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As Mulheres de Mantilha/LII

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LI

O tenente Gonçalo Pereira instado por Alexandre Cardoso para acompanha-lo á casa de Maria, não ouzou resistir ao convite: a resistencia pudera despertar uma de duas suspeitas: ou que elle se arreceava de mostrar-se ao lado do ajudante official da sala ameaçado pela adversidade, ou que lhe repugnava a casa de Maria que aliás até então frequentara, o que exporia á desconfiança a cortezā, á quem devia generosidade.

Era assim que na alegre reunião Alexandre Cardoso cahia ás vezes em irresistivel meditação e Gonçalo mal disfarçava a sua tristesa.

Lundú novo! exclamou uma linda rapariga, levantando-se, e tomando a viola.

Porque não ao craro?

O cravo é mais pobre, pertence as chacaras, e ás baladas: o lundú e mais plebeo e cabe de direito á viola, que é o instrumento do povo.

Venha pois o lundú.

A moça cantou:

Graças do conde da Cunha
Ao bando cazamenteiro
Achão noivos raparigas
Sem belleza, e sem dinheiro.

Em um mez se acabão
As moças solteiras,
Os noivos recorrem
A's velhas gaiteiras.

P'ra muitos que sobrão,
Soltar vão as freiras,
Dos recolhimentos
Sahem prisioneiras.

E as qu'em vão amavão.
E as que lastimavão
A sorte, que o feio, cruel celibato
Tam máo lhes impunha

E as moças sem dote, e as velhas e as freiras
Que á luz, se escondião, corujas do mato
São hoje devotas, e noivas festeiras
Do conde da Cunha.

Como esta mais cinco ou seis coplas cantou a bonita rapariga no meio de vivos applausos.

Depondo a viola disse ella á rir:

— Todos me applaudirão menos o senhor tenente-coronel que pensa no dia de amanhã, e o senhor tenente Gonçalo que está triste com saudades do dia de hontem!

— Não é isso; exclamou Maria; o senhor Alexandre Cardoso e o senhor Gonçalo Pereira estão afflictissimos; porque ambos me pedirão em cazamento, e á ambos me recuzei.

— Querem ver que tivemos medo de assentar praça! disse Alexandre Cardoso.

— Não; mas o Vice-Rei vai mandar proclamar outro bando, condemnando á perda de seus postos os officiaes solteiros que não se cazarem promptamente.

— Em tal caso pedirei a minha demissão.

— Pois, senhor tenente-coronel, apresse-se antes que Ih'a deem.

Alexandre Cardoso perturbou-se, lembrando-se da confidencia de Gonçalo Pereira.

Maria voltou-se para o tenente, e perguntou-lhe.

— E o senhor tambem pretende pedir a sua demissão?

Gonçalo fitou com olhos flammejantes a cortezã e disse:

— Já dei-a.

Maria corou de leve, sentindo o golpe que recebera; acrescentou porem logo:

— E como conserva e traz a farda e as divizas¿

— Estas são as do regimento novo, e foi de official de outro corpo que me demitti.

— Então de qual?

— Do regimento dos escravos do vicio.

— Ainda bem que a sua prezença aqui indica que esta casa não é quartel desse regimento; respondeu Maria, contendo-se.

Alexandre Cardoso começava á prestar attenção.

A cortezã ferida rudemente em sua vaidade, tornou dizendo:

— Que subita regeneração! os arrependidos assim ou ficão logo santos, ou bem depressa perdem-se no caminho da salvação, e só não cahem no inferno, quando o diabo lhes fecha a porta.

Gonçalo Pereira guardou silencio.

Alexandre Cardoso conservava-se pensativo e immovel na sua cadeira.

— Que insuportavel melancolia a destes senhores officiaes! fazem-nos somno! creio que estão assustados com a grande parada de amanhã.

E, sempre audaciosa, Maria accrescentou:

— Falta-nos aqui o elegante alferes Constancio Lessa que nunca sabe o que é tristeza!

E fallando ás senhoras:

— Mundo às avessas! façamos dançar estes cavalheiros; exclamou.

As senhoras levantarão-se alegremente, e Gonçalo Pereira, aproveitando o movimento da companhia, aproximou-se da cortezã, e disse-lhe:

— Se quer aqui o alferes Constancio Lessa, mando busca-lo á minha casa onde o deixei em vergonhoso estado de embriaguez depois que lhe ouvi, quanto me convinha saber.

Gonçalo voltava as costas; porem Maria travou-lhe do braço, e respondeu-lhe com impavidez:

— Se me tivesse perguntado o que lhe convinha saber, poupar-se-ia á uma acção desleal, e ás despezas de um jantar envenenado; porque eu lhe diria... tudo.

E lançou-se ao turbilhão da dança.

Gonçalo Pereira foi debruçar-se á janella.

Alexandre Cardoso esperou alguns minutos, e quando vio a sociedade mais occupada com a dança, encaminhou-se tambem para a janella.

— Tenente Gonçalo Pereira! disse-lhe; senão nos tivessemos batido esta tarde no campo do Rosario, sahiriamos agora mesmo d'aqui para nos batermos.

— Senhor tenente-coronel...

— A mulher que me atraiçoa e por quem me trahio, é Maria.

Gonçalo não respondeu.

— E' Maria! repetio Alexandre Cardoso.

O tenente manteve-se mudo.

— E' Maria!... tornou com voz surda e ameaçadora o tenente-coronel.

Gonçalo por unica resposta, perguntou:

— Quer que saiamos?...

Alexandre Cardoso passou a mão pela fronte e disse:

— Não tornaremos á bater-nos... não... essa mulher não é digna de um duello entre dous cavalleiros... vi bem, que suas relações com ella estão quebradas... as minhas, quebro-as hoje... e desde agora...

— Um pouco tarde! murmurou sinistramente Maria, mostrando-se junto dos dous officiaes.

Espantados de tanto e tam affrontoso cynismo, Alexandre Cardoso e Gonçalo Pereira tiverão a mesma idea para castigar a soberba e impavida cortezã, idea profundamente insultuosa, material, baixa e repugnante; mas idea que sem previo ajuste, ambos poserão em pratica ao mesmo tempo, e como se estivessem de accordo.

Os dous officiaes simultaneamente atirarão suas bolsas de ouro aos pés da cortezã e retirarão-se.