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As Doutoras/III/II

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Personagens: LUÍSA e MARTINS

MARTINS (Apertando a mão de Luísa.) — Minha senhora!

LUÍSA (Indicando-lhe uma cadeira.) — Doutor, tenha a bon­dade de se sentar.

MARTINS — Recebi ontem a sua carta.

LUÍSA — Abusando das nossas antigas relações de família, relações que muito prezo e venero, tomei a liberdade de pedir-lhe que viesse a esta sua casa para tratar de negócio que me diz respeito.

MARTINS — Estou às suas ordens, minha senhora! Questões relativas talvez à profissão que tão brilhantemente está desempe­nhando. Algum executivo por honorários médicos...

LUÍSA — Oh! por isto não valia a pena incomodá-lo.

MARTINS — Como não valia a pena? Invocando há pouco as nossas relações, creia que eu sentir-me-ia profundamente magoado se a senhora precisando de serviços da profissão que exerço, ainda os mais insignificantes, fosse bater à porta de outro advogado. Tra­ta-se então de negócio grave?

LUÍSA — Trata-se do meu divórcio.

MARTINS — Do seu divórcio?

LUÍSA — Sim.

MARTINS — Vamos lá, minha senhora, está gracejando!

LUÍSA — A minha existência e a de meu marido tornaram-se incompatíveis. Vivermos juntos por mais tempo sob o mesmo teto, fora prolongar uma situação humilhante para a qual me não sinto com forças e que terminaria pelo aniquilamento completo da minha individualidade, é impossível.

MARTINS — Seja-me lícito dar-lhe um conselho, minha senhora; não como advogado, mas como amigo dedicado da casa.

LUÍSA — Se vem falar-me em reconciliação, doutor, digo-lhe que entre nós dois, ela é um impossível. Conhece-me há muitos anos. Sabe que sou uma mulher superior a caprichos e a paixões e que não daria semelhante passo se não tivesse calculado bem uma a uma todas as conseqüências.

MARTINS — É então do Doutor Martins advogado, e não do amigo, que precisa?

LUÍSA — Preciso de ambos, porém, mais do advogado que do amigo. Uma simples separação amigável não me convém. Amanhã reunir-se-ão os parentes, os íntimos, os oficiosos que costumam aparecer em tais ocasiões e viria depois a comédia da reconciliação! Não. Para que a nossa situação se defina por uma vez, é preciso que ela seja pleiteada, embora com escândalo, nos tribunais.

MARTINS — Bem. A sua resolução pois, é...

LUÍSA — Inabalável.

MARTINS — Tenha a bondade então, minha senhora, de expor os fatos em que se baseia para dar este passo.

LUÍSA — Baseio-me apenas em um; mas este por si só é bastante para justificar o meu procedimento.

MARTINS — Qual é?

LUÍSA — A minha autonomia médica.

MARTINS — As causas do divórcio pelo nosso Direito, minha senhora, resumem-se em duas: adultério e sevícias.

LUÍSA — Então fora deste antediluviano adultério e destas sevícias que deveriam antes fazer parte do Código Criminal, não existe para a mulher nas minhas condições outro recurso de desagravo de direitos?

MARTINS — O legislador não conhecia Doutoras, minha senhora. Imaginava que as mulheres fossem sempre as mesmas em todos os tempos e lugares.

LUÍSA — Sou casada com um homem que exerce profissão igual à minha. Ele aufere os lucros do meu trabalho, alegando, como o Leão da fábula, a posição de chefe. Não satisfeito com isto, procura por meio de subterfúgios e tricas ignóbeis afastar-me do plano em que me coloquei pela capacidade de profissional. Pois bem: hei de cruzar os braços, sofrer resignada todas as humilhações, só porque não posso alegar contra este homem procedimentos brutais para com minha pessoa e ele não pode lançar-me em rosto a infâmia de haver manchado o leito conjugal? Que lei é esta, Doutor? A que vêm este adultério e estas sevícias para o caso em que eu me acho?

MARTINS — O caso em que Vossa Excelência se acha, minha senhora, é todo excepcional. O Direito não podia prever estas lutas de interesses e autonomias científicas nas sociedades conjugais. O amor foi sempre a base da família.

LUÍSA — O amor, sempre esse eterno amor a humilhar a mulher, a transformá-la em máquina de procriação.

MARTINS — Ah! minha senhora, por mais que inovem, por maiores larguezas que dêem às aspirações do eterno feminino, ele há de girar fatalmente em torno do círculo do amor, porque não tem outro caminho a percorrer.

LUÍSA — Somos então as condenadas de Dante?! Fora desta órbita de ferro traçada por estúpidas convenções sociais — Lasciate ogni speranza...

MARTINS — Depende do ponto de vista, minha senhora!... O que Vossa Excelência chama Inferno, eu chamo Paraíso.

LUÍSA — Enfim, senhor, nesse Direito que o senhor estuda não há um remédio para o meu mal? Combatem-se as moléstias as mais violentas, o escapelo da cirurgia decepando partes gangrenadas do corpo humano, faz surgir das podridões dessa gangrena a vida, que é tudo quanto pode haver de mais precioso. Lutamos braço a braço contra a morte à cabeceira do doente e vencemos. E o senhor não tem na sua ciência um bálsamo, um alívio sequer para os meus sofrimentos. (Caindo num choro convulso nos braços de Martins.) Ah! Doutor, Doutor!... Não pode avaliar que dor pungente é a humilhação.