As Joias da Coroa/III
Entre os portais desenhou-se a figura encarquilhada do velho que o leitor conhece, arrimado ao seu bastão, como uma ruína à sua escora.
— Já está por aqui? — exclamou ele.
— Já aqui estou, sr. Januário... Não sou sujeito de faltar às horas, nem aos compromissos...
— Entre, entre, sr. Pavia...
Pavia entrou e, amparando o velho, foi com ele tomar lugar num sofá decrépito, que espreguiçava a sua idade e as suas palhas arrebentadas ao longo de uma das paredes da sala.
Pavia rompeu a conversa:
— Estamos bem aqui?...
O velho compreendeu.
— Estamos — disse. — A família toda está-se acomodando lá fora para os fundos... Foram deitar-se... Eu, que durmo aí nessa alcova próxima, posso ficar na sala sem causar-lhes estranheza... Podemos conversar... Um pouco baixinho... por prudência...
— Diga-me... o que conseguiu?
— Tudo.
— Então ela vai?
— Está morta por ir...
— Bem lhe disse eu que, quando você falasse na amizade de Claudina e em passar alguns dias com a minha mulher, ela não se recusaria...
— Ah! os planos do sr. Pavia são sempre bem feitos...
— A Conceição di-lo-á daqui a dias...
O vento da noite barafustava pela porta e lambia as paredes da sala, fazendo estalitar alegremente as flâmulas de papel pendentes. O fogo da vela que clareava o lugar, agitava-se impaciente ao redor do pavio, dando uma luz incerta...
— A menina — continuava Pavia — vai ser recebida na palma das mãos; vai dormir num gabinete azul, todo cheio de cortinas transparentes, no meio de perfumes que provocam sonhos... Ao amanhecer, será visitada por minha mulher ou minha filha... Será vestida como uma boneca, penteada como uma rainha... Sairá a passeio e tal... E o fim há de chegar insensivelmente...
— Uma pergunta... se não é ousadia... — disse receosamente Januário. — Mas o senhor desculpará... Sabe que eu quero bem à minha afilhada...
— O que deseja saber?...
— O sr. duque...
— Que tem o sr. duque?
— É... é...
— É o quê?...
— ...muito violento...
— Pelo contrário, é macio como pelica... É um pouco ardente talvez, mas isso é quando já não há necessidade do contrário... O homem sabe insinuar-se.
— Olha que a Conceição é viva como cobra... e ele...
— Não se arreceie... ninguém resiste facilmente ao sr. duque... Ele tem um olhar que penetra e imobiliza... Não fala muito... Fitando, ele faz mais do que falando... As crianças são tímidas em geral... E a Conceiçãozinha é um pouco criança ainda...
— Bem... eu faço o negócio com o senhor... não sei se é coisa limpa... mas desde que à menina não resulte mal...
— Deixa de partes, meu velho... vamos concluindo a coisa... Aqui tem o cobre...
O vento continuava a penetrar na sala, e as flâmulas de papel riam com risadinhas de Mefistófeles.
Januário estendeu a mão magra, comprida, branca, trêmula, e recebeu um embrulho de papel que Pavia apresentou-lhe. Não disse palavra. Misturou apenas aos sulcos que os anos lhe haviam aberto na face as contrações de um sorriso baixo.
— Veja se amanhã mesmo faz a Conceição aparecer por lá...
— Já estava convencionado com ela... Há de ir...
— Apesar de tudo?...
— Apesar de coisa nenhuma... Quando conversamos, outro dia, sobre este negócio, eu disse ao senhor que não havia obstáculo...
— Talvez haja...
— Que obstáculo?... Não vejo...
— A sua nora...
— Ah! ah! Aquela idiota?!
— Idiota?!... Você é muito velho, não é muito vivo... Não sabe quem é aquela santinha de cara chupada e olhos de irmã de caridade.
— Eu sei que ela tem seu gênio; mas não usa dele... No tempo do marido, ela às vezes tinha seus arrebatamentos... Depois, tornou-se completamente mansa. Aquele ar tristonho, que cobre-lhe a fisionomia desde o casamento de meu filho, isto é, desde que eu a conheço, não se modifica mais com as iras que lhe conheci há tempos... Atualmente está branda, branda como uma idiota...
— Mau sinal...
— Por quê?...
— Tenho medo das mulheres tristes...
— Qual! a minha nora é mais idiota do que triste...
— Portanto a menina não falta...
— Não falta. O sr. duque não terá o desgosto de ver perdida uma esperança do seu coração...
— Seria a primeira...
— Não será... pode o senhor ficar sossegado...
— Perfeitamente... Vou tranquilo...
Continuava o riso mefistofélico das flâmulas de papel. E Pavia levantou-se. Foi até junto da vela, consultou o relógio. Eram onze horas mais ou menos.
— Ainda é cedo, murmurou.
E, voltando-se para Januário, que se erguera depois dele, disse-lhe:
— Até outra vez. Boa-noite.
O velho respondeu ao cumprimento, e viu-o mergulhar na escuridão do beco.
Não havia ainda fechado a porta, quando sentiu-se agarrado freneticamente pela gola do paletó:
— Miserável! — dizia a voz de uma mulher.
Essa voz tinha uma energia selvagem, e era ao mesmo tempo comprimida na garganta de quem falava.
Januário sentiu o pescoço ferido pelas unhas de quem o prendia. Puxaram-no. Ele perdeu o equilíbrio. Tentando agrarrar-se à parede, abriu as mãos. A bengala escapou-lhe e caiu no soalho, ressoando longamente pelos cantos da casa o rumor da queda. As mãos não encontraram saliência na parede, a que se agarrassem. Foi lançado ao chão. Arrastaram-no...
Quando o desgraçado pôde respirar, viu-se frente a frente com a nora.
A terrível mulher o levara de rastos até uma cadeira, e ficara em pé diante dele.
— Miserável... eu vi o que acabaste de fazer.
— Emília!... Emília!...
— Velho bandalho! Patife que estás apodrecendo debaixo desses cabelos brancos... Ainda cometer crimes... Não te enforco...
— Emília!
— ... não te sufoco entre os meus dedos, porque Deus te vai afogar em breve na lama de uma vala... Quantas vezes vendestes tuas filhas?... Quanto recebeu-te o negócio, velho desavergonhado?... Pois não repetirás o comércio!... O que fizestes aos teus não farás aos dos outros. Tinhas o direito de vender o teu; não venderás o alheio!...
A nora de Januário falava com os punhos cerrados, perto da cara do velho. As palavras saíam-lhe dos lábios faiscantes e caíam chiando sobre a cabeça do sogro...
— Escute-me, Emília! — balbuciava ele. — Escute-me!
Mas Emília estava surda de ira.
Apenas vestindo uma saia curta e uma camisa larga, que lhe fugia pelos seios abaixo; cabelos soltos, caindo-lhe secos pelos olhos e pelas costas; braços nus, clavículas à mostra, em toda a fealdade da magreza e da tensão dos músculos, aquela mulher fazia medo. Os impropérios ferviam-lhe na garganta e elas os soltava sobre Januário.
O velho estava aturdido.
A atitude repentina e inesperada da nora fazia-lhe o efeito de muitas cacetadas ao mesmo tempo.
Felizmente, a falta de resistência acalmou um pouco os furores de Emília.
— Eu ouvi daquela alcova a negociação que fizeste com o outro infame, aquele demônio barbado... Eu já esperava por essa entrevista. Contava com a fatalidade. Cá, na quinta, corre tudo como num matadouro: cada vitela tem o seu dia de ver o machado sobre a nuca!... Tu não tiveste, miserável, um pouco de coração, nem um pouco de vergonha... foste fazendo o negócio...
— É para o teu filho mesmo, Emília... o meu neto...
— Não digas... não digas... Meu filho não precisa do preço de torpezas. Dá-me esse dinheiro, dá-me, desgraçado... quero queimá-lo naquela chama... Estás ouvindo? Este dinheiro nunca será para meu filho!
Januário apertava involuntariamente contra o peito o dinheiro que recebera de Pavia e metera no bolso.
— Não mo dás? — vociferava Emília. — Guarda para tua avareza. Come-o!... Quem vai perder é aquele demônio que saiu daqui... Minha... minha Conceição não entrará em casa dele!... Come o dinheiro, se quiseres...
E, bruscamente, da mesma maneira por que entrara, Emília retirou-se da sala.