Artigo de Euclides da Cunha de 24 de setembro de 1897

Wikisource, a biblioteca livre

Completo ontem o cerco de Canudos, a luta correrá vertiginosamente agora. Os sucessos de hoje o indicam.

Desde muito cedo a direita da nossa linha avançou estreitando o sítio e estabelecendo com o inimigo um combate que irá num crescendo inevitável. travaram-se combates parciais, peito a peito, dentro das casas mais próximas, rapidamente cercadas. À audacia indômita do jagunço contrapõe-se neste momento a bravura inegável do soldado.

Escrevo rapidamente estas linhas, no meio do tumulto quase, emquanto a fuzilaria intensa suleia os ares a cem metros de distância.

Acabam de chegar alguns prisioneiros.

O primeiro é um ente sinistro ; um estilhaço de granada transformou-lhe o olho esquerdo numa chaga hedionda, de onde goteja um sangue enegrecido; baixo e de compleição robusta, responde tortuosamente a todas as perguntas:

Está apenas há um mês em Bello Monte e nada tem com a luta; nunca deu um tiro porque tem o coração mole[1] etc. Nada revela.

Chegam mais duas prisioneiras, mãe e filha; a primeira esquelética e esquálida — repugnante, a segunda mais forte e de feições atraentes. Evitam igualmente tanto quanto possível responder ao interrogatório do general. A filha apenas revela:

— Villa-Nova esta noite lascou o pé no caminho[2] e há um lote de dias[3] que um despotismo de gente[4] tem abancado[5] para o curube o Caipan. Está com muitos dias que há fome em Belo Monte.

A velha nada sabe, evita todas as respostas e nada pode dizer sobre o número de inimigos porque só sabe contar até quarenta!

Morreu-lhe o marido há meia hora; era um baiano truculento; expirou atravessado pelas balas, cinco minutos depois de haver morto com um tiro de bacamarto ao alferfes do 24º Pedro Simões Pontes e murmurou com um sorriso sinistro ao expirar:

— Estou contente! Ao menos matei um! Viva o Bom Jesus!

São duas horas da tarde e já temos 13 baixas.

Chega mais um jagunço preso.

Deve ter sessenta annos — talvez tenha trinta; vem meio desmaiado: no peito desenha-se, rubra, a lâmina de uma espada, impressa por uma pranchada violenta. Não pode falar, não anda.

Mais outro: é um cádaver claudicante. Foi ferido ha dois meses pela explosão de um schrapnell quando se acolhia ao santuário. Uma das balas atravessou-lhe o braço e a outra o ventre. E este ente assim vive, há dois meses, numa inanição lenta, com dois furos no ventre, num extravasamento constante dos intestinos. A voz sai-lhe da garganta imperceptível quase. Não pode ser interrogado, não viverá talvez até amanhã.

No colo de um soldado do 5º chega um outro,— tem seis meses.

Foi encontrado abandonado numa casa. e o pobre engeitado passa, indiferente ao tumulto, acobertado pela própria inconsciência da vida. Depois uma velha com a feição típica de raposa assustada.

E mais outros. Creio que entramos no período agudo da luta que talvez não dure oito dias. Está fechado o circulo do ferro em torno de Canudos.

Notas[editar]

  1. Medroso (N. do A.)
  2. Fugiu (N. do A.)
  3. Muitos dias (N. do A.)
  4. Muita gente (N. do A.)
  5. Saido (N. do A.)