As Caçadas de Pedrinho/Capítulo 6
Capitulo VI
APARECE UMA NOVA MENINA
DE noite houve discussão das hipoteses que poderiam dar-se no dia seguinte. Dona Benta disse:
— Concordo que se estivermos sobre pernas de páu as onças não poderão apanhar-nos. Mas depois? E se elas resolverem-se a ficar por aqui até que nos cansemos e sejamos forçados a descer?
Era uma hipotese bastante provavel, que não havia ocorrido a Pedrinho. Sim, se as onças ficassem por lá, como era?
— Hão de cansar-se e irem-se embora, sugeriu Narizinho. Quando a fome apertar, não fica nenhuma aqui.
— E se se revesarem? lembrou dona Benta. E se enquanto a metade for caçar a outra metade permanecer, montando guarda?
Narizinho não soube responder, nem Pedrinho, nem o visconde. Ficaram todos de nariz caído, pensando nessa terrivel hipotese. Quem respondeu foi a Emilia, que andava toda misteriosa, piscando cavorteiramente os olhinhos como quem tem a solução dum grande problema no bolso.
— Não tenham medo de coisa nenhuma, disse ela por fim. Arranjei umas granadas de mão otimas para espantar onças.
— Granadas de mão? repetiu Pedrinho franzindo a testa. Que historia é essa, Emilia?
— Uma surpresa. Preparei-as com a ajuda dos meus besouros. São cinco, numero suficiente para espantar cem onças que sejam.
— E onde estão?
— No telhado.
— Por que, no telhado?
— Botei-as lá para estarem ao meu alcance no momento em que as onças aparecerem e nós estivermos sobre as pernas de páu. Tambem botei lá pão com manteiga, um guarda-chuva e mais coisas. Póde nos apertar a fome, póde chover...
— Narizinho estava intrigadissima com o negocio das granadas.
— Explique isso melhor, Emilia, pediu ela. Que granadas são essas?
— Nada posso dizer. Segredo. Só adeantarei que são de cera e do tamanho de laranjas baianas.
Granadas de cera, do tamanho de laranjas baianas! Ou a boneca estava de miolo mole... ou... ou... Em todo o caso, como fosse Emilia uma danadinha capaz de tudo, os meninos e as velhas sossegaram um pouco mais.
A razão de tia Nastacia haver desistido das pernas de páu era que não acreditava muito no tal assalto das onças. “Isso ha de ser imaginação dessas crianças”, refletia ela de si para si. “Os diabretes vivem com a cabeça quente e inventam coisas para atormentar os mais velhos. Não acredito”.
Dona Benta igualmente não acreditou — no principio. Depois, lembrando-se de outras coisas inda mais espantosas que já haviam acontecido, achou melhor acreditar.
— Pelo sim, pelo não, acredito, disse ela para a negra. Coisas tão espantosas têm acontecido neste sitio que, “por via das duvidas”, acho melhor acreditar.
— Qual, nada, sinhá! insistiu a negra. Onde já se viu onça andar em bando a atacar casa de gente? Estou com setenta anos e nunca ouvi falar de semelhante ação.
— Nem eu. Mas lembre-se, Nastacia, que tambem nunca vimos contar de nenhuma boneca que falasse, nem de nenhum visconde de sabugo que agisse tal qual uma gentinha — e aí estão a Emilia e o visconde de Sabugosa.
— Lá isso é, resmungou a preta, pendurando o beiço.
— Se isso é, concluiu dona Benta, como vái você arranjar-se amanhã, se as onças vierem mesmo?
— Como vou me arranjar? repetiu tia Nastacia coçando a cabeça. Não sei. Francamente não sei. Na hora veremos...
Ela continuava com a esperança de que o tal ataque das cincoenta onças não passasse duma “pulha” de Pedrinho para meter medo aos “mais velhos”.
Foram dormir. Cada qual sonhou pelo menos com uma onça. Emilia, porém, teve sonhos côr de rosa, a avaliar-se pelos sorrisos que animaram seu rostinho durante a noite inteira. E’ que estava sonhando com as suas famosas granadas de cera...
Pela madrugada alguem bateu na porta da rua — tóc, tóc, tóc... Pedrinho pulou da cama, assustado. “Seriam já as onças?” Os outros tambem ergueram-se, inclusive dona Benta e tia Nastacia. Reuniram-se todos na sala de jantar, á escuta.
Nova batida — tóc, tóc, tóc...
— Parece batida de nó de dedo, sussurou Narizinho. Onça não póde bater assim.
Pé ante pé, a menina aproximou-se da porta e espiou pelo buraco da fechadura. Não viu onça nenhuma. Em vez disso viu... outra menina!
— Uma menina! exclamou Narizinho batendo palmas. Assim do meu tamanho, lindinha! Quem sabe se não é Capinha Vermelha?... Abro ou não abro a porta, vóvó?
— Pois se é uma menina, abra. Veja primeiro se não vem algum lobo atrás dela.
Narizinho espiou de novo e não viu lobo nenhum. Em vista disso abriu. Uma menina muito desembaraçada, da mesma idade que ela, entrou.
— Bôa madrugada para vocês todos! Bôa madrugada, dona Benta! Bôa madrugada, tia Nastacia!
A menina conhecia a todos da casa e no entanto não era conhecida de nenhum dos presentes. Quem seria?
— Quem é você, menina? perguntou dona Benta, meio desconfiada.
— Não me conhecem? tornou a desconhecidazinha com todo o espevitamento. Pois sou a Cléo!...
Foi uma alegria geral. Não havia ali quem não conhecesse de nome a famosa Cléo, que falava pelo radio e de vez em quando escrevia cartas a Narizinho dando idéas de novas aventuras.
— Viva, viva a Cléo! exclamaram todos numa grande alegria.
— Pois é, disse a menina sentando-se em cima da mesa, cá estou para os conhecer pessoalmente. Desde que li as primeiras aventuras de Narizinho fiquei doida por entrar para o bando tambem. Móro em São Paulo, uma cidade muito desenxabida, com um viaduto muito feio e uns bichos fardados de amarelo, ainda mais feios, passeando pelas ruas. Enjoei do tal S. Paulo e vim morar aqui. Fiquem certos duma coisa: o unico lugar interessante que ha no Brasil é este sitio de dona Benta.
Todos mostraram-se contentissimos. Dona Benta, entretanto, disse:
— Mas veiu em má ocasião, Cléo. Imagine que justamente hoje o sitio vái ser atacado por um exercito de onças e iráras e cachorros do mato...
— Otimo! respondeu ela. Um dos sonhos da minha vida sempre foi ser atacada por um exercito de onças e iráras e cachorros do mato, de modo que adivinhei vindo em momento tão propicio...
— Ché!... exclamou lá consigo tia Nastacia. Agora é que o sitio péga fogo mesmo. Menina de “propicios”... Crédo!
O dia estava clareando e, como as onças podiam chegar dum momento para outro, Pedrinho tratou de ensinar a Cléo o uso das pernas de páu, explicando-lhe que fôra esse o meio que descobrira para se defenderem do ataque.
Tia Nastacia foi para a cozinha acender fogo para o café. Estava de olho parado, pensando, pensando...
— A Cléo aqui! murmurava ela para as labaredas. Ché...
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.