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As Joias da Coroa/I

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— Ah, ah! Ah, ah!... É o que você pensa. Ninguém se arroja a uma empresa destas, sem saber o terreno em que vai pisar. Eu sou um jogador que sempre conhece as cartas de que dispõe e as do seu adversário... É o que faltava... Um homem habituado às dificuldades de todas as empresas espinhosas...

— É exato, o senhor tem dado provas do que é capaz... aquele escandalozinho da rua... que se abafou tão bem, aquela caçada da Milica... Sem a sua habilidade as coisas não iriam tão macias, mas...

— Mas... quê?! Pois você quer pôr em dúvida a minha confiança?! Garanto-lhe que o negócio não trará compromisso a ninguém... Você já tem cinco anos de serviço, tem garantias... Cá para mim, provoco os céus e a terra a virem estremecer a minha influência neste paraíso de bambus...

— É exato, ele precisa do senhor... quem ficará mal hei de ser eu. Se vou para a rua sem mais nem menos...

— Se é este o seu receio, eu o tranquilizo... Assino, se você quiser, um papel de dívida, comprometendo-me a dar a mesma recompensa, seja qual for o resultado no negócio... Ora, imagine que nos venha daí um bolo de 600 contos... Dar-lhe-ia boa porção. Todos lucraremos maravilhosamente... Se não conseguirmos nada, ainda assim você estará perfeitamente, porque, se a coisa for impossível, não ficarão vestígios da tentativa, e, se formos surpreendidos... Não! Não seremos! O êxito é certo... As joias do duque estão depositadas numa sala grande do lance esquerdo do palácio, num armário envidraçado. Se você continua teimando em não querer...

— Teimar não! eu estou apresentando dúvidas, porque ninguém deve...

— Não quero saber de doutrinas. Aceita ou não aceita? Responda já, sem muitas histórias... Está caindo a noite... Ou fazemos hoje ou nunca! Amanhã podem ter sido retiradas as joias. Vamos deixar fugir a mais risonha fortuna... É impossível... Se você não aceita meu convite para acompanhar-me, eu irei só...

— Realmente não há muito tempo para reflexões e o negócio convida...

— Então?... O que decide?...

— Eu... Eu...

— Vamos!...

— Aceito, aceito.

— Ora graças! É preciso ser-se bastante idiota para hesitar tanto num caso destes. Ter nas mãos uma riqueza e temer perigos... Ora, Inácio, você não merece a sorte que lhe está reservada...

— Ainda veremos, sr. Pavia...

Esta conversa se travara no interior da vasta quinta do duque de Bragantina.

Um dos interlocutores era um indivíduo todo de branco, baixote, gordo, peludo na cara como um cachorro d'água, de fisionomia um tanto indistinta naquela hora, que ia adiantando o crepúsculo e os objetos começavam a esfuminhar-se na uniformidade da noite.

A pessoa com quem ele falava era um sujeito em mangas de camisa, fino, comprido, teso como um soldado, de cara rapada, olhar habitualmente baixo e movimentos receosos, denunciando que todo aquele retesamento era teatral; aquela espinha, tão enrijada para trás, caía muitas vezes para a frente em profundas continências, e aqueles ombros, que pareciam feitos para dragonas, apenas carregavam librés.

Este indivíduo era um criado, evidentemente; o outro, saberemos em breve quem era.

Os dois conversavam sobre um negócio importantíssimo. Tratava-se de adquirir da noite para o dia uma enorme fortuna. Um símile da sorte grande de jogatina legal.

Achavam-se ao portão de uma espécie de jardim sem cultivo, no fundo do qual elevava-se uma boa casa, através de cujas venezianas se distinguia a claridade das luzes que se acendiam lá dentro por causa da hora.

— Posso, pois, contar com seu auxílio? — perguntou o homem de branco ao criado.

— Sim, senhor. Desde que o senhor nada teme, eu também nada quero nada temer...

— Muito bem! Isto é o que se exige. Tenha confiança em mim e ajude-me que teremos sucesso...

— Mas diga-me primeiro o que devo fazer...

— Precisamos conversar...

— Preciso de ordens...

— Mas está serenando aqui... entremos para casa...

Pavia e Inácio atravessaram o jardim na direção da casa. Subiram os quatorze degraus de uma escada dupla, que levava à porta da entrada, e desapareceram no vão escuro que a porta fazia.

A noite caíra.

A quinta do duque passara insensivelmente das vacilações do crepúsculo para as trevas decididas das sete horas de um dia curto.

As moitas de bambus condensavam-se em amontoados impenetráveis de escuridão; os gramados do parque alargavam-se, confundindo-se com as alamedas de areia numa vasta toalha de crepe; para longe, recortavam-se as montanhas negras. Dir-se-ia que a natureza acabava de cobrir-se de lutuosos merinós, se não fosse o cetim azulado do firmamento, e se não chovesse o riso das estrelas.

Entretanto, reinava movimento no meio da noite. Os numerosos habitantes da quinta do duque, lacaios e protegidos, recolhiam-se naquela ocasião às suas habitações agrupadas em aldeia, nos fundos do palácio. Consumiam a última atividade do diário, preparando-se para o repouso confortante da noite. Na massa de habitações acumuladas ao norte do parque, que fundiam-se com a noite, começavam a aparecer pontos luminosos. Era a candeia de um sótão, o bico de gás de uma sala de jantar ou a vela de um quartinho.

Quando acabaram de acender-se as luzes também o movimento cessou. Principiaram-se os serões.

Levemos o leitor a um deles.

Uma rua, ou melhor, um estreitíssimo beco, esmagado entre duas paredes crivadas de janelas iluminadas ou não, é o caminho que conduz ao coração desse povoado da quinta.

No extremo dessa viela úmida e escura está uma porta aberta. Entremos...

É uma sala miserável, pobremente mobiliada. Das paredes caem flâmulas de papel descolado e no meio da casa gemem míseros trastes, sobrecarregados de ninharias. Pelas mesas há vasos de fantasia arabescados de rachas e esfoladuras sobre uns tapetes de lã felpudos e muito anchos; pelas cadeiras, retalhos de pano e objetos de costura.

A um canto, conversam baixinho um velho e uma velha. Estão sentados em cadeiras, ao lado de uma pequena mesa. Sobre a mesa há uma vela que bate-lhes no rosto e clareia a toda a luz as rugas das duas fisionomias.

Trocam vivamente palavras.

O velho, com dedo médio unido ao polegar, como apertando uma pitada, faz gestos de quem sabe o que diz, e a velha encara-o através de uns grandes óculos de aros pretos, aprovando com a cabeça, e fala de vez em quando, agitando a agulha que tem na destra e a costura que sustenta na mão esquerda.

Em outro lado da sala vê-se, toda encurvada sobre si uma mocinha. Acha-se sobre um banco com os joelhos cruzados, repuxando-lhe muito o vestido que comprime-lhe as formas. Dedilha febrilmente um cabo de crochet de osso branco. De tempos a tempos levanta o rosto com os olhos semicerrados e sacode para trás a vasta cabeleira negra e esparsa, que quer escorregar-lhe para o crochet.

É uma formosa criaturinha, feições de criança, ar distraído, um tanto carnuda sob uma epiderme sem irritações. Parece não ter quatorze anos ainda e podia usar vestido curto.

Eis mais ou menos o que diziam os velhos:

— Sim, sim — falava o marido —, é preciso garantirmos o futuro daquela menina. Se não aceitássemos os oferecimentos do Pavia cometeríamos um crime.

— Um verdadeiro crime — afirmou a velha.

— Por um tolo escrúpulo não se há de perder um bom dinheiro...

— Tão bom dinheiro... — reforçou a velha, batendo com a cabeça.

— De mais, o lucro não será só para nossa afilhada, o nosso netinho terá o seu quinhão...

— Sim, senhor... Sim, senhor...

— Já vê que fiz bem em responder ao Pavia que sim...

— Muito bem. A nossa afilhada assim terá um futuro garantido. A proteção do sr. Duque não é qualquer coisa... Ah! quem me dera que eu ainda fosse fresquinha como antigamente...