se perde no anonimato da mediocridade coletiva de que nos fala Stuart Mill, embora seja inferior ao mais insignificante dos seres que a constituem.
E entrará na história — pela porta baixa e escura por onde entrou Mandrin.
Além disto, as condições mesológicas nas quais devemos acreditar, excluídos os exageros de Montesquieu e Buckle, firmando um nexo inegável entre o temperamento moral dos homens e as condições físicas ambientes, deviam formar profundamente obscura e bárbara, uma alma que num outro meio talvez vibrasse no lirismo religioso de Savonarola, ou qualquer outro místico arrebatado numa idealisação imensa. Porque, afinal, impressiona realmente essa tenacidade inquebrantável e essa escravisação a uma idéia fixa, persistente, constante, nunca abandonada.
Que diferença existe entre ele e os grandes meneurs de peuples de que nos fala a história? Um meio mais resumido e um cenário mais estreito apenas.
Dominando há tanto tempo, irresistivelmente, as massas que cegamente lhe obedecem, a sua influência estranha avolumou-se, cresceu sempre numa continuidade perfeita e veio bater de encontro à civilisação.
Se recuássemos alguns séculos e o sertão de Canudos tivesse a amplitude da Arabia, porque razão não acreditar que o seu nome pudesse aparecer, hoje, dentro de um capítulo fulgurante de Thomaz Carlyle?
A carta do coronel Carlos Telles tem sido diversamente comentada. Conhecia de há muito e transmitti mesmo para aíi antes da publicação daquele documento, a maneira de pensar do digno comandante, cuja sinceridade está a cavaleiro de quaisquer dúvidas. Entretanto, diante de uma situação sob muitos aspectos indefínivel, vacilo ainda, considerando que os homens daquela estatura — feitos pelo molde de Bayard — têm uma tendência instintiva para reduzir dificuldades e perigos.
Além disto, são tão variadas as asserções, que por maior que seja o peso de uma palavra, as dúvidas sobrevêm inevitáveis, incorrigíveis.
Por maior que seja o valor moral de uma opinião, neste tumulto de impressões diversas e de idéias que se entrechocam, a gente insensivelmente se recorda da original comparação de Fox: as concepções como que se formam através de um filtro invertido no qual os elementos entram límpidos e puros e saem impuros e turbados.
Eu sistematiso a dúvida.
Admitindo mesmo que esteja de todo desmoralisado e reduzido o inimigo há, apezar disto, dificuldades que não se pode dirimir.
Aquelas muralhas graníticas do Rosário onde, escalonadas e ascendentes num hemiciclo monumental, como baluartes ciclópicos, se dispõem blocos monstruosos de pedra; aquelas trincheiras naturais que coroam a serra do Cambaio, de encontro às quais embateu como uma onda rugidora e forte a expedição Febrônio; a serra de Caipan, inacessível quase, partida pelo meio da ossatura de gneiss em duas muralhas a prumo, entre as quais corre o Vasa-Barris — fazem com que o número de adversários seja um fator insignificante de sucesso, cada homem, em tais condições, valendo por tantos homens quantos são os cartuchos que carrega na patrona.
Serás esta a última carta que escreverei deste ponto aonde, involuntariamente, fiquei retido, lutando com uma falta de assunto extraordinária, que já deve ter sido percebida.
Ao chegar ela aí, já estaremos caminho do sertão.