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As Mulheres de Mantilha/L

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LIX

Alexandre Cardoso affectava aos olhos de todos serenidade e segurança; mas dentro de si receiava talvez bem proxima a sua desgraça, porque tambem á elle espantava a cega confiança, com que o Vice-Rei o amparava contra a animadversão geral, ápezar da gravidade dos ultimos acontecimentos.

Além disso outras contrariedades o affligião; o jogo absorvera-lhe quanto dinheiro tinha, e quanto pudera tomar de emprestimo á bolsa dos amigos; a morte de Clelio Irias o privara de uma fonte de recursos, e a recusa do Vice-Rei á nomeação dos officiáes para o novo terço o deixava em difficilima e triste posição: por ultimo a sua infeliz paixão pela menina Ignez, o máo resultado de sua criminosa tentativa na noute da serração da velha enchião-lhe de fel o coração.

Entretanto o ajudante official da sala dissimulava as perturbações do seu animo; mas irritado e desejoso de tirar vingança daquelle que principalmente fora a causa de haver abortado o seu plano para o rapto de Ignez e já perfeitamente informado de quem era Izidoro e do motivo do seu disfarce, determinára persegui-lo á todo trance, e recruta-lo para soldado.

Não entrava no seu espirito a idéa de que Jeronymo Lirio quizesse para seu genro um joven sem fortuna e sem futuro, como era Izidoro que somente se recommendava por alguma educação literaria e artistica que os frades franciscanos do convento da villa de Santo Antonio de Sá lhe tinhão dado movidos pelo interesse que lhes inspirava a bella intelligencia daquelle menino.

Alexandre Cardoso comprohendeu que não era prudente depois do que acontecera, fulminar directamente com os raios da sua vingança o sympathico Izidoro, estudara pois e calculára uma providencia que comprehendesse Izidoro pela regra geral, e dirigiu-se ao conde da Cunha com um bando já redigido, em que erão declarados soldados de linha todos quantos até a data do bando erão solteiros e não tinhão officio activo, ou estabelecimento proprio e conhecido no commercio, industria e artes, tendo de desoito á quarenta annos.

O conde da Cunha leu o bando e disse, mostrando-se satisfeito:

— Eu tambem tinha pensado nisto, que aliás já está em pratica, pois é principalmente na massa dos solteiros e vadios que fazemos recrutar.

— No bando que escrevi para offerecer á sabia consideração do Senhor Vice-Rei, excluo a idéa do recrutamento arbitrario de que muitos se queixão, e proponho uma regra que por ser geral agradará ao povo.

— Que lemos nós com a gritaria do povo?... guardo o seu bando, e amanhã ou depois lhe darei outro com uma idéa nova que dezejo ensaiar.

O ajudante official da sala curvou-se.

O Vice-Rei continuou:

— Quero que seja esplendida a grande parada que pessoalmente commandarei no dia do nome d'El-Rei, meu senhor: ha muitos dias que não vizitamos as fortalezas, e dellas se devem retirar para concorrerem a parada quantas praças se poderem dispensar em suas guarnições; saiamos pois: o senhor vá as fortalezas, eu irei aos quarteis e ao meu arsenal.

Alexandre Cardoso tornou a curvar-se e sahio.

Pouco depois o conde da Cunha foi vezitar os quarteis, onde se informou do numero de praças promptas, do estado das armas e do fardamento.

No regimento novo os soldados doentes tratavão-se todos no competente hospital; e no da Santa Casa de Misericordia: no regimento velho tres soldados doentes não estavão como outros nos hospitaes.

O Vice-Rei quiz saber a razão dessa excepção.

O major do regimento respondeu:

— Tiverão licença para tratar-se fóra.

— E quem os cura?...

Eu o ignoro, senhor Vice-Rei.

O conde da Cunha cerrou as sobrancelhas e perguntou:

— E onde se tratão?

O major estremeceu:

— Também o ignora ?... quero sabe-lo.

— Um desses soldados doentes é cazado, e tanto elle como os dous camaradas, de quem é parente ou amigo são tratados em sua casa.

— E onde é essa casa ?

— Senhor Vice-Rei, eu não estava preparado para...

— Devia estar! bradou o conde da Cunha; e se não está, prepare-se já para responder-me: dou-lhe dez minutos.

E o Vice-Rei tirou o relogio, e marcou em alta voz a hora que era.

O major tremulo e asssutado foi para o interior do quartel e no fim de tres minutos voltou apressado.

— Preparou-se? perguntou o Vice-Rei com ironia terrivel.

O major disse á gaguejar de medo.

— A casa é no morro do Desterro um pouco á cima do convento de Santa Thereza... á beira do caminho, e a mão esquerda de quem sobe...

O Vice-Rei voltou as cosias ao major, e disse aos officiaes que á distancia respeitosa se achavão reunidos.

— O tenente-coronel Alexandre Cardoso obrigado á desempenhar os deveres de meu ajudante official da sala tinha o direito de ser mais zelosamente servido pelos seus subordinados no commando do regimento velho: heide dizer-lhe o que observei aqui, e basta-me isso. O tenente coronel ainda não mentio á minha confiança.

E o velho conde da Cunha montou á cavallo, dirigiu-se ao arsenal, onde se demorou até a hora do jantar.

De volta ao palacio e recolhido ao seu gabinete, consultou apontamentos que tomára, interrogando Izidoro, e leu para si: « penso que feri no hombro o salteador que tentava raptar a menina Ignez: com certeza feri no rosto e na ilharga outro salteador de alta estatura e força descommunal que esteve á ponto de matar-me: não feri nenhum outro ». O conde da Cunha abrio uma gaveta de segredo e della tirou uma carta: era ainda um novo relatorio semanal da vida e proezas de Alexandre Cardoso, que elle leu ainda para si: « o mandatario do attentado foi Alexandre Cardoso, o fim era o rapto da menina Ignez, filha de Jeronymo Lirio, os instrumentos forão soldados do regimento velho, alguns dos quaes forão feridos, e estão sendo tratados fóra do quartel, ainda não sei onde, e menos o sabe o Vice-Rei, que faz garbo de tudo ignorar. »

O conde da Cunha mandou chamar Germiano, que não tardou a apresentar-se. O Vice-Rei lhe disse:

— No morro do Desterro, um pouco á cima do convento, á beira do caminho, á mão esquerda, de quem o sobe, ha uma casa, onde estão em tratamento tres doentes, soldados do regimento velho: preciso saber que molestias soffrem elles, e se estão feridos, como me informão, em que regiões ou pontos do corpo receberão feridas. Vai-te: tens dous dias para desempenhar esta commissão.

O mudo sorriu-se, fez sua venia, e deixou o Vice-Rei.

Germiano que sabia tudo quanto se passava e se murmurava na cidade, comprehendeu perfeitamente o empenho do Vice-Rei, e por amor deste sendo inimigo de Alexandre Cardoso; esmerou-se em executar promptamente as ordens do seu idolatrado amo: jantou e bebeu em vez de uma como tinha por costume, tres garrafas de vinho ao jantar.

O mudo sabia a sua conta: uma garrafa de vinho era apenas o excitante normal da digestão, duas davão-lhe alegria, tres o levavão ao estado duvidoso que precede a embriaguez; quatro tiravão-lhe a consciencia.

Germiano bebeu pois tres garrafas de vinho e sahio á passear; tomou a direcção do morro do Desterro, e começou a subi-lo, passou alem do convento, e reconhecendo pelas indicações a casa que procurava, parou diante della, introduzio na garganta dous dedos para provocar um vomito, e desde que conseguio esse indicio da embriaguez que pretendia simular, deixou-se cahir contra a porta da casa e estirado no chão, poz-se a gemer pungentemente.

A porta da casa abriu-se, e uma mulher e um soldado que trazia um lenço atado á cabeça apparecerão.

A mulher disse:

— E' um bebado.

O soldado curvou-se um pouco, examinando o rosto de Germiano, e exclamou:

— E' o cão do Vice-Rei, é o patife do mudo que hoje bebeu pelo menos um garrafão de vinho!

— Manda esse maroto para a porta do convento; disse outra voz que partia do interior da casa.

— Era preciso que o borracho tivesse pernas; aqui não ha que hesitar: ou atirar com o cão do Vice-Rei pela escarpa do morro á baixo, levando a cabeça quebrada e sem miolos, ou recolhe-lo e trata-lo como amigo: este biltre é cão capaz de morder, e ao cão bravo ou compra-se a fidelidade, ou mata-se de uma vez.

Isto dizia da porta o soldado que entrando e conferenciando com os camaradas, voltou com a mulher e ambos carregarão para dentro Germiano á quem estenderão em uma esteira velha.

O mudo dormio ou fingio dormir longas horas até que, despertando e sentando-se na esteira; olhou espantado em torno de si.

— Estás em casa de amigos, Germiano; disse-lhe o soldado que trazia o lenço á cabeça: tomaste solemne bebedeira, como ás vezes nos acontece, e o Senhor Vice-Rei não ficará mal comtigo por isso.

Germiano poz-se á custo de joelhos, e levou um dedo a boca, pedindo segredo do excesso de vinho que o levará á embriaguez.

— Um dia não são dias, e uma mão lava a outra: tu te embebedaste por excepção, nós te soccorremos: toma nota disto, e olha bem para nós afim de que, lembrando as caras, não esqueças a gratidão.

O mudo tornou á deitar-se e adormeceu.

Só no dia seguinte pelas dez horas da manhã Germiano entrou de volta no palacio; mas apenas entrou, foi direito ao gabinete particular do Vice-Rei.

— Já sabes tudo? perguntou-lhe o conde.

O mudo fez signal afirmativo.

— Os soldados estão feridos?...

Igual resposta deu Germiano, acenando com a cabeça.

— Quantos são ?

O mudo mostrou tres dedos.

— São tres, muito bem: e o primeiro, onde foi ferido?

O mudo poz a mão na cabeça.

— O segundo?

O mudo mostrou o hombro direito.

— Ah! no hombro? é isso mesmo.

— E o terceiro?...

O mudo apontou o rosto, e depois a ilharga.

— No rosto e na ilharga?... tal e qual! e esse ferido no rosto e na ilharga é de baixa estatura?..

O mudo fez com a cabeça signal negativo, e depois encostando-se á parede levou a mão um palmo á cima da sua propria altura.

— Então... um homem gigantesco?...

O mudo indicou que sim.

— Tudo como me informão! murmurou o Vice-Rei.