As Asas de um Anjo/IV
Em casa de Carolina. — Sala pobre e miserável. É noite.
CENA I
[editar]HELENA E MENESES.
HELENA – Quem é?
MENESES – Abre, Helena.
HELENA – Ah! Sr. Meneses!
MENESES – Que significa isto?
HELENA – Uma desgraça!
MENESES – Conta-me!... Recebi a tua carta; mas tu não aproveitaste muito as lições do teu mestre de gramática; pouco entendi.
HELENA – O senhor nada sabia?
MENESES – Nada absolutamente. Voltando à tua casa disseram-me que se haviam mudado. Perguntei notícias ao Ribeiro, a quem encontrei há dias. Não me soube dizer.
HELENA – É que foi uma cousa tão repentina! Naquele mesmo dia em que o senhor lá esteve com o Araújo, fazem dous meses pouco mais ou menos, Carolina descobriu que estava roubada.
MENESES – Ah! Aquela caixinha de charão...
HELENA – O Vieirinha com uma chave falsa abria e tirava as joias que Carolina guardava, deixando as caixas vazias, para que ela não desconfiasse.
MENESES – Que miserável!
HELENA – Ela coitadinha, a princípio fingiu não se importar; mas depois veio-lhe uma febre... Esteve à morte. Com a moléstia gastamos o que tínhamos; vendemos tudo, e alugamos este cochicholo onde mal cabemos.
MENESES – Com efeito não parece habitação de gente.
HELENA – Que remédio!... Mas o pior é que não temos nem o que comer! Se ao menos ela já estivesse boa... Neste desespero lembrei-me de escrever àqueles que tínhamos conhecido em outros tempos, ao senhor, ao Araújo, ao Ribeiro, ao Viana... Escrevi até ao próprio Vieirinha!
MENESES – Depois do que ele fez?
HELENA – Talvez esteja arrependido, e restitua uma parte do que roubou.
MENESES – Duvido muito; mas fica descansada. Falarei aos outros. Entretanto deves ter necessidade de algum dinheiro... (Batem.)
HELENA – Há de ser algum deles!
MENESES – É natural.
CENA II
[editar]OS MESMOS, LUÍS E ARAÚJO.
LUÍS – Onde está Carolina?
HELENA – Dorme; não a acorde. É o único momento de alívio que tem.
LUÍS – Está muito doente?
HELENA – Agora vai um pouco melhor; mas ainda sofre bastante.
ARAÚJO (a Meneses.) – Foi depois daquele dia que estivemos juntos em casa dela.
MENESES – É verdade.
ARAÚJO – Soubeste hoje?
MENESES – Porque Helena me escreveu.
LUÍS – Eu já sabia há dias; porém não me foi possível descobrir a casa.
HELENA – Uma rua tão esquisita!... Quando pensaria eu morar no — Saco do alferes!...
MENESES – Não se acaba por onde se começa, Helena.
LUÍS – Que é feito do homem que praticou esse roubo infame!...
MENESES – Anda por aí muito satisfeito; vai casar-se.
HELENA – Que feliz mulher!...
ARAÚJO – E deixa-se que um indivíduo desses goze tranquilamente do fruto do seu crime? Não havia meio de levá-lo à polícia?
HELENA – Com o vexame da doença de Carolina, nem me lembrei de semelhante cousa. Demais que lucrávamos nós com isso? Faltavam as provas; e quem se prestaria a ir jurar a nosso favor contra um homem conhecido?...
ARAÚJO – Conhecido como um tratante!
HELENA – Mas sempre tem amigos; ninguém acreditaria...
ARAÚJO – Não estou por isso.
MENESES – Helena tem razão, Araújo; ninguém lhe daria crédito, ninguém juraria a seu favor; e eu estimo bem que ela tenha consciência do quanto desceu, que a sociedade nem ouve as suas queixas.
HELENA – Não falemos nestas cousas agora, Sr. Meneses; já não tem volta...
ARAÚJO – O arrependimento nunca vem tarde.
HELENA – Por isso eu vou passando muito bem sem ele.
ARAÚJO – Que mulherzinha!...
MENESES – Quantas não existem assim.
CENA III
[editar]OS MESMOS E RIBEIRO.
MENESES – Oh!... Ribeiro!
RIBEIRO – Também vieste?...
MENESES – O mesmo motivo nos trouxe a todos.
RIBEIRO – Ah! Mas não se incomodem; eu me encarrego do que for preciso.
LUÍS – Perdão, Sr. Ribeiro; aprecio a sua delicadeza; mas ela não me dispensa de cumprir o meu dever.
RIBEIRO – Creio que é a mim que pertence como pai de sua filha...
LUÍS – Não senhor; a obrigação de ampará-la é minha e ninguém ma pode contestar. Sou seu parente; e represento aqui sua família.
MENESES – Não há dúvida, Sr. Viana; mas permita-me que lhe diga também que quando se trata de uma boa ação não reconheço em ninguém o direito de excluir-me dela. Sou pobre...
RIBEIRO – Não se trata de fortuna, meu amigo; nem um de nós é rico.
ARAÚJO – Pois então façamos uma cousa; associemo-nos; e partilhemos todos o prazer de fazer o bem.
LUÍS – Não é necessário.
RIBEIRO – É ser egoísta, Sr. Viana.
LUÍS – Desculpe; se estivesse no meu lugar faria o mesmo.
RIBEIRO – Estão batendo.
HELENA – Vou ver.
MENESES – Pois advirto-lhe que não me sujeito.
LUÍS – Se o senhor tivesse prometido a uma mãe quase moribunda restituir-lhe sua filha, consentiria que outros o ajudassem a cumprir essa promessa?
MENESES – Por que não? Seria orgulho...
LUÍS – Talvez, Sr. Meneses; mas um orgulho legítimo. O que sofri por ela dá-me esse direito.
MENESES – Compreendo e respeito essa dor.
CENA IV
[editar]OS MESMOS E VIEIRINHA.
RIBEIRO – Que vem fazer aqui?
VIEIRINHA – O meu negócio não é com o senhor.
HELENA – É comigo.
VIEIRINHA – Justamente. Saiba que fez muito mal em escrever-me.
MENESES – Já eu o tinha dito.
VIEIRINHA – Ah! Estás por aqui, Meneses?
MENESES – Peço-lhe que se esqueça do meu nome.
VIEIRINHA – Que quer isto dizer?
ARAÚJO – Quer dizer que há certos conhecimentos que desonram um homem honesto.
VIEIRINHA – Não entendo.
LUÍS – Eu lhe explico. Tenha a bondade de retirar-se.
VIEIRINHA – Depois de dizer algumas palavras a esta mulher.
HELENA – Já não sabe como me chamo!
RIBEIRO – De que te admiras? Já não tens dinheiro para dar-lhe.
HELENA – Que quer de mim? Vem restituir o que roubou?... Quanto ao que lhe dei não é necessário.
VIEIRINHA – Não quero que me escreva. Suas cartas podem comprometer-me; estou em vésperas de casar-me.
HELENA – Que tem isso?...
VIEIRINHA – Podem suspeitar que tenho relações com gente de tal qualidade.
HELENA – E o senhor envergonha-se?...
VIEIRINHA – Se lhe parece que é uma honra...
HELENA – Não se envergonha porém do que praticou; não se lembra que por mais de um ano foi sustentado por uma mulher da minha qualidade.
VIEIRINHA – Não dou peso ao que diz.
HELENA – E não deve dar mesmo; porque a mulher que chegou a amar um homem como o senhor, é bem desprezível!...
(Vieirinha quer sair.)
CENA V
[editar]OS MESMOS E CAROLINA.
HELENA – Pois não! Agora há de ouvir-me!
ARAÚJO (à Carolina.) – Sente-se melhor?
CAROLINA – Pouco... Mas os senhores aqui... Luís... Sr. Ribeiro...
RIBEIRO – Incomoda-lhe a minha presença?
CAROLINA – Não!... Mas por que não a trouxe?...
RIBEIRO – Nossa... Sua filha?...
CAROLINA – Tinha tanta vontade de vê-la!...
RIBEIRO – Espere!... Voltarei antes de uma hora com ela.
HELENA – Por que te levantaste, Carolina? Estás tão fraca!
CAROLINA – Falavas tão alto!...
HELENA – É este sujeitinho... Tu o conheces bem!... Fez-me exasperar! Diz que se envergonha de conhecer-me... porque vai casar-se.
CAROLINA – Casar-se!... Ele!... Com quem, meu Deus?
MENESES – Com a filha de um homem de bem.
ARAÚJO – Que não o conhece certamente.
CENA VI
[editar]CAROLINA, LUÍS, MENESES, ARAÚJO, HELENA E VIEIRINHA.
HELENA – Hei de contar-lhe uma história. Ah! As minhas cartas o comprometem!... Veremos as suas...
VIEIRINHA – As minhas?...
HELENA – Os bilhetinhos que me escrevia pedindo-me que lhe valesse, que fosse desempenhar o seu relógio.
ARAÚJO – Serão um bom presente para o futuro sogro do senhor.
HELENA – Está dito; vou mandá-las amanhã! Tenho-as aqui!
VIEIRINHA – Helena!...
MENESES (a Araújo.) – Como lhe avivou a memória! Já sabe o nome.
VIEIRINHA – Escuta!...
HELENA – Não se comprometa meu senhor!
CAROLINA – Vem cá, Helena.
HELENA – O que queres?
CAROLINA – Nunca te pedi nada. Dá-me estas cartas.
HELENA – Para quê?
CAROLINA – Dá-me!...
LUÍS – Que vai fazer?
CAROLINA – Vingar-me!... Aí tem! Rasgue essas provas que o podem denunciar; case-se com a filha desse homem de bem; entre no seio de uma família honrada; adquira amigos!... É a minha vingança contra essa gente orgulhosa que se julga superior às fraquezas humanas.
LUÍS – Não fale assim, Carolina; a sociedade perdoa muitas vezes.
CAROLINA – Perdoa a um homem como este; recebe-o sem indagar do seu passado, sem perguntar-lhe o que foi; contanto que tenha dinheiro, ninguém se importa que a origem dessa riqueza seja um crime, ou uma infâmia. Mas para a pobre moça que cometeu uma falta, para o ente fraco que se deixou iludir, a sociedade é inexorável! Por que razão?... Pois a mulher que se perde é mais culpada do que o homem que furta e rouba?
MENESES – Não decerto!
CAROLINA – Entretanto ele tem um lugar nessa sociedade; pode possuir uma família! E a nós, negam-nos até o direito de amar! A nossa afeição é uma injúria! Se alguma se arrependesse, se procurasse reabilitar-se, seria repelida; ninguém a animaria com uma palavra; ninguém lhe estenderia a mão.
(Vieirinha sai deixando aberta a rótula.)
CENA VII
[editar]CAROLINA, LUÍS, MENESES, ARAÚJO E HELENA.
MENESES – Talvez seja uma injustiça, Carolina; mas não sabes a causa?... É o grande respeito, a espécie de culto, que o homem civilizado consagra a mulher. Entre os povos bárbaros ela é apenas escrava ou amante; o seu valor está na sua beleza. Para nós é a tríplice imagem da maternidade, do amor e da inocência. Estamos habituados a venerar nela a virtude na sua forma a mais perfeita. Por isso na mulher, a menor falta mancha também o corpo, enquanto que no homem mancha apenas a alma. A alma purifica-se porque é espírito, o corpo não!... Eis por que o arrependimento apaga a nódoa do homem, e nunca a da mulher; eis por que a sociedade recebe o homem que se regenera, e repele sempre aquela que traz em sua pessoa os traços indeléveis do seu erro.
CAROLINA – É um triste privilégio!...
MENESES – Compensado pelo orgulho de haver inspirado ao homem as cousas mais sublimes que ele tem criado.
LUÍS – Penso diversamente, Sr. Meneses. Por mais injusto que seja o mundo, há sempre nele perdão e esquecimento para aqueles que se arrependem sinceramente; onde não o há é na consciência. Mas não se preocupe com isto agora, Carolina; vê que não lhe faltam amigos, e essa mão que deseja, aqui a tem!
CAROLINA – Me deixa beijá-la?
LUÍS – Não se beija a mão de um irmão: aperta-se!
CENA VIII
[editar]OS MESMOS E PINHEIRO.
HELENA – Quem é o senhor?
PINHEIRO – Um moço que veio no meu tílburi entrou aqui... Não posso esperar mais tempo; são nove horas.
HELENA – Como se chama?
MENESES – Vieirinha.
HELENA – Ah! Já saiu!... Pregou um calote!
ARAÚJO – Para não perder o costume.
MENESES – Helena não lhe deu os dez tostões!
PINHEIRO – Helena!... Os senhores!... Aqui!... E ela! Carolina!
CAROLINA – Quem me chama?
PINHEIRO – Ah!...
HELENA – Sr. Pinheiro!...
PINHEIRO – Como está magra e pálida!... Oh! Deus é justo!
LUÍS – Cale-se, senhor; se não respeita a fraqueza de uma mulher, respeite ao menos o leito de um enfermo!
PINHEIRO – Não é minha intenção ofendê-la; ao contrário... O acaso fez que o homem pobre mas honrado, encontrasse diante das mesmas testemunhas, reduzida à miséria a mulher que o arruinou, e que lhe respondeu com uma gargalhada quando ele pedia-lhe que o salvasse da vergonha. Esqueço tudo; e lembro-me que sou cristão. Dou a minha esmola!...
CAROLINA – Toda a esmola não pedida é um insulto; e um homem nunca tem direito de insultar uma mulher!
PINHEIRO – Recebeu-as quando eram de brilhantes!...
CAROLINA – Nunca recebi esmolas; recebia o salário da minha vergonha! Mas fique certo que não há dinheiro no mundo que a pague. Todos os senhores que estendem a uma mulher a mão cheia de ouro; que depois de lhe matarem a alma cobrem o seu corpo de joias e de sedas para reanimar um cadáver, julgam-se muito generosos!... Não sabem que um dia essa mulher daria a sua vida para resgatar o bem perdido; e não o conseguiria!... Portanto não nos acusemos; o senhor perdeu a sua fortuna, eu perdi a minha felicidade; estamos quites. Se hoje sou uma mulher infame, não é o senhor que correspondeu para essa infâmia, que foi cúmplice dela, quem me pode condenar.
MENESES – Aproveite a lição, Sr. Pinheiro; e guarde a sua esmola. Quando tiver passado este primeiro momento de irritação há de reconhecer o que já lhe disse uma vez. Há criaturas neste mundo que se tornam instrumentos da vontade superior que governa o mundo. Não foi Carolina que o arruinou, que do moço rico fez um cocheiro de tílburi; foi sim a vaidade, a imprudência e o desregramento das paixões, sob a forma de uma moça. Incline-se pois diante da Providência; e respeite na mulher desgraçada a vítima do mesmo erro, e o agente de uma punição justa.
PINHEIRO – Sempre respeitei a desgraça, Sr. Meneses; e ainda agora mesmo, se ela precisa de mim... Já não sou rico, mas as economias do pobre ainda chegam para aliviar um sofrimento.
CAROLINA – Aceitei enquanto tinha que dar! Hoje, não vê... Sou uma sombra! Só peço aquilo à que os mortos tem direito... Que respeitem as suas cinzas!
PINHEIRO – Eu me retiro, Carolina; desculpe se a ofendi.
CAROLINA – Não conservo o menor ressentimento contra aqueles que encontrei no meu caminho. Corríamos todos atrás do prazer; o acaso nos reuniu; o acaso separou-nos. Hoje que somos uns para os outros recordações vivas e bem tristes, devemos esquecer-nos mutuamente. Entre nós a estima, e mesmo a piedade seria uma irrisão!
PINHEIRO – Quer assim?... Pois seja! Adeus! (Sai.)
CENA IX
[editar]CAROLINA, LUÍS, MENESES, ARAÚJO E HELENA.
MENESES – Eis um exemplo de coragem bem raro no Rio de Janeiro.
LUÍS – Qual?
MENESES – O desse moço. Outros em seu lugar tendo perdido a sua fortuna, andariam por aí a incomodarem os amigos de seu pai, e os seus antigos conhecidos para lhes arranjarem um emprego, que “não estivesse abaixo de sua posição.”
ARAÚJO – Como eu conheço muitos. Não têm vintém, e entendem que se desonram em ser caixeiros.
LUÍS – É um prejuízo que já vai desaparecendo.
CAROLINA – Mas, Sr. Meneses...
MENESES – O que é Carolina?
CAROLINA – Por que os Srs. apareceram todos de repente!... Nem de propósito!...
MENESES – É verdade!
CAROLINA – Como souberam a casa?
HELENA – Escrevi-lhes.
CAROLINA – Pedi-te tanto. Helena!...
LUÍS – Não queria que viéssemos?
CAROLINA – Para que afligi-los?...
MENESES – Mais nos afligiríamos se soubéssemos que tinhas sofrido privações por falta de amigos.
CAROLINA – Por isso não! Não preciso de nada.
ARAÚJO – Como! Não pode ficar nesta casa. É tão úmida...
CAROLINA – Quem não tem melhor!
ARAÚJO – Para que estamos nós aqui?...
CAROLINA – Não, Sr. Araújo!... Não aceito cousa alguma.
MENESES – Deixa-te de caprichos.
CAROLINA – Já não os posso ter!
(Luís e Araújo conversam baixo.)
MENESES – Helena há pouco me revelou as tuas circunstâncias!... Ontem não teve com que comprar um frango para dar-te um caldo.
CAROLINA – Oh! Neste ponto é escusado, Sr. Meneses!... Não cedo!
MENESES – Nem eu!
CENA X
[editar]CAROLINA, HELENA, MENESES E LUÍS.
LUÍS – Não a contrarie!... Nada obteremos. Deixe-me com ela! Eu conseguirei persuadi-la.
MENESES – Com uma condição porém.
LUÍS – Qual?
MENESES – Que me tratará nisto como um amigo.
LUÍS – Era minha intenção e a prova... Araújo foi buscar Margarida...
MENESES – A mãe de Carolina?
LUÍS – Sim; precisava de alguém que fosse à minha casa, e a fizesse preparar para recebê-la hoje mesmo; porque o essencial é tirá-la daqui. Contei com o senhor...
MENESES – E fez muito bem. Vou esperá-lo.
CAROLINA – Helena!
MENESES – Até logo, Carolina!
HELENA – Tu me chamaste?
CAROLINA (à meia voz.) – Toma esta cruz!... É uma lembrança de minha filha!... Sinto separar-me dela!... Mas é por pouco tempo.
HELENA – Não penses nisto!
CAROIINA (idem.) – Vê se te dão alguma cousa por ela... e compra-me água de flor!... Tenho uma sede!...
LUÍS – Vai sair?
HELENA – Vou à botica; volto já!
CENA XI
[editar]LUÍS E CAROLINA.
LUÍS – Está sofrendo muito, Carolina?
CAROLINA – Muito!... Mas enquanto sinto a dor não penso... Não me lembro!...
LUÍS – Incomodam-lhe as recordações do passado?
CAROLINA – Envergonho-me do que sou, Luís! Creio que não há martírio como este a que me condenei. Agora é que entendo as palavras que me disse naquela noite...
LUÍS – Procure esquecer, Carolina...
CAROLINA – Não é possível! Seria preciso arrancar a alma deste corpo, e ainda assim ela se lembraria.
LUÍS – O tempo há de acalmar essa excitação.
CAROLINA – Duvido!... Se soubesse, Luís, que mistérios profundos encobre esta vida! Quem vê uma dessas mulheres, sempre alegre e risonha, vestida ricamente zombando de todos e de tudo, não adivinha o que se passa dentro daquele coração, não sabe que miséria se esconde sob essa aparência dourada!... É o desprezo do mundo, começando pelo desprezo de si mesma!... O vício a torna incapaz de qualquer afeição, até mesmo do egoísmo!...
LUÍS – Compreendo!
CAROLINA – Mas o que não compreende, nem pode compreender, é a tortura que sofre essa mulher por causa do seu próprio erro. Para ela a beleza é tudo! É o luxo, é a estima, é a vaidade, é o sustento, é a existência enfim! Com que susto lança ela os olhos sobre o espelho a todo o momento para interrogá-lo?... E com que ansiedade espera a resposta muda desse juiz implacável que pode dizer-lhe: “Tu já não és bonita!” A menor sombra, a palidez, o cansaço de uma noite de vigília, lhe parecem a velhice prematura que vem destruir as suas esperanças, e condená-la à miséria.
LUÍS – Com efeito deve ser cruel!
CAROLINA – E quando chega o dia em que a moléstia lhe rouba as cores, a formosura, a mocidade; e da moça bonita que todos admiravam faz uma múmia; quando vem a pobreza, e é preciso para não morrer de fome... vender-se... Oh! É horrível!... Preferia, Luís, vender o meu sangue gota a gota!...
LUÍS – Sossegue, Carolina! esse horror que lhe causam as faltas que cometeu, são já o sinal do arrependimento; ele lhe dará a força para repelir essa existência.
CAROLINA – Se fosse possível!
LUÍS – Como! Que diz?
CAROLINA – Por mais forte que seja a vontade, Luís, há ocasiões em que a necessidade a subjuga! Quando sofrem-se privações, não se reflete, não se pensa...
LUÍS – Então é isso que a aflige?...
CAROLINA – Como deve ser amargo o sustento ganho com tanta vergonha e tanta humilhação!...
LUÍS – Mas Carolina... A minha presença devia tranquilizá-la.
CAROLINA – Obrigada, Luís. Não posso... É um orgulho ridículo, bem o sei... Porém nunca aceitarei...
LUÍS – Nem de mim, Carolina?
CAROLINA – De meu primo, menos do que dos outros!
LUÍS – Por que razão?
CAROLINA – Não se lembra?...
LUÍS – De quê?... Não... Não me lembro!
CAROLINA – Não lhe disse uma vez!... No meio dessa existência louca não perdi de todo a minha alma. Uma afeição a salvou. Supliquei-lhe um dia que a aceitasse. Depois que a suportasse apenas... Recusou e eu lhe agradeço! Conservei puro e virgem este amor!... Não me obrigue a fazer dele um dever!
LUÍS – Pois bem, Carolina, não quer aceitar de mim, aceite de sua mãe.
CAROLINA – De minha mãe?...
LUÍS – Não deseja vê-la?
CAROLINA – Queria pedir-lhe, mas não me animava.
LUÍS – Adivinhei o seu desejo.
CAROLINA – E me perdoará ela, Luís?
LUÍS – Já perdoou.
CAROLINA – Ah!... (Recosta-se extenuada.)
CENA XII
[editar]OS MESMOS E HELENA.
HELENA – Demorei-me, porque a botica é longe.
CAROLINA – Dá-me; tenho uma sede!
HELENA – Estás com febre! Não tomes em água fria. Vou fazer-te um chá! Sim?
CAROLINA – Como quiseres... A cabeça arde-me!...
LUÍS – Veja se consegue dormir um pouco.
CAROLINA – Antes acordada! Se durmo tenho sonhos horríveis!... Vejo meu pai como naquela noite!... Minha mãe que chora... Dê-me a sua mão, Luís... Deite-a sobre a minha testa... assim. Talvez me tire este fogo... (Pausa) A vela apagou-se?
LUÍS – Incomoda-lhe a falta de luz?...
CAROLINA – Tenho medo! No escuro é que me aparecem as visões...
LUÍS – Espere um momento!
CAROLINA – Onde vai? Não me deixe!
LUÍS – Volto já; vou ver luz. Não quer?
CAROLINA – Sim! Sim!...
LUÍS – Helena!
HELENA – Chamou-me?
LUÍS – Levou a vela?
HELENA – Para fazer o remédio.
LUÍS – Não tem outra?
HELENA – Esqueci-me comprar. Mas a venda é aqui junto; vou num momento.
LUÍS – Deixe estar; irei eu mesmo. Faça o que ela lhe pediu.
HELENA (à Carolina.) – Não te agonies; já está quase pronto.
CAROLINA – Minha mãe!... Minha filha!... Luís!...
HELENA – Estás sonhando?...
CENA XIII
[editar]CAROLINA E ANTÔNIO.
CAROLINA (delirando.) – Luís... Se me tivesse... amado!... E agora... impossível!...
ANTÔNIO – Ô de casa! Menina!... Deixaste a porta aberta?... Ah! Ah! Ah!
CAROLINA – Quem anda aí?
ANTÔNIO – Sou eu; onde estás?
CAROLINA – Mas quem é?
ANTÔNIO – Tu não me conheces, mas é o mesmo! Por que estás no escuro?
CAROLINA – Apagou-se a luz!
ANTÔNIO – Mas tu és bonita! Heim?
CAROLINA – Que me quer?
ANTÔNIO – Nada, menina! Vamos conversar!
CAROLINA – Deixe-me!... Helena!
ANTÔNIO – Tens as mãos tão frias!...
CAROLINA – Estou doente! Sinto arrepios!
ANTÔNIO – Por que não tomas um golezinho? A aguardente aquece.
CAROLINA – A aguardente?...
ANTÔNIO – Sim; é o melhor remédio.
CAROLINA – Dizem que faz esquecer... É verdade?
ANTÔNIO – Se é!... Queres?
CAROLINA – Oh! Se houvesse alguma cousa que me matasse a sede!
(Luís entra.)
CENA XIV
[editar]OS MESMOS, LUÍS, MARGARIDA, ARAÚJO, HELENA, RIBEIRO E UMA MENINA.
ANTÔNIO – Há de matar!... Mas por que não te curas?
CAROLINA – Não vale a pena curar-me!
ANTÔNIO – Por que, menina?...
CAROLINA – Já sou um cadáver!... Pouco me resta de vida!...
ANTÔNIO – São cantigas!... Dá-me um abraço!
CAROLINA – Luís! Luís!
(Entra Margarida e Araújo.)
LUÍS – É tua filha! Antônio!
CAROLINA – Meu pai!...
MARGARIDA – Antônio!...
ANTÔNIO – Quem és tu?
MARGARIDA – Não conheces tua mulher?
ANTÔNIO – Ah!... Minha mulher e minha filha!...
LUÍS – Cala-te!...
(Entra Ribeiro.)
ANTÔNIO – Não me toques!... (A Ribeiro.) Também veio ver? Ria-se... ria-se... Não me roubou minha filha?... Eu queria roubar sua amante!... Ah! Ah! Ah!...